"Chega! / Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. / Minha boca procura a 'Canção do exílio'. / Como era mesmo a 'Canção do exílio'? / Eu tão esquecido de minha terra... / Ai terra que tem palmeiras / onde canta o sabiá!". São com estes versos que Carlos Drummmond de Andrade fecha o poema "Europa, França e Bahia", poema cujo sujeito poemático, após parecer deslumbrar-se com as belezas sedutoras dos países civilizados, sente saudade e tem os "olhos brasileiros sonhando exotismos".
Para ele e diante dele, em gesto antropofágico, a torrer Eiffel é um imenso caranquejo; "submarinos inúteis retalham mares vencidos"; "a Itália explora conscienciosamente vulcões apagados"; e é das águas sujas do Sena que a sabedoria escorre. "Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa", afirma. Estranho a tudo e desentendido de tudo, ele quer lembrar a canção do exílio, aquela que canta os exotismos da [sua] terra e, por isso mesmo, faz o sujeito retornar à terra familiar e íntima.
Guardado no livro Alguma poesia, "Europa, França e Bahia" serve para complexificar a discussão da importância da tão temida "cor local". Tendo o seu uso mal compreendido, ou rejeitado veementemente, confundiu-se por muito tempo, a fim de inserir o Brasil na modernidade, cor local e exotismo. Para este segundo termo, não há melhor entendimento do que o dado por Caetano Veloso ao final da canção "Um índio": "aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos, não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio".
Como já sabemos, o exótico só é visto na perspectiva depreciativa do termo por aqueles que não alcançam a obviedade o objeto/sujeito sob o olhar. O outro, sempre diferente, é exótico. O lugar que desconheço e cuja gente age de modo "oposto" ao meu, é exótico. Sob a pecha de exótica, Carmen Miranda voltou os olhos do mundo para o Brasil. Pagou caro por isso, renegada pela elite pensante, mas sabia que o povo que ela representava tinha nela a esperança (espelho refratário) de distinção e de reconhecimento universal.
Portanto, como venho tentando defender aqui, se a canção popular brasileira é a tradução prática da gaia ciência pensada, noutro plano de interpretação, por Nietzsche, posto que heterogênea e permeável, ela o é porque se alimenta de matrizes múltiplas, de produções populares diversas e de cores locais singulares e amalgamáveis.
Na canção popular brasileira, entretenimento, informação e criação se misturam forjando a educação ético-estético-filosófico-sentimental do brasileiro. Desde sempre foi assim, misturas de misturas, até entre linguagens diferentes. Isso se opõe a uma certa e interessada imagem única e limpa - pós-Bossa Nova - que alguns teóricos tendem fazer do Brasil para o exterior, a fim de se fazer entender pelos seus pares.
Mas, como sabemos "o baião vem de baixo do barro do chão da pista onde se dança" e "ninguém me salva / ninguém me engana / eu sou alegre / eu sou contente / eu sou cigana / eu sou terrível / eu sou o samba". O entendimento e a compreensão da canção popular - forjada e alimentada nos extratos populares - escapam à tradução meramente socrática, academicista.
Focado na força da cultura popular da Grécia Antiga, e defensor da superioridade do popular, Nietzsche elabora e desenvolve novas modalidades de percepção da cultura, nas quais não entra o rancor daquilo que vem do povo. Pelo contrário, Nietzsche nos ajuda a repensar a estigma da ignorância dada à cultura popular pela lineariedade capitalista de subjetividades controladas.
É no sentido nietzschiano que Luiz Gonzaga é gênio, por aglutinar elementos espalhados na cultura popular que lhe forjou a obra, as canções - muitas de exílio. Um exemplo é que a musa Rosinha, condensação de várias mulheres sertanejas, serve à apropriação imagética de todo e qualquer sertanejo distante de sua mulher, por causa da seca do sertão "das muié séria / Dos homes trabaiador". "O mundo não vale nada / Sem amor de Rosinha / Por isso vivo a sonhar / Com a minha moreninha".
Gonzaga estetizou o sertão e moldou uma imagem do nordeste não apenas nas letras que cantava e no jeito de corpo (e vestimentas), mas, principalmente, na voz. É no timbre adequado, porque carregado de vivência, ao ritmo da sanfona onde mora a beleza do canto de Luiz preenchendo casas humildes, comuns, simples de alegria e esperança, matenedouras do homem na terra: "A seca fez eu desertar da minha terra / Mas felizmente Deus agora se alembrou".
É do luxo exuberante e óbvio do vivente-cantador da "festafeira no pino do sol a pino", cantador das tragédias do cotidiano, cordelistas da vida comum e fantástica, que a voz de Gonzaga se alimenta. A gestualidade vocal de Luiz Gonzaga figuratizava o "sertão é em todo lugar; o sertão é dentro de mim" rosiano. Posto que a voz de Gonzaga, seu modo de cantar e dizer, é a grande vereda dos sertões geográficos e íntimos. O que é "A volta da asa branca" senão uma fresta de luz no corpo ressequido do sertanejo? Um bálsamo sonoro na intemperância dos dias de muito sol e quase nenhuma água.
Foi deste recanto também que Haroldo Campos pinçou as estrelas, planetas, satélites de suas Galáxias. Se "(...) para / outros não existia aquela música não podia porque não podia popular", é esta música vinda do povo e cantada pelo povo que alimenta a vida do povo: injeta remédio e veneno na existência.Exótica, óbvia é esta canção que sustenta o indivíduo com saudade de sua terra que "tem palmeiras onde canta o sabiá". É ela que faz ele querer voltar e, de novo, tentar - ir indo: "A asa branca / Ouvindo o ronco do trovão / Já bateu asas / E voltou pro meu sertão / Ai, ai eu vou me embora / Vou cuidar da prantação". "Chega! / Meus olhos sertanejos se fecham saudosos".
Gilberto Gil (Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga, 2012) capta esta alegria do povo e da natureza natural inventada por Luiz Gonzaga ao cantar "A volta da asa branca" com acompanhamento festivo. Ele investe no sujeito que se enche de novas vontades: "(...) E se a safra / Não atrapaiá meus pranos / Que que há, o seu vigário / Vou casar no fim do ano".
Em entrevista à revista Bravo! (dez/2012), Gilberto Gil declarou: "Eu não existiria sem Gonzagão". Eu completaria que nem o sertão, nem o Nordeste, como os entendemos hoje, existiriam sem a voz de Gonzaga, sua agonia transvalorada em som. É ele o sabiá a sustentar memórias, crônicas e declarações de amor aqui na voz.
***
A volta da asa branca
(Zedantas / Luiz Gonzaga)
Já faz três noites
Que pro norte relampeia
A asa branca
Ouvindo o ronco do trovão
Já bateu asas
E voltou pro meu sertão
Ai, ai eu vou me embora
Vou cuidar da prantação
A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria
Dos homes trabaiador
Rios correndo
As cachoeira tão zoando
Terra moiada
Mato verde, que riqueza
E a asa branca
Tarde canta, que beleza
Ai, ai, o povo alegre
Mais alegre a natureza
Sentindo a chuva
Eu me arrescordo de Rosinha
A linda flor
Do meu sertão pernambucano
E se a safra
Não atrapaiá meus pranos
Que que há, o seu vigário
Vou casar no fim do ano.
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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