Por Francisco Bosco
Há muitos motivos para nos deslumbrarmos com a obra de Dorival Caymmi: a perfeição da relação entre letra e melodia, a originalidade incomparável das canções praieiras, o dengo dos sambas sacudidos etc.
Há, entretanto, um aspecto que nunca é observado, e que para mim é o mais importante: a arte de Caymmi é uma arte da saúde.
Essa evidência está por toda parte. Chama a atenção a abundância, em suas letras, do verbo “ter”, sempre no presente do indicativo. “Tem um requebrado pro lado”, “Essa nega tem segredo”, “365 igrejas a Bahia tem”, “é dengo que a nega tem”, “Tem pagode no mercado” etc. Essa insistência no haver, no que existe no mundo, é uma das manifestações de seu aferrar-se incondicional à imanência, à realidade. Sabemos, desde Nietzsche, o quanto idealismo e metafísica são sintomas de falta de saúde.
Com efeito, em Caymmi não há qualquer traço idealista (o que há é um olhar seletivo, que exclui de seu campo aspectos da realidade que não lhe interessam). Não há sinal de metafísica, a não ser a onipresença da religiosidade afro-brasileira, que não separa, contudo, orixás e homens, terra e céu, aqui e além.
Em seus sambas sacudidos, a Bahia retratada é erótica, concreta e afirmativa. As mulheres exercem seu poder sensual livremente pelas ruas, são fenomenais e fenomenológicas: elas são belas formas, em movimento, por espaços abertos e públicos. Não há interioridade em Caymmi, nem espacial, nem psicológica.
O grande Noel, por exemplo, está sempre psicologizando as mulheres.
Outros grandes cancionistas viriam a fazer o mesmo depois. Nos anos 1930/40, a mulher e a relação amorosa são objeto de conflitos. Ou a mulher é fingida, mentirosa, ou então é doméstica (quando o homem é boêmio), ou gosta mesmo é da orgia, deixando o pobre do seu Oscar no lar abandonado. Em Caymmi, não: na sua obra, o erotismo é livre, desencanado, aberto. O desejo é desimpedido; não há interdições, neuroses, todo o campo insalubre do psiquismo moralizado. O ensaísta Lorenzo Mammì aponta esse traço: “As letras de Caymmi falam da liberdade de ir e vir. Quem canta é o homem perfeitamente livre.” Não é por acaso que ele nunca canta o amor, com sua densidade psicológica constitutiva — a não ser em Doralice, para, justamente, maldizê-lo: “Doralice, eu bem que lhe disse/ Amar é tolice, é bobagem, ilusão.”
Quando adentramos o universo das canções praieiras, a saúde chega a seu ponto máximo. São canções que nos apresentam um mundo onde homens e mulheres estão de tal forma integrados à realidade, adequados a ela, que não fazem perguntas, apenas vivem respostas; não conhecem a interioridade, precisamente porque não se percebem apartados da exterioridade; nunca se dilaceram psicologicamente, mas apenas realmente. Trata-se de um mundo físico. Mundo da ação e do olhar, dos verbos e dos nomes. O antropólogo Antonio Risério observa que não há qualquer metáfora em todo o conjunto das praieiras, que ele chama de “leitura literal do litoral”. Com efeito, o mar de Caymmi é físico e existencial. Ele não é um mar ideológico, como o Mar morto, de Jorge Amado; nem o mar moral do Capitain Ahab, de Melville. Em Caymmi, o mar, quando quebra na praia, é bonito. O mar é o mar é o mar.
A ausência de metáforas é também reveladora. Metáforas são abstrações, são o signo do signo, o signo que se coloca no lugar de outro.
Essas substituições requerem afastamentos da realidade (mesmo que seja para reaproximar-se dela pelo mesmo lance, poeticamente). O helenista Bruno Snell observa que línguas primitivas têm uma abundância de palavras designadoras de coisas concretas, enquanto a abstração é um desenvolvimento tardio. O mundo das praieiras remete a esse universo fechado, primitivo, pré-moderno. Nele, como disse o teórico György Lukács a respeito das epopeias homéricas, “o fogo que arde na alma dos homens é da mesma natureza que as estrelas”.
A experiência moderna é, precisamente, a da fissura entre o homem e as estrelas. Na obra de Caymmi, essa experiência livre e angustiosa só se mostra plenamente no conjunto de seus sambas-canção, não por acaso a
parte menos pessoal de sua obra (comprova-o o fato de que apenas nela Caymmi se vale frequentemente de parceiros). Aí, as mulheres tornam-se abstratas, o erotismo transforma-se em amor que faz sofrer, o fenomenológico dá lugar ao psicológico. O mundo se parte, e essa fissura é ocupada pelo psiquismo complexo. Seu verso definidor: “A vida é aquilo que a gente não quer”. Esse intervalo entre o desejo e o mundo é o lugar da neurose, da doença.
Num pequeno grande livro, Modos de saber, modos de adoecer , o ensaísta Roberto Corrêa dos Santos diz que a literatura do século XIX é o conjunto que evidencia “as forças aniquiladoras do psiquismo sobre o corpo”. é verdade. Julien Sorel, Natasha Rostov, Anna Karenina, todos adoecem ou morrem por problemas afetivos. Roberto afirma que os pensamentos terapêuticos de Freud e Nietzsche nascem da pressão de se inventar uma saúde para essas doenças da alma. As grandes obras do alto modernismo — Joyce, Musil, Beckett, Kafka etc. — seriam herdeiras dessas terapêuticas. Nelas, não se aposta mais nas interioridades, mas sim “nas exterioridades formais, postas no texto, e não na alma, como jogo”.
Ocorre, entretanto, que, escrevendo textos cheios de saúde, “quase todos adoeceram”. Caymmi, não: sua obra é feita da mesma saúde exuberante da sua vida, finda apenas aos 94 anos de idade. Pouco antes, ele declarara: “Não sou de dores nem queixas.”
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