A reconquista de público reafirma o lugar dos "bolachões" ao lado dos apaixonados por uma experiência musical completa
Por Gabriel Valery
No final dos anos 1940, nos Estados Unidos, uma novidade chegava ao universo da música: os discos de 33 rotações, de vinil, mais leves que os antigos 78, de acetato, e com mais qualidade sonora. Um som marcado para sempre pelo chiado nas caixas acústicas, enquanto a agulha desliza firme na ranhura. “Som com textura”, defendem os entusiastas do disco de vinil, que a partir da década de 1980 perdeu espaço para outras mídias. Mas estatísticas recentes apontam para significativo crescimento nas vendas, trazendo as velhas “bolachas” de volta. No mercado norte-americano, já representam 9% de todas as vendas de mídias físicas. O restante fica por conta dos compact discs, os CDs, que vêm observando quedas vertiginosas em suas vendas. O vinil resistiu.
Para muitos apreciadores, a audição dos discos ultrapassa a relação com a música. Os sons deixam de ser complemento a alguma atividade, ou uma trilha sonora enquanto se passeia ou viaja. Com o vinil, defendem, ouvir música assume outra importância no momento da execução, um ritual que começa a partir do gesto simples de mover o “braço” da vitrola em direção ao LP (iniciais de Long Play, como os discos foram batizados em 1948). A cerimônia envolve outros sentidos e se completa com a arte da capa, o encarte, a descoberta dos lados A e B, que não existem em um CD.
O operador de som Émerson da Costa Ramos, da Rádio Brasil Atual, ajuda a entender a qualidade sonora, reivindicada pelos defensores do vinil. “Fisicamente, na hora em que você coloca a agulha, ela extrai a informação daquela ranhura para propagá-la até o módulo amplificador do toca-discos, e enfim para a caixa. No espectro sonoro, ele vai compreender todas as amplitudes do som. Isso significa que graves, médios e todas as coisas que o ouvido, por vezes, não pode captar são sentidas pelo corpo”, descreve.
O DJ e produtor musical Felipe Del Pezzo concorda. “Mesmo nos discos novos tudo sempre vai ser digital. Porém, com amplificadores em estúdios modernos, ao prensar o disco, ao garantir a textura para ele, isso ganha qualidade e amplitude sonora, transmitida via agulha”, afirma. A diferença aparece: “Não é a mesma coisa do que um CD. Isso é nítido”. Del Pezzo ressalva a importância da qualidade da agulha, do amplificador como essencial para definir essa nitidez, e transmitir o som para as caixas com mais fidelidade. Mesmo transformando algo físico (a textura do disco) em algo eletrônico após a captação pela agulha, a riqueza de sons – graves e agudos – é maior, se captada em um bom aparelho, com boas caixas.
Além do fator sonoro, a criação artística envolvida em um disco é um diferencial. O formato da mídia exige preocupação estética com os desenhos das capas e dos encartes. Muitos entraram para a história. Dificilmente alguém ligado à música não reproduz instantaneamente em sua memória o prisma da capa do álbum The Dark Side of the Moon, do grupo Pink Floyd (1973). Ou mesmo os quatro homens de Liverpool atravessando a Abbey Road na capa do disco homônimo dos Beatles (1969).
As capas, como os cartazes de cinema, ganharam ar independente de obras de arte. O artista plástico Andy Warhol, papa da contracultura, chegou a desenhar uma de suas gravuras mais famosas – uma banana – na capa de Velvet Underground & Nico, da banda de mesmo nome. É possível que tenha assim contribuído para eternizar o álbum, de 1967, entre os mais míticos do rock. A capa do primeiro LP do grupo Secos & Molhados, em 1973, está entre as melhores da história, com suas cabeças pintadas servidas à mesa relembrando a antropofagia modernista.
Nesta época, já havia departamentos de criação gráfica voltados para discos. Capas viraram parte fundamental do produto. Em seu livro Do Vinil ao Download, André Midani afirma que as primeiras capas de discos brasileiros eram “monstruosas de feias”. Isso começou a mudar na segunda metade dos anos 1950: o executivo cita capas como as dos discos Caymmi e o Mar (1957) e o clássico Chega de Saudade, de João Gilberto (1958), entre outras.
Com a chegada dos CDs na década de 1980, a produção dos LPs, começou a virar coisa do passado. Vitrolas passaram a se tornar escassas, assim como sua manutenção. As mídias se tornaram menores, as músicas tiveram a amplitude de suas ondas espremidas em arquivos digitais. O popular MP3, por exemplo, causa discórdia. “O algoritmo de compressão mais conhecido, o MP3, exclui tudo o que o ouvido não capta. Geralmente, quem é mais ligado a música odeia a compressão pela perda de detalhes”, diz o operador de som Émerson.
Contudo, é notável a expansão contínua das mídias digitais. De acordo com dados de uma pesquisa da empresa de informação global Nielsen, feita em julho de 2014, nos Estados Unidos, até igual mês de 2015, o serviço de música por streaming teve aumento de 92,4% nas reproduções. Nesse modelo, o ouvinte não possui as músicas nem sequer em um arquivo – um servidor armazena determinadas composições, e o consumidor o acessa remotamente via internet. Para exemplificar, é possível citar o Youtube, o Deezer, o Spotfy, entre outros, alguns gratuitos, outros pagos. Já as vendas de discos cresceram a ordem de 38%. É algo a se levar em conta, visto que houve queda de 10% nas vendas dos CD no mesmo período.
No Brasil, a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) não contabiliza as vendas de discos de vinil em seus relatórios. Para a entidade, as vendas ainda são pequenas comparadas ao mercado de CDs e – especialmente – o streaming. “As vendas estão crescendo nos últimos anos, mas ainda são pequenas comparadas com o mercado de CD e streaming. Não acho que chegarão a ser expressivas”, acredita Edna Calheiros, assessora da associação, para quem o espaço do digital manterá o crescimento.
A única fábrica de discos da América Latina, a Polysom, sediada no Rio de Janeiro desde 2009, fruto de aquisições, ainda na década de 1990, de máquinas adquiridas das antigas Polygram e Continental, aposta na ampliação dos lançamentos. Para seu fundador, João Augusto, apesar de vantagens como a portabilidade e maior capacidade de armazenagem dos meios digitais, os discos possuem seu espaço pela “experiência tátil, visual e auditiva”. Eis novamente os sentidos a fazer com que, na visão de João Augusto, o vinil se torne “um objeto de desejo”.
Augusto reforça opinião do operador de som da Rádio Brasil Atual, e diz que, “basicamente, o som do vinil tem mais profundidade, além das possibilidades gráficas das capas”. Apesar dos maiores gastos, o empreendedor da Polysom aposta na ampliação do mercado. “A música ganha níveis tão elevados que até um dinheiro a mais passa a valer a pena”, afirma. Mesmo com a recente ascensão e retomada do mercado, o espaço das “bolachas” sempre esteve garantido ao lado dos saudosos colecionadores.
Felipe com a família: opção pelo vinil veio da essência da cultura
Filho de Felipe Del Pezzo, Lorenzo, de apenas 1 ano, começa a criar sua identidade sensorial a partir da música. Cercado de instrumentos e aparelhos sonoros, o pequeno sorri quando o som toma conta do ambiente. Para ele, a música parece ser natural e confortável, talvez por ter aprendido isso com seus pais. Felipe conta que sua conexão com a música começou cedo. “Sempre tive essa ligação. Meu pai toca teclado desde os 6 anos. Então, vem de berço.” Tal identidade levou o DJ a iniciar uma coleção com a mãe de Lorenzo, Marta Roldan, com 300 álbuns de rock, disco music, jazz, música clássica e MPB. “Minha opção pelo vinil veio da essência da cultura. A qualidade, a capa. Sempre digo que quem coleciona está preservando a cultura”, diz, nostálgico de épocas que não viveu.
Felipe é de outra geração. Tem 28 anos. Nascido em 1987, nem de longe viveu o auge do vinil. Mas sabe do que está falando, ao lembrar a trajetória do disco nos anos 1960. “Se observar a história dele, o músico tinha apenas um rolo para gravar e passar para o disco. Ele não podia errar. É um grande trabalho”, afirma. Hoje, o casal colecionador passa horas livres mantendo viva essa história, passada adiante para Lorenzo, que apesar de pronunciar poucas palavras já sente os efeitos da música.
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O primeiro bolachão não se esquece
Com 10 mil discos na estante, Zuza é enfático ao falar sobre a qualidade dos LPs. E destaca também o “lado lúdico” do discoJAILTON GARCIA/RBAZuza e sua coleção de 10 mil discos: ferramenta de trabalho
O pesquisador e escritor Zuza Homem de Mello lembra bem do dia em que comprou o seu primeiro LP, nos anos 1950. Foi na antiga loja Sears, onde hoje funciona um shopping center, no bairro do Paraíso, zona sul de São Paulo. “Eu morava a meia quadra. No subsolo tinha uma loja de discos.” E o disco era Sinfonia do Rio de Janeiro, um 10 polegadas, com regência do maestro Radamés Gnatalli. Mas Zuza demorou a ouvir. “Eu não tinha oplayer ainda”, conta.
Esse disco não faz mais parte da coleção de 10 mil que ele preserva em sua casa. Com as mudanças de endereço, a obra de Tom Jobim e Billy Blanco se perdeu, mas Zuza preserva ainda muitos trabalhos da fase inicial do LP. E é enfático. “O vinil é comprovadamente o que tem melhor qualidade sonora entre todas as modalidades que surgiram na gravação. É infinitamente superior ao 78 rotações, ao CD e também ao MP3. Isso é comprovado.”
Ele explica: há alguns anos, o escritor participou de uma prova, com outros convidados, ouvindo canções de diferentes gêneros e em modalidades diversas, sem saber a origem do som. Todos atestaram que o vinil tinha mais qualidade. “O que é preciso considerar é que o LP sofre o desgaste físico quando usado”, lembra, acrescentando que uma boa manutenção garante a longevidade.
“O LP possibilitou a criação de uma arte, que é a arte da capa, que não existia no 78 e morreu com os CDs. Começa basicamente nos anos 50 e vai até 1982. Ou seja, mais de 30 anos de domínio absoluto e de evolução”, afirma Zuza, dando como exemplos, além da capa, a passagem do 10 para o 12 polegadas e do som mono para o estereofônico.
Discos são sua ferramenta de trabalho. Em dezembro, por exemplo, ele estava debruçado sobre boleros, ouvindo obras de Elvira Rios e Pedro Vargas, entre outros, para um capítulo de um livro sobre samba-canção. Mas Zuza também gosta de simplesmente manuseá-los.
“O LP tem esse lado lúdico, que também foi perdido com o CD. Você fica admirando a capa, lendo o texto da contracapa. É quase um contrassenso aquela coisa miúda (referindo-se aos CDs), parece coisa de anãozinho. É ridículo comparar. Tem encartes de LP que eram verdadeiros pôsteres, obras de arte.”
Para ele, esse “retorno” do LP pode ser atribuído, em parte, ao universo dos DJs, que usam o disco, em parte a saudosismo. E é para ficar.
“Alguns empresários buscaram máquinas que estavam encostadas, os discos voltaram a ser fabricados. Com isso, deixa de ser modismo e passa a ser uma vertente. Quem compra um LP é porque tem picape. E as fábricas voltaram a fabricar picapes. Esse movimento na indústria não é à toa. Acho que isso tende a permanecer”, diz, avisando que seguirá saboreando seus vinis. “O que eu tenho em casa de LP que não saiu em CD e nunca sairá é uma preciosidade”, afirma o pesquisador, pensando em Duke Ellington.
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