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segunda-feira, 16 de maio de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



De smoking, Roberto Carlos enfrenta as vaias com altivez e simpatia e canta com grande competência e discreta emoção o samba lento “Maria, carnaval e cinzas”, do paulista Luiz Carlos Paraná. Sai do palco muito aplaudido e para muitos é o melhor intérprete da noite. Mas quando foi anunciado o prêmio de “melhor intérprete” para Elis Regina, entendi que nossa música estava fora e fiz força para não chorar. Muita gente chorou quando foi anunciada a premiação: “Alegria, alegria” foi quarto lugar, “Roda-viva”, terceiro, “Domingo no parque”, segundo e “Ponteio”, a grande vencedora do “Berimbau de Ouro” de 1967, aplaudidíssima. Se Edu tivesse feito a letra para a música de Dory, certamente não estaria ali. Perguntado por uma rádio sobre qual a sua preferida, Edu foi sincero e elegante: “O cantador”.

Mas Gil e Caetano saíam do festival mais vitoriosos ainda. A música brasileira nunca mais seria a mesma depois daquela noite. No dia seguinte, em São Paulo, um jornal de crimes noticiava a final do festival em histórica manchete: “Violada no auditório”. Passada a euforia inicial pela conquista do “Berimbau de ouro” e o alívio pelo fim das tensões, Edu Lobo fez o circuito triunfal dos musicais da Record, assinou novo contrato com Marcos Lázaro na capota de um carro na Rua da Consolação, ouviu sua música maciçamente tocada pelas rádios e aos 24 anos estava consagrado. Mas se descobriu vazio e decepcionado: afinal, para que tanto esforço e tanta vontade de ganhar, tanto sofrimento e ansiedade? Edu acreditava, como outros românticos, no festival como uma competição de excelência musical, que não podia ser uma guerra de popularidade, com o público escolhendo as melhores, como nos programas de auditório. Depois das vaias, dos medos, das humilhações, de tudo o que aconteceu, depois da vitória, Edu começou a achar que os festivais estavam se tornando corridas de ratos, com gravadoras e televisões e empresários apostando em seus “cavalos”, estimulando a competitividade sem limites entre os compositores e gerando inveja, animosidade e ressentimento. Um circo romano para diversão do povo, na falta de maiores liberdades políticas. Chocado e desiludido, Edu inscreveu no II Festival Internacional, no Rio, a música mais triste, complexa e chata que já tinha feito, uma parceria com Ruy Guerra com  o sugestivo título de “Maré morta”. Esperava ser vaiado, queria ser vaiado, encomendou ao maestro Chiquinho de Moraes um arranjo de orquestra denso e sombrio: só a introdução da música tinha quase um minuto e o povo já começava a vaiar antes do canto. Edu sentia, estranhamente, uma espécie de conforto.

Em São Paulo, muito pelo contrário, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Guilherme Araújo comemoravam: deflagrada por eles, por sua audácia e criatividade, por seu sentido de oportunidade, estava em curso uma revolução dentro da música brasileira. Os prêmios interessavam menos: eles viam o festival como o evento e o momento ideal para a apresentação de sua nova maneira de fazer música brasileira. Depois dos Beatles e dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, o mundo musical não era o mesmo. Em Londres e na Califórnia, em Paris e em Nova York, o mundo estava pegando fogo, os jovens estavam começando uma revolução movida a sexo, drogas e rock and roll. A música brasileira, por melhor que fosse, não poderia continuar a mesma. E nem o país, cada vez mais fechado ao exterior pela paranóia dos militares com as idéias subversivas, que eram justamente o que mais interessava aos jovens rebeldes brasileiros. E a Caetano e Gil, que estavam subvertendo a música brasileira e fazendo um som elétrico e contemporâneo, popular e provocativo: um “som universal”. Reconhecendo a importância e vitalidade da jovem guarda e sua genuína identificação com a juventude, Caetano e Gil estabeleceram uma aliança com os ex-inimigos, que eram vistos e ouvidos como “alienados e colonizados” pelas esquerdas musicais. Mesmo sendo um grande sucesso popular, à jovem guarda faltava ainda o prestígio e o reconhecimento de artistas mais “culturais”. Caetano e Gil valorizaram a jovem guarda e romperam com o que consideravam a ditadura do “bom gosto” de classe média, com a estética stalinista da “esquerda nacionalista”, o isolamento internacional, o nacionalismo musical, o saudosismo bossa-novista. Caetano e Gil integram a “música brasileira” e a “música jovem” e deflagram a mais furibunda polêmica musical nacional desde Noel Rosa e Wilson Batista.

Na televisão, fui ardoroso defensor de Gil, Caetano e do “som universal” contra a fúria conservadora, nacionalista e provinciana dos jurados de “Um instante maestro”. Como o programa de Flávio Cavalcanti era o único júri musical da televisão e a final do festival tinha sido tão polêmica, era grande a expectativa pelo que diriam aqueles que o público acreditava serem os “especialistas”. No programa, alguns jurados lamentaram paternalmente o desvio
oportunista de tão promissores talentos e outros os acusaram agressivamente de traidores e mistificadores e daí para baixo; eu defendi a honestidade e generosidade das intenções deles, celebrei  entusiasticamente a novidade, sua liberdade, suas possibilidades.Votei publicamente em “Domingo no parque” como a melhor música. Mas também elogiei Edu, Chico e Sidney Miller. No calor dos debates, por um breve momento, me dei conta de estar ao mesmo tempo saindo de um festival, recém-julgado por um júri e pelo público, e estar  ali julgando os meus amigos e competidores, diante das vaias e aplausos do auditório.

Uma tarde de sábado estávamos vendo televisão na cobertura de Ronaldo, com Elis, Miele, Wanda Sá, Hugo Carvana, Paulo Garcez e outros amigos e, como fazíamos muitas vezes e era divertidíssimo, escolhíamos o pior dentro do pior, que é a programação de sábado à tarde. E entre as piores, nossa favorita era a TV Continental, de absoluta precariedade técnica e artística, paupérrima, onde os cenários desabavam, onde em preto-e-branco todo mundo parecia mulato porque as luzes eram fracas e parcas, lâmpadas explodiam ao vivo, os atores esqueciam as falas.

Mas naquela tarde tivemos uma surpresa: no vídeo da Continental, um grupo de jovens cantava e tocava músicas alegres, engraçadas e românticas. E havia neles um entusiasmo, uma simpatia e um talento que nos encantaram. A Ronaldo especialmente. O “Véio” se lembrava dele mesmo quando jovem no início da bossa nova. Os garotos do Grupo Manifesto — Guto Graça Mello, Mariozinho Rocha, Gracinha Leporace e outros — receberam no ar, ao vivo, um telefonema que pensaram que era trote. Mas quando aquela voz grave, potente, cristalina, repetiu seu nome ao telefone, era impossível ser uma imitação: Elis elogiou todo mundo, pediu para mandarem músicas para ela, para seguirem em frente. Depois Ronaldo falou, falamos todos, como fãs, entusiasmados com o frescor e a alegria da garotada. À noite nunca se bebeu tanto no barzinho do Leme onde o Grupo Manifesto se reunia. 

Depois do que aconteceu no festival da Record, com todas as músicas sensacionais que apareceram, com toda a polêmica, o II Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo no Rio de Janeiro, ficou bastante esvaziado. Mas antes mesmo de começar, já tinha a sua grande revelação, um jovem mineiro que tinha classificado as três músicas que inscrevera: Milton Nascimento com “Travessia”, “Maria minha fé” e “Morro velho”. O neguinho era um espanto. Magrinho, com um olhão assustado e um sorriso irresistível, nos foi apresentado numa reunião no terraço do apartamento de Augusto Marzagão, o diretor do festival. Todo mundo ficou besta com as músicas, eram de uma qualidade assombrosa. E além de tudo o neguinho tocava um violão soberbo e cantava espetacularmente com uma voz doce e potente: desde Elis não se ouvia um cantor tão bom. Sua música não se parecia com a de Tom, Chico ou Caetano, Vandré ou Gilberto Gil, era muito original e pessoal: era mais próxima do que faziam Edu Lobo e Dory Caymmi, mas também de John Coltrane e Miles Davis, com suas harmonizações complexas e seu fraseado sinuoso. O cara era um monstro. Mais um.

Mas Milton não ganhou o festival: “Travessia” foi segundo lugar e a vitoriosa foi a favorita do público, “Margarida”, do baiano Gutemberg Guarabyra, interpretada com grande alegria e entusiasmo por ele, Gracinha Leporace e o Grupo Manifesto. Gracinha era mesmo uma graça, 18 anos, afinadíssima, de cabelos curtinhos e minivestido branco, fez todo o Maracanãzinho cantar com ela o refrão “apareceu a margarida olê olê olá”. Apareceu uma estrela. Sua imagem encheu as páginas dos jornais e revistas, seu rosto estava em todas as televisões, o Rio de Janeiro se apaixonou por ela. E como cantava bem a menina! Edu Lobo ficou especialmente encantado, musical e pessoalmente. Como todo mundo. Sérgio Mendes também: quando chegou ao Brasil e ouviu e conheceu Gracinha, se apaixonou, e levou-a de volta com ele para a Califórnia, para ser uma das vocalistas do novo grupo que estava produzindo.

Para seu próprio espanto, Chico teve sua triste e melancólica “Carolina” premiada com o terceiro lugar. A música, ele contou, foi terminada literalmente nas coxas, num avião: ele não queria de jeito nenhum entrar no festival, mas tinha feito um acordo com Walter Clark para inscrever uma música em troca de rescindir seu contrato com a TV Globo como apresentador do musical “Show em Shell maior” ao lado de Norma Bengell. O primeiro programa foi um desastre, Chico sofreu como mestre-de-cerimônias, detestou tudo, e não apareceu para fazer o segundo. Como o festival precisava desesperadamente de grandes nomes entre os concorrentes, e Chico era o maior deles, a unanimidade nacional, Walter perdoou a multa e achou que fez um bom negócio. Como homem de marketing. Em São Paulo a coisa estava fervendo. Depois do festival, com a mudança da correlação de forças e  popularidades, a Record acabou com “O fino” e lançou o programa “Frente ampla da música popular brasileira”, dirigido por Solano Ribeiro, onde a cada segunda-feira se revezavam no comando Elis e Jair, Chico e Nara, Gil e Caetano e Geraldo Vandré.



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