Meu coração juvenil estava dividido entre o convívio hilariante e afetuoso com Ronaldo, que se tornara uma espécie de meu padrinho dentro da bossa nova e do mundo artístico, e a nova música que estava surgindo em volta de Carlos Lyra, Vinícius e Ruy Guerra, a que meus amigos da turma estavam fazendo. E que contrapunha em música, letra e atitude à velha bossa nova de Menescal e Ronaldo. Wanda Sá foi a primeira da nossa turma a gravar, o elogiadíssimo Lp Vagamente, com músicas inéditas de Menescal e Carlos Lyra e também dela mesma (a nossa “Encontro”) e de compositores da nova geração como Edu, Francis e Marcos, com arranjos de Lennie Dale e Eumir Deodato, Menescal, Tenório Jr. e Luiz Carlos Vinhas. Edu não gostava da música de Menescal e detestava Ronaldo, porque, além de tudo, arrastava uma asa para Wanda. Edu adorava João Gilberto e Tom Jobim, adorava tanto que logo descobriu que, no gênero, não poderia fazer nada melhor. E começou a procurar linhas de criação diferentes, buscando outros caminhos nas suas origens e lembranças, nas férias nordestinas, na água verde e morna da Boa Viagem, nos frevos e cirandas, nos xaxados e baiões.
Com Vinícius, fez uma bela e lírica “Canção do amanhecer” (“...vem raiando a madrugada... música no céu”) e uma outra, de batida afro: “É Zambi no açoite, ei, ei, é Zambi, É Zambi, tui tui, Tui tui, é Zambi...” Vinícius explicou que “Zambi” era um outro nome, uma variante de “Zumbi” (dos Palmares), e que a letra era um canto guerreiro, onde “tui tui” é uma onomatopéia de advertência, atenção, sons da noite e da floresta. Ah, bom. Como Vinícius se dizia “o branco mais preto do Brasil”, quem haveria de duvidar?
As duas se tornaram conhecidas no circuito das “Viniçadas” e das festas de violão, mas só quando fez “Reza” com Ruy Guerra é que Edu teve a sua primeira música gravada. Por Pery Ribeiro e logo em seguida pelo sonhado Tamba Trio. Foi o seu primeiro sucesso: “Laia, ladaia, sabatana, Ave-Maria ó meu santo defensor, traga o meu amor...”
Era o refrão sincrético, afro-brasileiro, de uma melodia forte e direta, apoiada em um ritmo que estava muito mais próximo de Boa Viagem do que de Copacabana. Um sucesso instantâneo que tornou o nome de Edu conhecido e gerou um convite de João Araújo para gravar um Lp na Philips. Mas Edu queria gravar na Elenco, o novo selo cult de Aloysio de Oliveira, de Caymmi e Tom, de Nara, Lennie Dale e Vinícius, com suas capas em preto-e-branco em alto contraste, com sua imagem sofisticada e exclusiva. Por insistência de Tom Jobim, de quem tinha se aproximado através de Vinícius, Edu acabou sendo contratado por Aloysio, que não simpatizava com as letras de Ruy, muito agressivas para seu gosto.
Mas o disco, com participação do Tamba Trio e arranjos de Luiz Eça, teve que esperar algum tempo até ser lançado: uma das músicas, justamente o carro-chefe do disco, tinha letra de Vinícius e teria que permanecer inédita até o fim do I Festival de Música Brasileira, promovido pela TV Excelsior, onde “Arrastão” estava selecionada entre as 36 finalistas. Para o Brasil pode ter sido péssimo, mas 1964 foi um ano maravilhoso para a música brasileira. E também para o cinema. E para o teatro.
Depois do estrondoso sucesso internacional do Getz & Gilberto, com “Garota de Ipanema” chegando ao número um da lista da Billboard, é lançado o Getz & Gilberto 2. Nara Leão lança com sucesso seu primeiro disco na Elenco, com músicas de Edu Lobo e Francis Hime em parceria com seu namorado Ruy Guerra. Carlos Lyra e Vinícius apresentam o sensacional score musical de Pobre menina rica, com várias canções que se tornam clássicos instantâneos como “Primavera” e “Sabe você”. Marcos Valle é grande sucesso nacional com “Samba de verão”, que logo em seguida é gravado por diversos artistas americanos e se transforma num dos maiores hits internacionais da música brasileira. Marcos parte para a Califórnia surfando na onda do sucesso.
Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, é o maior impacto cinematográfico do ano e um evento transformador de minha vida e de tantos outros que estavam na pré-estréia no cinema Ópera, na Praia de Botafogo. O filme não só recebeu uma delirante ovação no final como foi aplaudido em tela aberta várias vezes em suas principais sequências, como se estivéssemos num teatro ou num estádio e não num cinema. Na saída fui apresentado por Cacá Diegues a Glauber, que passaria a encontrar com frequência nos bares de Ipanema e na praia. Dory foi contratado para ser o diretor musical do show “Opinião”, criado por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Armando Costa e Ferreira Gullar e dirigido por Augusto Boal, com Nara Leão dividindo a cena com o sambista carioca Zé Keti e o compositor nordestino João do Vale. Numa tarde de verão, olhando o mar de Copacabana, assisti fascinado a uma reunião no apartamento de Nara, com Boal falando sobre a necessidade de fazer oposição ao governo militar, de conscientizar o povo, de denunciar as injustiças, prisões e perseguições e de integrar a música com os movimentos populares. Acreditei entusiasmado que a generosidade dos propósitos superava as contradições entre aquelas pessoas, naquele lugar, naquele momento.
Nara não era mais a musa da bossa nova, mas da oposição. No Teatro de Arena, no segundo andar de um shopping center semi-acabado em Copacabana, com escadas rolantes que não rolavam, a estréia do show “Opinião” foi um triunfo. Textos curtos e políticos, provocativos e emocionantes, num espetáculo aparentemente despojado mas de concepção sofisticada, ligavam as músicas cantadas por Nara, Zé Keti e João do Vale, que denunciavam a miséria e a opressão e celebravam a liberdade e a solidariedade. O público explodia em aplausos todas as noites e era como se a ovação fosse uma vaia ao governo militar.
De camisa masculina vermelha, calça caqui e tênis conga, Nara desafiava e protestava, encantava o público. Acompanhada por Dori Caymmi, ela parecia muito à vontade cantando os sambas de morro de Zé Keti e os ritmos sertanejos de João do Vale e realizava com sucesso a integração entre as fontes musicais populares e o sofisticado pensamento de esquerda internacional. Depois do teatro, a onda era ir para o Zicartola, restaurante do recém-“descoberto” mestre Cartola e de sua mulher Zica, no Centro da cidade, para comer carne-seca e ouvir “samba autêntico”. Ou então para a gafieira Estudantina Musical, na velha Praça Tiradentes, onde as garotas que freqüentavam a praia de Ipanema iam dançar samba puladinho, com orquestra ao vivo e, de preferência, nos braços de um bailarino local, se possível de terno branco e sapato bicolor. “Populismo sexual”, rosnavam os ressentidos e abandonados nos bares de Ipanema.
O hino desse tempo é a “Marcha da quarta-feira de cinzas”, uma belíssima e melancólica marcha-rancho de Carlos Lyra com uma letra emocionada de Vinícius metaforizando o golpe militar que acabou com o carnaval da liberdade. “E no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade...” E nunca se cantou tanto. Cartola e Nelson Cavaquinho, grandes mestres do samba carioca, começam a ser cantados nas festas dos jovens da Zona Sul do Rio. Os antes ignorados ou abominados baiões de Luiz Gonzaga e xotes de Jackson do Pandeiro recebem nova leitura, que se queria nacional e libertária, de participação e de oposição.
No Teatro de Arena e na Estudantina, poucos souberam e muito poucos celebraram os quatro Grammies ganhos por Tom Jobim, João Gilberto e Astrud com “Garota de Ipanema”, derrotando os Beatles e Elvis Presley. Nos bares de Ipanema, muitos já os (ou)viam como artistas politicamente alienados, produzindo música americanizada. O Vinícius de “Garota de Ipanema” era falso e inútil: o verdadeiro e engajado era o da “Marcha da qua rta-feira de cinzas”, vociferavam jovens barbudos para jovens cabeludas.
As gravações do “Seis em Ponto” foram um tormento para mim (e imagino que para meus companheiros e para o técnico de gravação Umberto Contardi) e certamente o momento em que me dei conta de que talvez não desse para aquilo. Os dedos se embaralhavam, as unhas roídas produziam uma sonoridade abafada e escorregadia nas cordas que me doía no ouvido. Foi penoso manter o ritmo razoavelmente preciso. Os “improvisos” eram todos escritos por Francis e cada um decorava o seu, mas Alberto, como tinha muitos solos e não lia música, escrevia por extenso no papel: dó-sol-fá-mi-mi-fá.
Apesar do excelente repertório, com quatro belas canções de Francis, novas músicas de Tom Jobim e Carlos Lyra e da fina flor da nova geração (Edu, Marcos, Theo de Barros), apesar dos textos de apresentação generosos assinados por Ronaldo Bôscoli e Tom Jobim (“sinto neles os perfumes da terra brasileira...”), não podia mesmo ter dado certo. Para mim a gota final foi um pequeno solo de violão num andamento proibitivo para minha precária técnica e, depois de incontáveis tentativas, desisti. Fomos tomar um café e encontramos o trombonista Raul de Souza, uma das estrelas do Bossa Rio de Sérgio Mendes, zanzando pelo estúdio. Foi ele que tocou o meu “improviso” com seu trombone no primeiro e único disco do “Seis em Ponto” e contribuiu decisivamente para que eu começasse a me orientar em direção às letras de música e, vá lá, ao design. Quando não estava ensaiando com o “Seis em Ponto” ou ouvindo e falando de música, cheguei a pensar em estudar Arquitetura — para não virar “seu Nelsinho”. Mas acabei optando por um vestibular duríssimo, mais de 300 candidatos para 30 vagas, para entrar na ESDI — Escola Superior de Desenho Industrial —, então no seu segundo ano de funcionamento, a menina dos olhos do governo Carlos Lacerda e uma de suas iniciativas mais progressistas.
Uma escola-modelo de altíssimo nível, com professores da Hochschulle fur Gestaltung, de Ulm, da Parsons School of Design americana, e gente do calibre de Décio Pignatari para ensinar Teoria da Informação, Aloysio Magalhães e Alexandre Wollner para Comunicação Visual, o crítico Flávio de Aquino para História da Arte e Zuenir Ventura para Comunicação Escrita. Mas existiria mesmo isto, o: “design brasileiro”, a tal “forma brasileira” que buscávamos?, nos perguntávamos enquanto matávamos aula de Lógica Matemática no boteco. A Escola era equipadíssima: tinha biblioteca, laboratórios fotográficos e oficinas de metal, de madeira e de gesso. Além de 30 professores, tínhamos à nossa disposição até uma moviola de 35mm, uma das duas ou três do Rio, que jamais utilizamos, embora tivéssemos aulas de cinema no currículo. Na moviola da ESDI seriam montados alguns dos grandes filmes do Cinema Novo como Terra em transe, de Glauber Rocha, e A grande cidade, de Carlos Diégues, que testemunhei praticamente plano a plano no melhor curso de cinema que uma escola poderia oferecer. Foi onde conheci Arnaldo Jabor, Gustavo Dahl, Eduardo Escorei, e estreitei a amizade com Glauber Rocha.
Mais do que um encontro com a forma e o design, entre a arte e a indústria, a ESDI seria para mim, além das amizades, romances e aventuras da convivência universitária, a revelação da arte moderna e do concretismo dos irmãos Campos através das aulas apaixonadas de Décio Pignatari. E também o início de um caso de amor com o nascente Cinema Novo, que era tão diferente na forma e no conteúdo, mas parecia tanto no ânimo e na fé com o início da bossa nova. Com o fracasso do disco do “Seis em Ponto”, comecei a fazer letras para músicas de Dori Caymmi.
A primeira foi “O velho pescador”, uma bela e complexa melodia que me inspirou uma letra em que um velho pescador, cansado do trabalho e do perigo, no fim da vida contemplava desconsolado o horizonte e desejava morrer no mar. Eu tinha 20 anos e minhas experiências marítimas se resumiam à praia de Ipanema e um ou outro passeio de barco pela Baía de Guanabara. Mas adorava as músicas do velho Caymmi, com as quais aprendi que era doce morrer no mar, que os pescadores querem se casar com Iemanjá, e os livros de Jorge Amado, que li ávida e repetidamente durante a adolescência e através dos quais me encantei com a exuberância e sensualidade da Bahia, que conhecia só de ouvir falar. E nunca tinha visto um saveiro. “Minhas mãos já não fazem mais a rede voltar e meus olhos são tristes por não verem o mar...”
“O velho pescador” foi nossa primeira gravação e considerada pela crítica uma das melhores faixas do primeiro disco solo de Luiz Eça, o criador do Tamba Trio, celebrado como um dos melhores do ano. A gravação era só instrumental, sem vocal nem letra, com o piano exuberante de Luizinho cercado por uma formidável massa de cordas em movimento: Luiz Eça e cordas revelava a extraordinária musicalidade de Dory Caymmi, sua originalidade harmônica e melódica, e poupava o público das contrafações jorjamadianas de um garoto de
Ipanema, que sonhava com a Bahia e de peixe não gostava nem para comer. Depois fizemos “O mar é meu chão”, na mesma praia, agora com um pescador que vai morar no campo e sofre com saudade dos perigos do mar. Sérgio Mendes ouviu e adorou: gravou-a nos Estados Unidos, com lindíssimo arranjo de orquestra de David Grusin, produzido pelo legendário Nesuhi Ertegun. Mas a letra continuava inédita: o disco também era todo instrumental, piano e orquestra.
Foi na ESDI que fiquei sabendo, antes de Edu e Vinícius, que “Arrastão” era uma das 36 selecionadas entre centenas de músicas concorrentes do festival, entre elas minha parceria com Dory Caymmi, “Saveiros”. Meu querido mestre Décio Pignatari tinha feito parte da comissão de seleção em São Paulo e me antecipou o resultado oficial. Decepção: nosso saveiro não tinha zarpado. Mas a música que mais tinha impressionado Décio era de um garoto de São Paulo, talvez um japonês, chamado Taiguara. Concretista e modernista militante, Décio, que adorava o “É sol/ é sal/ é sul” de “Rio” (Menescal e Bôscoli), tinha gostado das interações entre “ilha” e “Cecília” da letra. Para ele era a favorita.
Eu conhecia Taiguara, que não era japonês, mas uruguaio, de São Paulo, onde cantava todas as noites no Juão Sebastião Bar com o balançadíssimo Trio Sambalanço de César Camargo Mariano. Taiguara tinha belo timbre, grandes recursos vocais e muita musicalidade, era jovem e simpático e um pouco exagerado em suas interpretações e firulas vocais. Mas cantava e compunha bem, e “Cecília”, que era apenas uma balada assim-assim, revelou mais o cantor do que o compositor quando foi apresentada no festival. O mestre tinha exagerado no entusiasmo. Quando souberam que estavam nas finais, Edu e Vinícius imediatamente pensaram em Elis Regina para cantar “Arrastão”. E Solano Ribeiro, diretor do festival e namorado de Elis, também.
Na tela da televisão em preto-e-branco, onde a vi pela primeira vez, Elis Regina parecia bem baixinha, estava sentada numa escada cenográfica, com uma saia escura curta e uma blusa clara de mangas bufantes, rindo e abrindo os braços e cantando. Os cabelos eram pretos e fartos e formavam um horrendo capacete de laquê, as sobrancelhas grossas e a maquiagem carregada lhe davam um ar adulto e vulgar. Ela ria muito e mostrava mais a gengiva do que os dentes pequenos, e um ligeiro estrabismo se acentuava com seu nervosismo. Mas aquela garota de 18 anos cantava uma barbaridade, cantava muito mais do que todas que a gente tinha ouvido. No fim da música já não parecia tão feiosa assim. Era uma imagem radiante de talento e energia. As garotas modernas da turma debocharam das suas roupas e cabelo, os garotos da bossa-jazz minimalista fizeram restrições a seu fraseado muito mais próximo de Ângela Maria do que de João Gilberto, mas todo mundo ficou besta com aquela voz.
Desde João não se ouvia nada melhor do que Elis. Ou seria Élis? Conheci Elis no estúdio Rio Som, nas vizinhanças da Praça Tiradentes, no coração do Rio Antigo. Um buraco horroroso que se pretendia um templo tecnológico, com uma mesa de som com cerca de dois canais comandada por um engenheiro de som americano, Norman Sternberg. Elis estava colocando voz em “João Valentão”, o clássico de Caymmi, com um arranjo audacioso e ultrajazzístico de Paulo Moura, uma das melhores faixas de seu primeiro disco para a Philips, que provocativamente se chamava Samba — eu canto assim. Era praticamente jazz.
Elis estava apaixonada pela música de Edu e escolheu três canções dele para gravar, “Aleluia”, “Resolução” e o sucesso “Reza”, duas de Francis (“Minha” e “Último canto”, com letras de Ruy Guerra) e um futuro clássico dos irmãos Valle, “Preciso aprender a ser só”. Levado por Edu, eu estava ali boquiaberto com o que estava ouvindo no “aquário” da técnica, quando ela entrou, toda espevitada e sorridente e me estendeu a mão: “Eu sou a Elis.” E não Élis, aprendi.
No final da gravação, Norman fez questão de tocar para nós um disco recém-chegado da nova maravilha americana, da sensacional revelação que estava arrebentando nos Estados Unidos: Bárbara Streisand cantando “People”. Todo mundo adorou e ficou impressionadíssimo. Eu também. Mas gostei ainda mais de Elis. Elis era a nova sensação do Beco das Garrafas. Ela e Wilson Simonal, um típico “mulatus copacabanensis” e discípulo de Carlos Imperial, que enchia as casas com seu suingue e simpatia, sua malandragem carioca, sua voz de veludo afinadíssima, cantando sambajazz de primeira, com naipes de sopros, scats e firulas vocais, muitas vezes exagerados e às vezes de mau gosto, que faziam delirar as
plateias. Com todas as restrições que as brigadas gilbertianas poderiam fazer, era impossível negar que Simonal tinha todas as qualidades de que precisava um grande cantor popular no Brasil de 1964. Seu primeiro disco, Nova dimensão do samba, foi um espetacular sucesso nacional.
O Beco das Garrafas fervia, nos bares tocava-se cada vez mais alto, com mais músicos, cantava-se cada vez mais “pra fora”. Com 19 anos, Elis, filha de uma lavadeira de Porto Alegre, e Simonal, 22, filho de uma lavadeira carioca, eram as melhores vozes e as maiores revelações da nova geração. A maior influência dos dois não tinha sido João Gilberto mas Lennie Dale, que introduziu no Beco das Garrafas o profissionalismo americano, os ensaios exaustivos, um jeito de cantar que aproximava o samba mais da Broadway do que do jazz, com um fraseado exuberante, uma ênfase nos ritmos dançantes e uma atitude extrovertida — em tudo opostos ao intimismo minimalista da bossa nova. O Brasil também estava muito diferente do tempo de “Chega de saudade”. João Gilberto e Tom Jobim não tinham nada a ver com isso: estavam nos Estados Unidos, fazendo shows e gravando discos, encantando e influenciando grandes nomes da música e da imprensa musical. O jazz americano nunca mais seria o mesmo depois da bossa nova. Nem a música brasileira depois de 1964.
1964 também foi um ano maravilhoso para Roberto, Erasmo e Jorge Ben. Roberto estourou um sucesso nacional com o rockabilly “É proibido fumar” e com o divertido rock “Um leão está solto nas ruas”, que tocaram em todas as rádios e TVs e bailes, e as crianças cantaram nas ruas. Até o Beco das Garrafas agora sabia que ele era um sucesso, e apesar (ou por causa) disso o desprezava. Jorge Ben se tornou uma das grandes estrelas do Beco, do Rio e do Brasil, lançando a seqüência de hits “Por causa de você, menina”, “Mas que nada” e o maior de todos, “Chove chuva”, onde estabeleceu um novo padrão de ritmo, aceito tanto pelos jovens fãs de rock dos subúrbios quanto pelos sambistas dos morros da Zona Norte e pelos músicos e ouvidos mais sofisticados de Copacabana. Não era nada de “misto de maracatu”, como ele dizia, era samba sim, heavy samba certamente, mas também era um misto de rock e de funk, uma batida diferente que antecipava o reggae.
A sensacional levada do violão de Jorge não era dedilhada, cheia de síncopes e sutilezas, acordes complexos e dissonantes: era com todos os dedos enormes, rasqueando, como se tocasse com uma palheta. Jorge integrava acordes básicos e melodias intuitivas com letras diretas e sonoras. Suas palavras eram puro ritmo e o violão soava como percussão: sua música era a melhor e mais animada novidade do momento. Ao contrário de Elis e Simonal, colegas de início de estrelato no Beco das Garrafas, Jorge compunha seu próprio material e se acompanhava com o violão. Não precisava de músicas de ninguém, nem de músicos: sozinho era uma banda.
Em São Paulo, 1964 foi um ano decisivo para Elis Regina. Com sua voz potente e seu temperamento explosivo, a baixinha foi o ponto mais alto do show da Faculdade de Odontologia, “Primeira dentisamba”, que Walter Silva produziu no imenso Teatro Paramount, se apresentando acompanhada pelo Jongo Trio, a resposta paulista ao Tamba Trio. Elis era gaúcha mas não tinha nenhum sotaque, nem paulista ou carioca, cantava numa perfeita dicção nacional, sua voz tinha a exuberância extrovertida dos grandes sambistas, o sentido harmônico dos grandes jazzistas, o volume e potência das grandes vozes. No show da Faculdade de Medicina, “O remédio é bossa”, Elis provocou uma explosão no auditório cantando uma nova música dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, que se tornaria um sucesso imediato, um de seus primeiros e maiores, “Terra de ninguém”, um hino à reforma agrária: “Quem trabalha é quem tem direito de viver pois a terra é de ninguém.” Só não saiu do palco carregada pelo público porque não quis.
No Rio, em suas cada vez mais freqüentes apresentações no Beco das Garrafas, Elis conheceu Lennie Dale, que era amigo de seu namorado Solano, e, como todos os jovens que o conheceram naquele tempo, se apaixonou pelo seu jeito apaixonado de ver e interpretar a vida como um espetáculo. Lennie não veio do jazz, veio da Broadway, dos sonhos dos grandes musicais, das coreografias provocantes em perfeita sincronicidade, das iluminações e cenografias luxuosas. Veio parar no Brasil quando as filmagens de Cleópatra, em Roma, e as sequências de dança romana — ou egípcia — foram canceladas. Fascinada pelo carisma de Lennie, por seu sentido de profissionalismo, tão diferente do jeito carioca relaxado dos músicos do Beco, Elis encontrou nele um grande amigo, um mentor, um mestre, a quem dedicou o seu disco Samba — eu canto assim.
De simpatia irradiante, Lennie era exuberantemente gay num tempo em que isto não era comum nem recomendável, castigado pelo machismo latino-americano com piadas e desprezo. Mas com Lennie ninguém folgava porque, além de bailarino atlético e ágil, com a agressividade e malandragem treinadas nas ruas de Nova York, ele era uma boa briga e uma parada indigesta para todos que desafiavam sua fúria e seu pavio curto de ítalo-americano. Como o Beco viu várias vezes, a bicha era machíssima. Mas normalmente Leonard Laponzina era um personagem doce e elétrico, alegre e entusiasmado. Chamando homens e mulheres de “baby” e falando rápido com seu sotaque forte e hilariante, cheio de gírias, aquele americano doidão e amoroso era querido por todo mundo e estava absolutamente apaixonado pela música brasileira, pelos rapazes cariocas e pela maconha baiana, que fumava o dia inteiro, em qualquer lugar, com grande naturalidade.
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