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terça-feira, 31 de março de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




"Ela é minha cara", de Ronaldo Bastos e Celso Fonseca, recolhe e dá um passo além na mitologia da maria-boa, da maria-escandalosa. Da mulher que quando passa mexe ("causa rebuliço") com o juízo do homem que vai trabalhar. Ela é a poesia que balança e acende desejos interferindo na vida ordinária. Sereia, "seu palácio vai do Leme ao Pontal": não há nada igual.

A canção dá um passo além quando brinca com o mito de Narcissos: aquele que, punido por Afrodite, enamorou-se por sua própria imagem - passando a achar "feio o que não é espelho". Se Narcissos, tentando aproximar-se da imagem, morre afogado em águas tranquilas, o sujeito de "Ela é minha cara" canta a flor do desejo: da perda-de-si diante do espelho.

Embriagado - por uma cachaça que desce redondo -, o sujeito investe nas filigranas que unem a imagem dela (da "fulana de tal": o nome pouco importante) à imagem que ele próprio tem de si. A visão desta mulher leva o sujeito para dentro do espelho: para o país das delícias.

Tal mensagem encontra na voz de Mart´nália (Madrugada, 2008) a tradução exata. Menino do Rio, Mart'nália androginiza o canto. Desenha, na dicção malandra e no suingue carioca, a figura da mulher que é uma extensão de si: "há quem diga que parece um rapaz".

"Ela é minha cara", diz o sujeito. "Cara" como sinônimo de imagem e semelhança física, mas também de postura diante da vida: jeito de corpo. Ela "é gente bem", "é o colírio da moçada", "é o jazz", "é só a mina que enfeitiçou o coração", afirma o sujeito.

Sujeito e musa se aproximam de viés: depois do susto - da potência da cachaça descendo pela garganta - a afirmação da vontade - "a minha mais entre as dez mais". No final, no completo despudor, o sujeito já não tem receio de nada: "Vai que um dia pinta um clima / Ela vem parar na minha / e eu vou comer na sua mão".

A tal mulher de bem que não dá mole a ninguém, mas que quando chega pára a batucada, tenciona o desejo inconfesso - reprimido e recalcado - naquilo que não sabemos definir. O modo - entre o sim e o não - com que a mulher afirma a própria vida, condensando em si a mina e o rapaz, desestabiliza as certezas que a sociedade cria para si.

Ela coloca todos diante do espelho: indaga nossos desejos, põe mundos de pernas para o ar. A verdade é posta em questão. Mesmo (e por isso) parecendo um rapaz, "ela é o colírio da moçada" e "quem fala é louco pra encarar", entrega o sujeito.

"Ela é minha cara" articula uma rede inquietante dos nossos desejos em um labirinto de espelhos. Nudez total do sujeito e nossa: do ouvinte cheio de verdades porosas.


***

Ela é minha cara
(Ronaldo Bastos / Celso Fonseca)

Causa reboliço aonde passa
desce mais redondo que a cachaça
Ela é a fulana de tal
o seu palácio vai do Leme ao Pontal
É a minha mais entre as dez mais
Ela é gente bem
Por isso mesmo não dá mole a ninguém
Mas um dia eu faço ela sambar
Ela é o colírio da moçada
Quando chega pára a batucada
Ela é o jazz
E há quem diga que parece um rapaz
Mas quem fala é louco pra encarar
Ela é minha cara
e nem me olha quando a gente se esbarra
Mas um dia eu faço ela sambar
Tira onda de grã-fina
Mas para mim é só a mina
que enfeitiçou meu coração
Vai que um dia pinta um clima
Ela vem parar na minha
e eu vou comer na sua mão




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

domingo, 29 de março de 2015

25 DE JULHO DE 1985: MORRE CARLOS GALHARDO, O CANTOR QUE DISPENSA ADJETIVOS

No ano em que completa-se 30 anos que o grande intérprete faleceu o Musicaria Brasil relembra-o através do Jornal do Brasil


Morre Carlos Galhardo. Jornal do Brasil: Sexta-feira, 26 de julho de 1985.

Foi-se o homem, não se calou a voz, eternizada em mais de 1200 musicas gravadas. Era o penúltimo ídolo vivo de uma extraordinária geração de cantores românticos dos anos 30 e 40: a Era do Rádio. À ocasião de sua morte, Sylvio Caldas, o Caboclinho Querido, ficara único sobrevivente.

Já tinham morrido Francisco Alves, o Rei da Voz e Orlando Silva, o Cantor das Multidões.

Castelo Carlos Guagliardi, filho de italianos, nasceu em São Paulo no dia. Mas foi no Rio que cresceu. E curiosamente, foi no banheiro - à falta de outro espaço - que ensaiou e ganhou coragem para um teste na Rádio Educadora do Brasil.

Chamado de Rei da Valsa, na verdade a voz de veludo e falsete permitiu-lhe a ousadia de cantar de tudo: marchinha, samba, blues... interpretando a maioria dos grandes compositores brasileiros. Performance consolidada em uma carreira de mais de 50 anos com a fidelidade de um público próprio, razão de emoções e desmaios por onde passava, o então intitulado Cantor que dispensava adjetivos.

Galhardo nunca escondeu a influência de alguns amigos no início da sua vitoriosa trajetória, como Alberto Simões, o Bororó, violinista que o acompanhou quando cantava no banheiro para o primeiro teste no rádio.

Fiel às amizades, sobretudo as que construiu na aurora da vida artística, Galhardo surpreendeu e emocionou os que o entrevistaram para uma gravação no Museu da Imagem e do Som. O diretor da casa, Ricardo Cravo Albim, transmitiu-lhe a notícia da morte de Alberto Ribeiro. Galhardo silenciou por segundos, enxugou uma lágrima, pediu desculpas pelo pigarro que tentava esconder a emoção e recordou Alberto, dizendo que ele e outro monstro da música popular brasileira - o compositor João de Barro - tinham sido fundamentais no seu engatinhar para a fama. Tanto havia que contar, naquela tarde no MIS, que Galhardo não sabia se falav de sua vida ou se comentava e cantava seus maiores sucessos.Recordou Carolina, de Lamartine Babo, o primeiro sucesso de carnaval; depois a primeira valsa de Ataulfo Alves, e foi versejando maravilhas que o tempo da entrevista se tornou curto para gravar. Mas recordou sucessos inesquecíveis.

Galhardo nunca se considerou um superado pelo tempo. "Estou nascendo outra vez", repetia sempre que anunciava ou cantava uma música moderna. Fez teatro e cinema. Participou de várias peças no Rival, entre elas A Canção da Felicidade e A Bela e a Fera. Mas seu forte era cantar - e cantar no rádio, à época em que o rádio era a televisão sem imagem. E nunca deixou de cantar pelo Brasil afora, em memoráveis excursões.

"O romantismo vai existir sempre. Sempre enquanto houver dois corações". E, entremeando os versos aos comentários: "Gosto de saber que inspirei paixões. No meu tempo de juventude era chamado de o gostosão. Mas nunca fui mulherengo. Só me dediquei a uma mulher, Eulália, com quem estou há anos". 

Este era o homem com a valsa na alma do cantor. Foi-se o homem. Ficou a voz.


Fonte: www.jblog.com.br

quinta-feira, 26 de março de 2015

HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO CELEBRA 80 ANOS AFIRMANDO FASCÍNIO PELO FORA DO COMUM

Com livros e série de shows, o produtor, poeta e letrista diz ser fã da estranheza


Por Leonardo Lichote


Criador. “Desde criança, em meu primeiro emprego, tento manter uma margem de felicidade no meu trabalho” - Ana Branco / Agência O Globo

RIO - Às vésperas de completar 80 anos, no dia 28 de março, o produtor, poeta e letrista Hermínio Bello de Carvalho repassa sua vida em casa, cercado de parte do seu vasto passado — o manuscrito de “Piano na Mangueira” com dedicatórias dos autores Tom Jobim e Chico Buarque, fotos de seu mestre inspirador Mário de Andrade (“O verdadeiro nacionalismo foi ensinado por Mário de Andrade: ter os ouvidos atentos a tudo o que há de bom no mundo”, disse certa vez), um vaso de vidro que traz estampado o poema que Drummond escreveu em sua homenagem e é cheio até a boca de peões e bolas de gude, a placa da parede da Taberna da Glória (“As mercadorias expostas são para uso exclusivo da casa”), onde ele ouviu Clementina de Jesus cantar pela primeira vez. Parceiro de grandes como Cartola, Dona Ivone Lara e Paulinho da Viola, responsável por marcos como o espetáculo “Rosa de ouro” — cuja estreia acaba de completar 50 anos (leia abaixo) — e o Projeto Pixinguinha, ele já foi mais de uma vez apontado como um anjo (“mulato de cabelos brancos e olhos verdes”, como já se definiu) que impulsiona a beleza apolínea, perfeita, divina da música brasileira. Mas é dionisíaca e profana a fala que sintetiza o espírito que o moveu e o move — em meio a novos projetos e homenagens pelo aniversário — através das notas, dos versos, da vida:

— Tenho uma atração quase sexual pela estranheza — diz, listando exemplos. — A rouquidão de Louis Armstrong, a dramaticidade misturada à languidez e ao torpor da bebida de Billie Holliday, o ineditismo do canto de Aracy de Almeida, o violão e a voz de Nelson Cavaquinho, a estranheza introspectiva de Zezé Gonzaga, que cantava como se passasse uma pátina de ouro pela canção. E Clementina. Quando a ouvi, tive materializada toda a estranheza fascinante que poderia imaginar.


Ele levanta, apoiado na bengala que o acompanha (“Estou com um problema na perna”) e põe um disco. Flamenco. Entra a voz rascante, cheia de melismas mouros. Ele fecha os olhos e sorri, como se a estivesse ouvindo pela primeira vez.

— Aos 17, 18 anos, ouvi Pastora Pavón (cantora espanhola conhecida como La Niña de los Peines) — diz, apontando para um retrato dela em sua parede. — Ela tinha dentro de si um animal ferino. Quando fui conhecê-la, em Sevilha, tive surdez por emoção. De volta ao Brasil, ouvi Clementina. E só a entendi porque ouvi artistas como Pastora Pavón.

Hermínio identifica a estranheza mesmo na mistura que o formou como homem da música. Uma amálgama que inclui o início como artista mirim, em saraus nos quais cantava quando tinha por volta de 5 anos; as rodas de viola do avô Gregório na ilha da Gipoia, em Angra (“Minha avó preparava o farnel dele e ia remando no caiaque enquanto ele temperava a viola, depois deixava-o na ilha e ele só voltava quando vencesse o desafio”); a Rádio Nacional, como ouvinte e frequentador, onde conheceu mestres como Radamés Gnattali (“Pude ver coisas como o programa ‘Quando os maestros se encontram’, para o qual o Gnattali tinha um subtítulo, ‘os músicos se fodem’”), a escola pública onde estudou canto orfeônico; a igreja e o canto gregoriano (“Era um carola de primeira”); o Teatro Municipal dos Concertos para a Juventude. Uma formação ampla que desembocou na música popular:

— Quando saiu o disco de Aracy cantando Noel (de 1950), com capa de Di Cavalcanti, arranjos de Radamés, vi uma obra de arte completa: música, letra, arranjo, capa. Queria estar nesse lugar.

Em discos, letras e poemas, foi nesse terreno — da comunicação popular de alta nobreza (rimando com estranheza) — que Hermínio trafegou nas últimas décadas. E segue. Tem um livro de poemas inéditos a ser lançado pela Folha Seca, “Meu zepelim prateado”, e outro com 50 crônicas ilustradas pelo cartunista Bap. Além disso, um disco preparado (“Falta só o patrocínio para gravar”) com o parceiro Vidal Assis, de 29 anos. E, no segundo semestre, o Centro Cultural Correios abrigará a série “Hermínio aos 80”, com quatro shows com recortes temáticos sobre sua obra.

— Desde criança, em meu primeiro emprego como entregador de roupas, levando sutiãs a rendez-vous, tento manter uma margem de felicidade no meu trabalho. Aos 80, as coisas não são fáceis. Tenho muito material para publicar, começo a ter medo do tempo. Nessa idade, ele é decisivo. É hora de avaliar, jogar fora o que não presta. Mas medo da morte, não tenho. Tive câncer duas vezes, um AVC e um infarto. Mas consigo ter ideias e sonhar. Quando perder isso, visto a mortalha e fico esperando.


LEIA POEMA DE HERMÍNIO DO LIVRO “MEU ZEPELIM PRATEADO”:

A estrutura é quase a mesma
de um balão, quase:
ao invés de papel celofane,
uso o de crepon, Prateado, porém, esclareça-se:
Sua carcaça rudimentar a inflo com um leve sopro,
e ele,o zepelim, vai tomando sua forma.
Observo sua confecção em suas minudências:
ao invés de goma arábica,
colei suas partes com uma cola artesanal,
daquelas antigas – feitas de água e trigo.
Enfim, a de um balão desses que em festas juninas
Sobem sobem soprado ao sabor da vadiagem dos ventos.
Meu zepelim, leva uma carta de bordo
com instruções detalhadas para seu uso.
Carta, não: uma folha de papel pentagramado
para eventual uso de seus tripulantes –
uma banda de músicos iguais ao do yellow submarine
e minúsculas caixas de sons, mas de alta potência,
acopladas à sua estrutura...
E, sim: um estroboscópio
com seu respectivo manual.
Passará silencioso, num primeiro momento.
Só estrugirá sua música quando passar.
Melhor dizendo: quando, voando ao sabor dos ventos
sobre aldeias distantes em países mais distantes ainda.
E então irá parir melodias antes nunca ouvidas
pelos ouvidos dito humanos (e por
vezes tão desumanos) e se deixará sangrar e respingará seu suor
feito de sopros, cordas e corais
por sobre as paragens onde sua sombra se projetará
nos telhados nas ruas nos rios, nos boizinhos voadores de Chagall –
o combustível desse meu zepelim leva guardado
um matulão de utopias e sonhos delirantes –
ele, arauto enunciador de um novo tempo.

Fonte: O Globo

GRAMOPHONE DO HORTÊNCIO

Por Luciano Hortêncio*





Canção: Vai saudade

Composição: Osmar Zan e Zito Vieira

Intérprete - Mário Zan

Ano - 1962

Gravação - RGE 10379b, matriz RGO2539.



* Luciano Hortêncio é titular de um canal homônimo ao seu nome no Youtube onde estão mais de 5000 pessoas inscritas. O mesmo é alimentado constantemente por vídeos musicais de excelente qualidade sem fins lucrativos).

quarta-feira, 25 de março de 2015

BIBLIOTECA DIGITAL DE MÚSICA REÚNE 230 FAIXAS





Por Ailton Magioli


O No ar há desde fevereiro, no endereço www.cinemusic.com.br, a Biblioteca Digital de Música para Cinema, Vídeo e Multimídia, criada pelo músico Andersen Viana, pretende atrair a atenção de artistas interessados em trilhas para suas criações. Autor de trilhas sonoras para espetáculos de teatro (Gardel, uma lembrança, de Manuel Puig) e de dança (Suíte floral, da Cia. Eliana Cobett), além de uma para o longa-metragem Corações ardentes, de Paulo Augusto Gomes, o músico, que é irmão de Marcus Viana, reconhecido autor de trilhas para novelas, acaba de disponibilizar 230 faixas de sua autoria, compostas desde 1978 até o ano passado.

“Quem quiser utilizar o material para fazer uma compilação, faz contato com a gente, assina um termo de compromisso e paga valores acessíveis”, garante Andersen, cujo projeto foi viabilizado através do Fundo de Projetos Culturais da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte, que disponibilizou para o artista cerca de R$ 70 mil para a produção do portal. “Claro que para utilização do material em uma campanha de publicidade os valores serão outros”, diz o música, cuja ideia inicial foi atender os diretores de teatro, cinema e dança, além de profissionais de Power Point.

“Tenho feito isto ao longo dos anos. Gravo o material, eles ouvem e, à medida que se interessam por ele, fazem contato para que possamos disponibilizá-lo”, explica Andersen Viana, salientando que a assinatura do áudio será só para fruição. “Feito o contrato, o cliente irá receber um link para baixar a obra.”

Novidade no Brasil, as bibliotecas do gênero já são comuns na Europa e em outras regiões. “Eu mesmo participo de bibliotecas da Inglaterra, onde isso já é uma prática”, afirma Andersen. Segundo contabiliza, com as 230 faixas disponibilizadas inicialmente ele teria cerca de 18 discos, considerando-se que atualmente um disco é composto por 13. A expectativa do músico, que já é fornecedor de bibliotecas internacionais, é de que a aceitação do serviço seja boa no Brasil. “Lá fora há bibliotecas que já disponibilizam até 50 mil faixas.”

Viana prevê que “essa ideia deverá mexer com o brio dos estúdios, já que irá facilitar muito a vida das companhias de teatro e de produtoras de cinema que não vão mais precisar contratar ninguém para criação, produção e gravação de suas trilhas. Está tudo pronto”.

Irmão do também músico Marcus Viana, Andersen Viana é Ph.D em música pela Universidade Federal da Bahia e atua como maestro-compositor, produtor cultural e professor da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes, de Belo Horizonte. Andersen iniciou os estudos com o pai, Sebastião Viana, que foi assistente e revisor de Heitor Villa-Lobos, estudando, posteriormente, em instituições musicais do Brasil, Itália e Suécia.

IVOR LANCELLOTTI, 70 ANOS

Completados ao longo mês de março, o cantor e compositor Ivor chega as sete décadas de existência



Iniciou sua carreira artística em 1972, participando do Festival Universitário da TV Tupi (RJ), com sua canção "Estrada", defendida por Marisa Gata Mansa. 

Em 1978, realizou seu primeiro show, "Encontro de amor", ao lado de cantora, no Teatro da Galeria (RJ).

Gravou, em 1986, o LP "Cantador de rua" e, quatro anos depois, o LP "Ivor Lancellotti". 

Em 2000, lançou mais um disco com o seu nome, registrando canções de sua autoria como "Nas asas da ilusão", "História renovada" (c/ Sérgio Natureza) e "Amor alheio" (c/ Paulo César Pinheiro). Constam da relação dos intérpretes de suas canções diversos artistas, como Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Beth Carvalho, Roberto Carlos, João Nogueira, Nana Caymmi, Alcione, Joanna, Cauby Peixoto, Nélson Gonçalves e Ângela Maria, entre outros. Destacam-se, entre seus maiores sucessos como compositor, as músicas "Sem companhia", "Vai ser tão fácil", "Às vezes faz bem chorar", "Talismãs", "Abandonos", "De amor e coisas amigas", "Velha cicatriz (Convite)", "Amor alheio", "Como é que pode?" e "Trocando venenos".


Discografia Oficial

Cantador de rua (1986)

Faixas:
01 - Jograis
02
 - Pergaminhos
03
 - Casamento
04
 - Maria Beira do Rio
05
 - Sem companhia
06
 - Peregrino
07
 - Luz e sombra
08
 - Talismãs
09
 - Cantador de rua
10
 - Anti-missa


Ivor Lancellotti (1990)


Faixas:
01
 - Serenata da noite
02
 - Rastro de perfume
03
 - Só uma vez
04
 - Olhos de mel
05
 - Toda palavra
06
 - Topei com você
07
 - Eu e você
08
 - De coisas amigas (com Luciana Rabello)
09
 - Pra minha filha
10
 - Labirinto



Bolero eterno (1998)

Faixas:
01
 - Nas asas da ilusão
02
 - História renovada
03
 - Estranho coração
04
 - Casa encantada
05
 - Bolero eterno
06
 - Amor alheio
07
 - Algemas
08
 - O sol por testemunha
09
 - Vontade
10
 - Mar de lembranças
11
 - Quando essa paixão me dominar (com Áurea Martins)
12
 - Soltanto io (com Domenico)


Bolero eterno (Dabliú Discos) (1999)

Faixas:
01 - Nas asas da ilusão
02
 - História renovada
03
 - Estranho coração
04
 - Bolero eterno
05
 - Amor alheio
06
 - Algemas
07
 - O sol por testemunha
08
 - Vontade
09
 - Mar de lembranças
10
 - Quando essa paixão me dominar (com Áurea Martins)
11
 - Casa encantada
12
 - Soltanto io (com Domenico)
13
 - Cilada


Bolero eterno (Japão) (2004)

Faixas:
01
 - Nas asas da ilusão
02
 - História renovada
03
 - Estranho coração
04
 - Casa encantada
05
 - Bolero eterno
06
 - Amor alheio
07
 - Algemas
08
 - O sol por testemunha
09
 - Vontade
10
 - Mar de lembranças
11
 - Quando essa paixão me dominar (com Áurea Martins)
12
 - Soltanto io (com Domenico)
13
 - Da minha janela
14
 - Toada brasileira


Em boas e mais companhias (2011)
Faixas:
01
 - Vou fugir
02
 - Alma aventureira (com Pedro Miranda)
03
 - Contradizendo (com Soraya Ravenle)
04
 - Escudo (com Áurea Martins)
05
 - Mas que saudade é essa!
06
 - Água-mãe (com Moyseis Marques)
07
 - Sete e meia (com Alvinho Lancellotti)
08
 - Bela cigana (com Mariana Bernardes)
09
 - Sem companhia (com Teresa Cristina)
10
 - Pelos ventos (com Domenico)


Fonte: Dicionário da MPB e site oficial do artista

terça-feira, 24 de março de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*




Tudo é ficção. Somos máquinas de inventar. Acreditamos nas nossas invenções. Somos poetas e fingimos sentir o que deveras sentimos. Noutro plano, somos o ator que "não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no sexo imposto".

Esta máxima de Valère Novarina - em Carta aos atores e Para Louis de Funés -, lançada depois do autor se perguntar "por que se é ator?", diz muito do (mais que) humano em nós: inventores de palcos e cenários onde possamos viver nossos desejos.

Penso nisso enquanto ouço a canção "Eu sou melhor que você", de Maurício Pacheco. Gravada por Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Alexandre Kassin - no projeto + 2, Máquina de escrever música (2000) -, a canção revela um sujeito estacionado no canto da comparação adolescente e humana daquilo que vai de nós para o outro.

Aliás, a gestualidade vocal cambiante de Moreno, entre agudos e graves típicos da fase em que a voz está em processo de (in)definição, tenciona sobremaneira o que é cantado pelo sujeito da canção: o medo de ser igual, ou inferior, ao outro.

Somos máquinas de cantar. Queremos reconhecimento. Cantamo-nos para afirmar a nossa existência: "Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer", diz o sujeito da canção. Cantamos o outro para, ao diferenciar-mo-nos, promover as conexões necessárias à vida. Cantamos o outro para sermos cantados. "Que prazer mais egoísta / o de cuidar de um outro ser", diria Cazuza.

O sujeito de "Eu sou melhor que você", ao espalhar tal ideologia: de que é melhor que o outro, espelha a potência de cada indivíduo, a vontade de ser mais e melhor. O tom confessional - todo mundo se acha mas eu sou - e as imagens do corpo imposto - "Todo homem tem voz grossa e tem pau grande / e é maior do que o meu, do que o seu" - querem interferir no desenho que o sujeito engendra para si. Ele recolhe o que todo mundo diz e compõe um discurso crítico.

Diante da massa supostamente lúcida - "Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta / Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa / Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota" -, o sujeito assanha o mundo: brinca com a profusão das certezas e se sugere frágil. Ele revela a vulnerabilidade de todo mundo.

"Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos", diz o sujeito. O que poderia ser ouvido como celebração narcísica, resulta em um sujeito antinarciso, posto que assina: "Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém".

Listada as supostas qualidades de todo mundo, o sujeito da canção se apaixona, se arrisca, se expõe e sofre. Ele admite a coexistência do orgulho e do amor. Ele é todo mundo e é ele ao se distanciar para cantar que, na base, somos carentes profissionais fingindo suingue e felicidade melhores.


***

Eu sou melhor que você 
(Maurício Pacheco)

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta
Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa
Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota
Todo homem tem voz grossa e tem pau grande,
E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá
Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor
Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos
Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar
Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque:
Eu sou melhor que você, Boa viagem.
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém
Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque,
é charmoso não saber algo que todas as pessoas já sabem como é
Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser
Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer
Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada
Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada
Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer
Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação,
Se reprimem e começam a dizer:
Eu sou melhor que você
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém

É melhor que você,
Mais ninguém é melhor que você

Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

segunda-feira, 23 de março de 2015

BEZERRA DA SILVA 10 ANOS DEPOIS - A FUMAÇA E O FEITIÇO MACONHA E UMBANDA EM BEZERRA DA SILVA - PARTE 04

Por Mauro Leno Silvestrin


RESUMO
Através da análise das letras e do contexto histórico de produção e consumo da arte musical de Bezerra da Silva, o presente trabalho procura analisar as relações e representações da umbanda e da maconha na obra deste singular artista. Objetiva também imiscuir os processos de legitimação do samba e da umbanda no Brasil, e inferir de que modo a tríade samba/umbanda/maconha se interpenetra na história brasileira. Para tanto, será utilizado, além das letras das canções, reportagens e matérias feitas com o artista antes de seu falecimento, ocorrido em 2005. Busca-se analisar a história de vida de Bezerra, a fim de tecer considerações sobre seu projeto e os meios utilizados pelo indivíduo para realizá-lo. Através da inserção de Bezerra da Silva na categoria analítica de mediador, definiremos o âmbito e a representatividade de sua mediação.


Palavras-chave: Música popular urbana; Samba; Umbanda; Maconha. 



7 O PITO DA DISCÓRDIA

7.1 BREVE HISTÓRICO DA MACONHA NO BRASIL

A raça preta, selvagem e ignorante, resistente,
mas, intemperante, se em determinadas
circunstâncias prestou grandes serviços aos
brancos, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal,
fortuna... inoculou também o mal nos que a
afastaram da terra querida...

Rodrigues Doria, 1916 


A relação do Brasil com a maconha começa no descobrimento. As velas e cordames das caravelas de Cabral eram feitas de cânhamo, nome industrial das plantas da família das cannabinaceas. Com a chegada dos primeiros navios de escravos, a Diamba aporta em terras brasileiras. Segundo documento oficial do governo brasileiro (Ministério das Relações Exteriores, 1959):“A planta teria sido introduzida em nosso país, a partir de 1549, pelos negros escravos, como alude Pedro Corrêa, e as sementes de cânhamo eram trazidas em bonecas de pano, amarradas nas pontas das tangas” (Pedro Rosado, 1959). 

Outros autores também atribuem a entrada da maconha no Brasil através dos escravos, como podemos observar nestas duas citações: “Provavelmente deve-se aos negros escravos a penetração da diamba no Brasil; prova-o até certo ponto a sua denominação de “fumo d’Angola” (Lucena, 1934). 

“Entrou pela mão do vício. Lenitivo das rudezas da servidão, bálsamo da cruciante saudade da terra longínqua onde ficara a liberdade, o negro trouxe consigo, ocultas nos farrapos que lhe envolviam o corpo de ébano, as sementes que frutificariam e propiciariam a continuação do vício” (Dias, 1945).

A maconha, enquanto sacramento ritual é largamente utilizada por diversos povos africanos, e é natural que este uso tivesse continuidade na diáspora, como permanência no já tão spoliado universo simbólico dos cativos. (Simões e McRae, 2001)

A primeira citação da maconha, em terras brasileiras, se deu em um livro de 1663, de autoria de Garcia da Orta(1981). Cito um pequeno trecho:

Ruano – Pois asi he, dizeyme como se faz este bangue, e pera que o tomão, e que leva?

Orta – “Fazse do pó destas folhas pisadas, e ás vezes da semente; (...) porque embebeda e faz estar fóra de si; e o proveito que disto tirão he estar fora de si, como enlevados sem nenhum cuidado e prazimenteiros, e alguns a rir hum riso parvo; e já ouvi a muitas mulheres que, quando hião ver algum homem, pera estar com choquarerias e graciosas o tomovão. E o que (...) se conta (...) he que os grandes capitães, (...) acustumavão embebedar-se ...com este bangue, pera se esquecerem de seus trabalhos, e nam cuidarem, e poderem dormir; (...) E o gram Soltão Badur dizia a Martim Affonso de Sousa, a quem elle muito grande bem queria e lhe descubria seus secretos, que quando de noite queria yr a Portugal e ao Brasil, e á Turquia, e á Arabia, e à Pérsia, não fazia mais que comer um pouco de bangue. (ORTA, 1981, citado por CARLINI, 2005, p.315)

A maconha ainda não era motivo de preocupação para a Coroa, que incentivava sua produção enquanto mercadoria agrícola de interesse da metrópole. Salvo o fato de a rainha Carlota Joaquina (esposa do Rei D. João VI), enquanto aqui vivia, ter adquirido o hábito de tomar um chá de maconha, o seu uso psicoativo ainda estava restrito a camadas menos favorecidas da população. Quanto às tentativas da Coroa Portuguesa de fazer proliferar em nossas terras o cultivo do polivalente cânhamo, uma é especial e paradigmática. Em outubro de 1783, após algumas experiências no Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande, foi neste último, mais precisamente no distrito de canguçu, que se instalou a Real Feitoria de Cânhamo (RFC). O objetivo era diversificar as produções agrícolas da colônia, para geração de matéria prima para a metrópole. Esta experiência, levada a cabo por feitores que seriam também, em sua quase totalidade, religiosos inacianos e jesuítas, conheceu seu fracasso por conta de diversos fatores, dentre os quais podemos destacar a procedência de seus escravos negros e a existência de uma maioria de famílias nucleares constituídas, as boas relações de
escravos que foram prestar serviço na capital, Porto Alegre, com seus patrões, geralmente ligados ao executivo ou legislativo62, bem como uma série de revoltas perpetradas contra os feitores, que assomaram de pânico os que trabalhavam na Feitoria.
 
Em 1824, após a substituição do negro insurgente pelo imigrante europeu famélico, o cânhamo foi gradativamente dando lugar a outras culturas, até sumir completamente com o eco da república e seus arroubos progressistas. Em 1889, concomitante à Proclamação da República, ocorre também a proibição da prática da capoeira. Um ano depois, é criada a Seção de Entorpecentes Tóxicos e Mistificação, que visava combater os cultos de origem africana e o uso da cannabis associada a estes. Além disso, as teorias raciais em voga na Europa davam conta de nosso atraso pela ampla permeabilidade do elemento negro e mulato na nossa estrutura social, o que contaminava e comprometia nosso futuro enquanto nação. Portanto, eliminar o elemento negro, através do branqueamento gradativo da população - com a inserção do europeu - e reprimir suas condutas era a maneira mais eficiente de lidar com este fardo que a escravidão e a conseqüente abolição nos haviam relegado.

No começo do século XIX, com a divulgação dos trabalhos do Prof. Jean Jacques Moreau, da Faculdade de Medicina de Tour, na França, e o advento de obras de vários escritores e poetas do mesmo país, dedicadas ao tema63, começam a chegar ao Brasil as primeiras informações sobre os usos hedonísticos da maconha.

Mas os passos cruciais para a proibição da maconha no Brasil foram dados pelo médico higienista Rodrigues Dória, em 1916. Cumpre observar a sincronia destas discussões com aquelas suscitadas na Europa e nos Estados Unidos à época, com sua Lei Seca e gangsterismo. Através de textos de cunho claramente racista e preconceituoso, Dória relacionava o uso da maconha aos negros e nordestinos, que sob os efeitos da planta, seriam levados a cometer atos criminosos e violentos. Começava, então, a luta contra o “maconhismo” no Brasil. 

A planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de beberagens, empregadas pelos “feiticeiros”, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos “candomblés” festas religiosas dos africanos...é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens destes rituais barulhentos...Em Pernambuco é utilizada nos “ catimbós ”- lugares onde se fazem os feitiços....Em Alagoas nos sambas e batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam também entre os que “ profiam na colcheia ” o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e cantado...(DORIA, 1916)

Mas foi o uso medicinal da planta que teve maior destaque por aqui. Diversos compêndios médicos a receitavam para usos tão diversos como: “Hypnotico, antispasmódico; dyspepsias (...), no cancro e úlcera gástrica (...) na insomnia, nevralgias, nas perturbações mentais (...) dysenteria chronica, asthma, (...)a sua má administração dá às vezes em resultados, franco delírio e allucinações.” (Araújo & Lucas, 1930). O anúncio abaixo foi veiculado até 1905.

Contra a bronchite chronica das crianças (...) fumam-se (cigarrilhas Grimault) na asthma, na tísica laryngea, e em todas (...) Debaixo de sua influência o espírito tem uma tendência às ideias risonhas. Um dos seus efeitos mais ordinários é provocar gargalhadas (...) Mas os indivíduos que fazem uso contínuo do haschich vivem num estado de marasmo e imbecilidade (Chernoviz, 1888).

Na década de 30, seguindo a tendência mundial, a maconha passou a ser alvo de repressão policial. A exemplo do ocorrido nos Estados Unidos, onde a proibição da maconha serviu para controle da minoria mexicana, no Brasil sua proibição atuou, em grande parte, na repressão aos cultos afro-brasileiros e no cerceamento da liberdade dos negros recém libertos. Através de uma postura municipal, datada de 4 de outubro de 1930, a Câmara do Rio de Janeiro proibiu a venda e o uso da maconha, bem como a conservação em casas públicas: os contraventores seriam multados, o vendedor em 20.000 réis e os escravos e demais consumidores, em 3 dias de cadeia. O início dessa fase repressiva atingiu vários estados. 

De poucos anos a essa parte, ativam-se providências no sentido de uma luta sem tréguas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, Maranhão, Piauhy, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fazendo, cada vez mais energia e poderá permitir crer-se no extermínio completo do vício. (Mamede, 1945, citado por Carlini, 2005 p.317)

Em 1936, é criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, tendo os textos de Dória como norteadores de suas políticas. Dez anos depois, o Convênio Interestadual da Maconha decide os meios de combate à maconha, bem como a prisão e os tratamentos psiquiátricos para os usuários. Assim como ocorreu com a umbanda, a maconha também é considerada causadora de distúrbios psíquicos que levariam à loucura.

Este mesmo Conselho começa a analisar a proposta de retirada da erva dos rituais afro-brasileiros, em troca de legitimação e reconhecimento destes pelo estado, o que viria a acontecer anos mais tarde. Nos anos 60, a contracultura começa a invadir o Brasil. Com ela, o uso da maconha deixa de ser fenômeno restrito às classes socioeconômicas mais desprivilegiadas e alcança a classe média e alta. O que era – e ainda é – motivo de prisão e atitudes coercitivas para os mais pobres se transforma, no pulmão e na mente de boa parte da elite, em uma experiência transcendental, de “desbunde e autoconhecimento”.

No ano de 1976, quando Bezerra lançava seu segundo disco, ainda de coco, duas personalidades musicais brasileiras de enorme relevância na época foram presas por porte de maconha: os tropicalistas/rockeiros/psicodélicos Rita Lee e Gilberto Gil. Este último foi flagrado, durante uma excursão dos Doces Bárbaros a Florianópolis, com alguns baseados num quarto de hotel. Seu julgamento despertou o interesse da mídia, mas o governo militar reprimiria qualquer atitude ou manifestação em torno da maconha. Para a mutante Rita Lee, a coisa foi pior. Condenada a cumprir pena de um ano, em prisão domiciliar, por porte de maconha, a roqueira foi enclausurada com direito a viatura no portão. É neste contexto que Bezerra começa a cantar a maconha, e, a partir daí, seu nome estaria colado para sempre à defesa da legalização desta erva. Talvez não porque este fosse realmente seu intento, mas por que assim ela foi apropriada por aqueles que lutam por uma política mais humana e racional no trato com as drogas. 


7.2 BEZERRA – CANTOR DE MACONHEIRO

Bezerra sempre se caracterizou por levantar polêmicas. Dizia-se constantemente perseguido. “Tenho fama de que sou criador de caso, mal-educado, cantor de bandido. Só não me chamaram de bicha e ladrão. Vivo num país em que é proibido falar a verdade.” Se a fama de criador de caso lhe irritava, suas músicas também incomodavam muita gente. Este é o caso das canções nas quais ele trata da maconha. Embora tenha declarado inúmeras vezes que não utilizava esta erva, sua aproximação com o tema foi muitas vezes utilizada para desqualificar sua obra. Sua fama de maconheiro e cachaceiro, segundo ele, se devia ao fato de “quem tem boca falar o que quer e quem tem ouvidos escutar o que não quer.”

Não fumo maconha, não cheiro cocaína, não bebo cachaça, não vou a pagode nem a futebol e tenho alergia a cigarro. Sou mangueirense mas não vou à Mangueira. Quando a maré está legal, o máximo que faço é dar um passeio com a patroa.

Apesar de toda a preocupação do artista em desvincular-se deste universo, sua obra traz inúmeras canções que o refletem. Já em 83, ano em que conhece Regina, Bezerra grava Nunca Vi Ninguém Dar Dois em Nada, canção que trata da discrição que se deve ter para ser bem relacionado no morro. Se opondo ao tão odiado cagueta, Bezerra canta: nunca vi ninguém dar dois em nada, e se ver está tudo bem.  

Nunca vi ninguém dar dois em nada
Pra morar no morro, tem que ter muita versatilidade,
Ouvir muito e falar pouco, ser bom malandro e ter muita amizade
Permanecer na lei que é de Murici
O provérbio que diz: não sei de nada, cada um trata de si
Eu morei lá muito tempo, e sempre fui respeitado
Por trabalhadores e crianças, e pela malandragem considerado
Até hoje quando chego sou tratado muito bem
Porque eu nunca vi ninguém dar dois em nada, e se ver tá tudo bem

A esta época, já se estavam estabelecendo, nos morros cariocas, uma espécie de organização criminosa que se tornou, nos últimos 25 anos, extremamente articulada a ponto de ser considerada um poder paralelo, provocando cenas e atitudes comuns às guerras civis em meio aos turistas da Cidade maravilhosa. O Comando Vermelho, paradigmático deste princípio de organização do narcotráfico carioca, deu origem a milhares de organizações que hoje lutam pelo controle da venda de drogas no Rio, criando verdadeiros redutos onde o poder público, inexistente, é suplantando pelo poder das quadrilhas.

 Em 1985, o já citado Escadinha protagoniza sua fuga espetacular de um presídio de segurança máxima, equiparando a realidade brasileira à ficção de um Rambo hollywoodiano. A proibição das drogas no Brasil criara seus próprios gangsteres, e com eles, inúmeros problemas. Neste mesmo ano, grava Já Nasci com a Cabeça Feita, onde pede explicações sobre um sujeito que lhe pergunta se ele quer fazer a cabeça. Em 86, grava Malandragem Dá um Tempo, cujo refrão o tornaria famoso entre a juventude dos anos 90, por conta da regravação que o Barão Vermelho fez desta música. 

Malandragem Dá um Tempo
Vou apertar, mas não vou acender agora
Vou apertar, mas não vou acender agora
Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora
Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora
É que você não está vendo que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado todos eles afim de entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora
É que o 281 foi afastado, o 16 e o 12 no lugar ficou
E uma muvuca de espertos demais, deu mole e o bicho pegou
Quando os homens da lei grampeiam o coro come a toda hora
É por isso que eu vou apertar, mas não vou acender agora

Neste samba, que Bezerra diz ser um alerta, o personagem adverte ao malandro que a área está cheia de delatores, e que só vai acender seu baseado quando estes forem embora. É comum, na obra de Bezerra, o uso de artigos do Código Penal para relacionarem as condenações as quais o personagem estaria sujeito. Aqui, 281 corresponde ao artigo que trata da posse de maconha, segundo o Código de 1935. Em 1974, ocorre uma reformulação nesta lei, e agora o artigo 16 rege a conduta jurídica com relação ao tráfico de drogas, e o 12 de sua utilização. Com a nova Legislação Sobre Drogas, aprovada em 2006, o artigo que rege estas duas esferas agora é o 28. Esta canção “fala do que pode acontecer com quem cai na droga. Alerta muito mais que qualquer campanha”, dizia Bezerra. Ainda em 86, grava Maloca o Flagrante, em que recomenda aos malandros que escondam sua droga, para não haver o flagrante do crime.

 No disco seguinte, Bezerra grava A Semente, que conta a história de um vizinho, que, ao jogar uma semente no seu quintal, de repente se vê proprietário de um imenso matagal. Como o cheiro daquele mato era bom, e uma rapaziada sempre estava por ali, um cagueta – novamente ele – delata o vizinho para a polícia, que leva toda a rapaziada para averiguação. O vizinho, interpelado sobre aquela planta, se escusa dizendo não ser agricultor e, portanto, não conhecer a semente.

 Em 1987, um fato marcaria para sempre a história da maconha no Brasil. O navio australiano Solana Star - após uma estratégica parada no Panamá, onde seus porões foram recheados de latas com maconha conservada no mel – é perseguido pela marinha brasileira, já avisada pela agência americana anti-drogas (DEA) do conteúdo da carga do navio. Em uma analogia própria à Bezerra, a tripulação malocou o flagrante no fundo do oceano, e as latas, a princípio presas por cordas e em fardos, ao sabor da maresia se soltaram e foram parar – para êxtase de alguns e desespero de outros – em uma extensa faixa do litoral brasileiro. Este episódio, conhecido como verão da lata, suscitou um grande número de debates, reportagens, programas televisivos, filmes, músicas e livros a respeito da maconha. À exemplo do ocorrido com as religiões afro-brasileiras - após a publicação da fotos de Verger na revista O Cruzeiro - o debate não ocorre sem uma grande carga de paixão, polêmica e sentimentos exaltados.
 
 Porém, este grande interesse suscitado por este episódio cumpre, para a maconha, o mesmo papel que a adesão de membros da classe média e da elite intelectual e cultural havia exercido para a Umbanda. Atuando como divulgação de uma espécie de pedagogia, esta midiatização da erva cumpre o papel de comunicar e aproximar a sociedade dos termos e símbolos de um universo específico, no caso, o uso recreativo da maconha.
 
Muito embora os esforços da Polícia Federal em recuperar parte das latas à  deriva, menos de um quinto delas chegou a mãos oficiais. A notável qualidade da maconha fez com que muitos usuários se aventurassem e inventassem modos os mais diversos para resgatar algumas latas. Este verão, indelével na mente dos que dele tomaram parte efetiva, fez com que a expressão da “lata” fosse utilizada, por muito tempo, como sinônimo de qualidade para a maconha. Mas isso mudou com a entrada do crack na cena. 

Bezerra grava ainda uma seqüência de músicas relativas a esta temática, porém, é a partir de 1992 – dois anos antes de ser regravado pelo Barão Vermelho - que uma possível legalização começa a ganhar consistência em sua cadeia de esclarecimento, e onde se tornam mais clara as suas possíveis apropriações pelo incipiente movimento que se formava em torno da questão. Com a música Garrafada do Norte, bezerra pondera a legalização desta planta. 

Garrafada do Norte
Doutor Deus criou a natureza
E também as belezas dessa vida
entaum me explique doutor
Por que é essa erva é proibida? (2x)
E tem gente que diz todo prosa "esta planta é maneira e medicinal
Só um chá da raiz faz milagre e quem bebe fica livre do mal"
Ela alegra, ela inspira, ela acalma e deixa a moçada de cuca legal
E aquele que perde a cabeça é porque já tem parte com o espírito mal
Sim...
Preste atenção, essa erva é a que faz garrafada no norte
Manga rosa controla a pressão, agrião e saião deixa o pulmão forte...
O progresso está se alastrando e o vegetal vai sumindo da praça
Com a natureza estão acabando, a cada dia que passa
E esse papo de caõ-caô, seu doutor, me dá um nó na garganta
Do jeito que o senhor está fazendo fica difícil arranjar uma muda da planta

Esta música, bem clara quanto à seus propósitos legalistas, contesta a proibição da maconha em virtude de seus efeitos benéficos, tanto medicinalmente quanto espiritualmente. A garrafada do título se refere aos xaropes de diversas ervas vendidos, costumeiramente, nas feiras do interior do nordeste. Regravada pelo grupo de rock carioca Planet Hemp, em 1997, esta música significou o início de uma amizade de Bezerra com o cantor Marcelo D2, então vocalista do grupo. Como o nome deixa claro – planeta maconha – este grupo lutava abertamente pela legalização do consumo desta erva, e se tornou, a exemplo de Bezerra, um dos ícones do movimento pró cannabis no Brasil. Ainda em 97, Bezerra se apresentou junto ao grupo num show em Brasília.

Uma semana depois, os integrantes desta banda estavam presos, na sede da Polícia Federal no Rio de Janeiro, acusados de fazerem apologia ao uso de drogas. Bezerra estava novamente metido em polêmica, mas não deixaria de lado sua obra, com a qual sempre fora tão cuidadoso. Esta música, na regravação com o Planet Hemp, teve modificada sua última estrofe, como reproduzo a seguir. 

E esse papo de caô-caô, seu doutor
Me da um nó na garganta
De ver o Gabêra lutando sozinho no congresso
Pra liberar nossa planta

Onde se lia “do jeito que o senhor esta fazendo fica difícil arranjar uma muda da planta”, agora tem uma justa homenagem ao Dep. Estadual Fernando Gabeira, histórico  defensor da legalização da maconha no Brasil. A partir desta regravação, Bezerra, mesmo à revelia, já era constantemente relacionado entre os defensores da legalização. E, no mesmo disco, outra música argumentava a legalização, na forma de um pedido pela não criminalização do usuário. 

Grampeado com Muita Moral
Doutor delegado, eu fui grampeado, com muita moral
Porém o baseado que estava comigo, pra não ter sujeira eu meti o pau
O cheiro da coisa jamais é flagrante, eu acho que o senhor deve me dispensar
Vamos trocar uma idéia pra ver até onde podemos chegar
E se por acaso não tiver acordo, flagrante forjado não posso assinar
Mesmo sabendo que estou errando, sou sujeito homem, a verdade eu falei
Só peço que me compreenda neste confronto com os homens da lei
A minha história verdadeira é esta, espero que acredite em tudo o que contei
Mas o bom malandro doutor, ele sempre age assim
Não usa mentira, só fala verdade, na realidade vai até o fim.

Em 95, grava, junto com Moreira da Silva e Dicró, a música Dava Dois, em que trata de uma mulher com a qual havia se amasiado, e que deixava o barraco uma zona pois só queria saber de “dar dois”, isto é, fumar maconha.

Em 1996, outro fato singular marcaria o verão, imortalizando-o como o verão do apito. Usuários e banhistas que frequentavam o posto nove, na praia de ipanema, tentando evitar as frequentes prisões e constrangimentos pelo ato de fumar um baseado na areia da praia em um fim de tarde, criaram uma estratégia inventiva para driblar a repressão policial. Com a distribuição de centenas de apitos aos banhistas e “maconheiros”, possibilitou-se uma rede comunicativa que não tardava a avisar, de algum canto da praia, qualquer aproximação da polícia. A gravação de A Fumaça Já Subiu pra Cuca, é de especial interesse neste momento, pois Bezerra esclarece que, se o usuário é esperto, faz as coisas direito e não deixa rastro. Consciente do status ilegal a que é associado o usuário – status este muito mais prejudicial que os possíveis danos do uso da droga – Bezerra decodifica, em forma de samba, um artigo do Código Penal que poderia ser utilizado em beneficio do usuário, e o transmite, de maneira inteligível (isto é, sem latim e advocacismos), para seus ouvintes. Demonstrando conhecimento jurídico, o personagem adverte ao policial que, havendo flagrante forjado, era na frente do Juiz que eles iriam ver quem pode mais.

São subterfúgios aos quais os usuários tem que recorrer, por viver em uma sociedade onde a maconha ainda é criminalizada. Com a chegada da polícia, e esta não encontrando o flagrante, não há meios de o usuário ser criminalizado. Mas alerta que a vigilância tem que ser redobrada, pois tem quem vá preso mesmo “careta” porque ficou marcando bobeira. (colocar aqui a nota de rodapé ) Malandro que é malandro faz as coisas direito, é trabalhador, respeita os santos, e, mesmo quando transgredindo um pouco a lei, não dá chance para o erro, ou para a delação. 

A Fumaça Já Subiu pra Cuca,
Não tem flagrante porque a fumaça já subiu pra cuca diz aí
Não tem flagrante porque a fumaça já subiu pra cuca
Deixando os tiras na maior sinuca, e a malandragem sem nada entender
Os federais queriam o bagulho e sentaram a mamona na rapaziada
Só porque o safado de antena ligada ligou 190 para aparecer
Já era amizade, quem apertou, queimou já está feito
Se não tiver a prova do flagrante nos altos do inquérito fica sem efeito, diga lá
Olha aí, quem pergunta quer sempre a resposta, e quem tem boca responde o que quer
Não é só pau e folha que solta fumaça, nariz de malandro não é chaminé
Tem nego que dança até de careta, porque fica marcando bobeira
Quando a malandragem é perfeita ela queima o bagulho e sacode poeira
Se quiser me levar eu vou, nesse flagrante forjado eu vou
Mas na frente do homem da capa preta , é que a gente vai saber quem foi que errou
Se quiser me levar eu vou, nesse flagrante forjado eu vou
Mas na frente do homem que bate o martelo, é que a gente vai saber quem foi que
errou

Após este verão, novamente a maconha estava, literalmente, na boca do povo.

Também nesta época começaram a organizar-se os primeiros embriões de organizações pró-legalização da cannabis no Brasil, seguindo uma tendência mundial de reflexão sobre políticas públicas sobre drogas, diante do flagrante fracasso da estratégia americana de erradicação das drogas, batizada de War on Drugs. Esta orientação política, proposta pelos Estados Unidos, em assembléia da ONU, e tendo o Brasil como um dos signatários, previa o investimento de forças monetárias e militares na tarefa de erradicação dos cultivos de droga mundo afora. O combate ao narcotráfico, iria, a princípio, atingir o elo mais fraco da cadeia: o pequeno agricultor rural que plantava coca ou maconha para dali retirar seu sustento. Porém, apesar dos maciços investimentos, os protagonistas desta guerra viam, a cada ano, as estatísticas de consumo aumentarem.

 Mais uma vez, entra em cena o então ex-guerrilheiro Fernando Gabeira, que ocupando cargo legislativo, levanta a discussão pró-legalização. Gabeira tentou inclusive importar sementes de cânhamo industrial (portanto sem THC) para iniciar experiências de cultivo em solo brasileiro. Suas sementes foram, assim como ele, preendidas. E mesmo após a apresentação de documentos comprovando a não existência de princípio ativo, a Receita Federal insistiu na retenção das sementes.

Além do prejuízo financeiro, Gabeira teve que dar explicações à Polícia Federal.

Bezerra é, então, – junto de Gabeira - sacramentado como um dos pais fundadores da reflexão acerca do tema da legalização no Brasil. Muito embora já existissem estudos anteriores sobre o tema, a exposição midiática alcançada por estas duas figuras os tornou referências simbólicas que aglutinavam em si o anseio legalizante de boa parte da população. As polêmicas com a Banda Planet Hemp, que se iniciam, neste mesmo ano, contribuem para a exacerbação da temática e do debate.

 Durante um show para gravação de um DVD ao vivo, em 1999, Bezerra apresenta a música Se Leonardo dá Vinte, onde contesta as diferenças no tratamento dos usuários de maconha com relação a sua classe social. É uma das músicas mais contundentes de Bezerra. 

Se Leonardo Dá Vinte

Se Leonardo dá vinte
Por que é que eu não posso dar dois?
Mesmo apertando na encolha, malandro
Pinta sujeira depois
Levei um bote perfeito com um baseado aceso na mão
Tomei um sacode regado a tapa, pontapé e pescoção
Eu fui levado direto à presença do dr. delegado
Ele foi logo gritando: ''Vai se abrindo, malandro e me conta tudo como foi''
Eu respondi: ''Se Leonardo dá vinte por que é que eu não posso dar dois''
''Leonardo é Leonardo'' disse o doutor
Ele faz o que bem quer, está tudo bem
Infelizmente é que, na lei dos homens
A gente vale o que é e somente o que tem
Ele tem imunidade para dar quantos quiser
Porque é rico, poderoso e não perde a pose
E você que é pobre, favelado
Só deu dois, vai ficar grampeado no doze.

 
Ao contestar o delegado sobre o porque de sua prisão, uma vez que há muita gente, a exemplo de Leonardo, que consome mais maconha que ele, o personagem recebe como resposta que Leonardo, por ser rico e poderoso, tem imunidade para fazer o que quiser, mas que ele, pobre e favelado, não dispõe destas premissas, e por isso responderá por seu delito. O delegado, agente da lei dos homens, diz que segundo ela, o indivíduo é medido de acordo com as suas posses. Ele, ao possuir tão somente um cigarro de maconha, não tem escapatória. Se o uso da maconha é exercido pela classe média favorecida, o ato de fumar um baseado é percebido como expansão da mente, relaxamento, lazer, desbunde. Para os egressos do morro, das favelas, são vedadas as categorias de uso recreativo, restando apenas as coercitivas de bandido, traficante e marginal.

Estas músicas, ao serem apropriadas primeiramente pelos grupos de rock e rap, e – depois de difundidas entre as classes média e alta de nossa sociedade – pelo movimento pró-legalização brasileiro, trouxeram a obra de Bezerra para uma juventude que ou não o conhecia ou o considerava um cantor folclórico, como a mídia muitas vezes o construiu. As regravações o levaram a ser conhecido por outros públicos que não o usual. Com a popularização – ou “classemedialização”, uma vez que seu público habitual já era os “populares” – Bezerra se tornava um artista universal, ainda que continuasse como “porta voz dos morros”.

Destes para as festas de universitários de classe média, Bezerra traçou um panorama da maconha onde ela é vista as vezes como instrumento de auxílio ritual, do nada de poderes transcendentais, e, em outras, como um psicoativo de uso recreativo muito difundido e, devido aos problemas relativos à sua proibição – narcotráfico e violência - passível de legalização. Embora não utilizasse maconha, nem nenhuma outra droga, Bezerra se esmerou em construir uma visão desmistificadora e crítica com relação ao uso da maconha.

 Para tanto, não faltaram também músicas onde ele critica não à maconha em si, mas a atitude de certos usuários que, não conhecendo os “princípios” do uso clandestino de drogas (discrição, amizade, e, muitas vezes, silêncio), acabam por “marcar bobeira”, prejudicando a si e aos outros. Exemplar desta vertente é a música Nariz de Bronze, em que satiriza o usuário não comedido de drogas, que por conta de seus excessos e seu estilo galhofeiro, é passado para trás. Não respeita a discrição necessária no trato com estes assuntos, e por falar demais, se dá mal. 

Nariz de Bronze

Tudo quanto é pó ele mete o nariz
Tudo quanto é fumo ele quer fumar, diz aí
É assim que eu vejo o esperto se atrapalhar
No meio de uma pá de sujeira ele diz que dá dois e diz que está tudo bem
Malandro que é cobra criada quando faz a cabeça não diz pra ninguém
Ele também disse que o pó da china lá na sua bocada é que é o melhor
Já viram o otário cheirar pó de pemba, e ainda dá dois na paia da vovó
Encheu a cara de brasa e saiu dizendo que tava doidão
Que cheirou uma rapa importada e também deu uns tapa num bagulho do bom
Otário pra otário não tem diferença, vocês vejam só como é que é
Colocaram capim no bagulho do cara, e botaram talco no pó do mané. 

Esta música inaugura também uma nova categoria na obra de Bezerra, na qual ele tratará da nova vedete carioca: a cocaína. Embora não seja a primeira a fazer menções à substância, é nela que a cocaína vai ser primeiramente nomeada como “pó”. Considero necessário tratar disto, mesmo que brevemente. 

Além da maconha, a cocaína também é bastante presente no repertório de Bezerra. A partir dos anos 90, quando a criminalidade associada ao tráfico de drogas já era imperante na cidade, Bezerra inicia também a tratar desta temática de forma mais freqüente. É a época das grandes festas movidas ao milagroso pó branco. Muitos se destacaram e fortunas se fizeram rapidamente após uma glamourização do uso de cocaína, especialmente entre as classes altas cariocas. Durante algum tempo, o principal fornecedor de cocaína desta elite carioca foi a filha de um importante político brasileiro, a ponto de até hoje, em alguns lugares do Rio de Janeiro, a trouxinha de maconha continuar a ser chamada por seu sobrenome. E a entrada da cocaína no repertório de Bezerra se dá em meio a este contexto. Sua primeira aparição, no samba o Preto e o Branco, de 1990, não é solo. A música, que analisa as relações entre o preto (maconha) e o branco (cocaína), é de fina ironia. 

O Preto e o Branco

É, mas tem preto, compadre, que pára num branco
Tem branco que pára num preto também
Mas para mim tá tudo certo
Para mim tá tudo bem
Eu disse pro preto que o branco dá branco
E o preto me disse que vai muito além
Me disse que o preto apesar de ser preto
Quando é bom preto dá branco também 
É por isso que o preto se amarra num branco
E o branco se amarra num preto também
O preto e o branco são limpos e arregados
São sempre tratados iguais a neném
Tem gente que aperta, tem outro que cheira
Tem até quem bate e dá beijo também
É por isso que o preto se amarra num branco
E o branco se amarra num preto também
Até em cartório já ficou provado
A força que o preto no branco contém
Depois que mistura seu nome ao dela
É difícil tirar esse nome de alguém
É por isso que o preto se amarra num branco
E o branco se amarra num preto também 


A maconha e a cocaína, juntas em alguns sambas de Bezerra, são tratadas ora como lazer, que aproxima a elite da favela, ora como mercadorias que, uma vez criminalizada, acabam gerando um sistema criminoso onde é sempre o pobre que “paga o pato” do desfrute desta elite73. A abordagem destas relações é sempre enquanto coisas naturais, embora ambíguas e não oficiais. 

Esta é outra tônica da obra de Bezerra. Sua trajetória de vida, sua carreira, seus relacionamentos, sua fé, sua biografia e sua obra sempre se compuseram de formas e versões ambíguas, como pequenas bricolagens de uma obra magnífica: o ser humano Bezerra da Silva. A própria vivência na favela, com a experiência de dois ou mais poderes “oficiais” em confronto com um poder legalmente oficial, é decisiva pra o desenvolvimento de estratégias que permitissem o convívio destes dois poderes de forma a se viver pacificamente, utilizando desta ambigüidade quando lhe conviesse. O mesmo se aplica ao caráter ambíguo do tráfico e uso de drogas. Quanto a uma análise mais apurada destas ambigüidades, não é de interesse imediato para o presente, portanto, penso em discorrer sobre isso em outro possível trabalho. 

Em 1991, é a vez de Canudo de Ouro, onde o personagem - um vigário que vendia “bagulho” na casa de Deus – tem descobertas suas artimanhas por um computador do capeta. 

Canudo de Ouro
Embecado numa rica batina na porta da igreja o vigário ficava,
Rezando bem alto a missa em latim pra não dar na pinta o que ele transava,
Todos que ali passavam se admiravam da sua oração,
Mas a reza do padre só fazia milagre para quem entendia aquela transação (2x)
Dentro da igreja o padre era um santo das 6 da matina até o meio dia,
Mas debaixo da sua batina cheia de flagrante que só Deus sabia,
O crucifixo que o padre usava era um tremendo canudo de ouro,
Só quem sabia do significado desembolsava logo o dinheiro do bolo
Pro azar do padreco pintou um dedo de seta, computador do capeta manjava o latim,
Ligou as antenas e pegou a mensagem que foi traduzida e dizia assim:
Quem quiser cafungar ou dá dois vai na sacristia com o sacristão,
Mas leve em dólar que a coisa é da boa, porque com o cruzeiro não tem transação
Rapidinho o radar, na maior covardia o padreco vendeu,
Os federais grampearam o vigário vendendo o bagulho na casa de Deus,
Mas o advogado do padre, que o direito penal muito entende,
Fez uma petição clamando ao juiz, doutor, perdoa que ele não sabe o que vende.

Em 1993, a cocaína e a maconha aparecem enquanto mercadorias. O negociante, para ter seu comércio liberado, recorre à corrupção policial. O samba é Overdose de Cocada. 

Overdose de Cocada

É cocada boa, ou não é
É cocada boa
É cocada boa, ou não é
É cocada boa
Já armei meu tabuleiro
Vendo pra qualquer pessoa
Tem da preta e tem da branca
E quem prova não enjoa
Tem preto que come da branca, tem branco que come da preta
Tem gosto pra todo freguês, só não vale misturar
Vai numa de cada vez, não misture o paladar
Que overdose de cocada, até pode te matar
O delegado da área, já mandou averiguar,
O que é que tem nessa cocada que tá todo mundo querendo provar
Mandou uma diligência só para experimentar
Eles provaram da cocada e disseram: doutor, deixa isso pra lá 

Outra vez é utilizada a oposição cromática maconha (preto) x cocaína (branco). Talvez enquanto estratégia de defesa frente às acusações de relação com o narcotráfico, Bezerra é relutante em utilizar as palavras cocaína e maconha, preferindo utilizar as gírias relativas aos termos, mais próximas de sua realidade e da de seus ouvintes primários. A importância comunicativa e simbólica da gíria enquanto linguagem popular resultou no álbum A Gíria é a Cultura do Povo, de 2002, cuja música homônima se constitui uma defesa apaixonada desta forma de linguagem, por sua força e certa autonomia enquanto expressão popular.

Em 1996, enquanto a fumaça subia pra cuca e o apito era aliado grupal contra a repressão estatal, a Venta Nervosa cheirava tudo, e a exemplo do Nariz de Bronze, acabava se complicando.

Venta nervosa
Êta narina, seu venta nervosa, seu aspirador,
Não bate uma rapa, só cheira da massa
Ainda fica de graça e diz que não gostou
A tua marra do cão perturbou muito a mente da rapaziada
Pra massa tu és uma carta furada, o rei da mancada e da vacilação
Malandro só joga à vera, vê se tu manera pra não se dar mal
Seu conversa fiada que não sai da aba, anda cheio de marra mas não tem moral

Com relação à maconha, a cocaína é mais comumente associada ao comportamento desviante que a primeira. Em grande parte das músicas onde aparece esta temática, o personagem é exortado a reparar seus erros, seus “vacilos”, e é advertido das possíveis punições para seus desvios, que evoluem de uma simples gozação por parte dos outros usuários até a pena capital.

O trapo

O trapo, é você que a massa está querendo
Sabe que está devendo por que não vai lá dar uma explicação, antes do caixão
Quando você precisou chegou lá de mansinho
Foi tratado com muito carinho, acreditaram em você, não sei por que
Cheirou toda a rapa que tinha a rapaziada
Ofereceu uma carga pesada para a malandragem lá do lugar
Deu volta na rapaziada integrante do bicho
Já sabe que o certo é ir pra vala ou pro lixo quando por acaso alguém te encontrar
Eles estão sabendo que você é safado e não vale nada
Fugiu com o produto da rapaziada, está vegetando em qualquer lugar
Mas não é na favela que vai dar uma de judas inimigo,
Até o capeta tá brabo contigo, convocou o bonde e mandou te ripar 

Na música acima, o “Zé Mané” provocou a ira da “rapaziada integrante do bicho” ao cheirar e depois fugir com toda a cocaína dos traficantes. Ao pedir que o personagem vá prestar explicações aos prejudicados por ele, Bezerra deixa claro que tais explicações não o livrariam da sentença já proferida pelo tribunal do tráfico: a vala ou o lixo. Recorrendo novamente ao exemplo do Judas bíblico - que se matou após entregar Jesus aos soldados romanos - Bezerra reafirma que caguetas não são bem vindos e nem sobrevivem em meio à configuração social das comunidades pobres controladas pelo narcotráfico. Nesta canção, em específico, até o capela demonstra desagrado pela atitude do traidor e entra também na caçada deste. A música Tem Coca Aí na Geladeira, composição de Regina gravada em 2000,
relata um samba no morro onde era proibido beber, fumar ou cheirar, mas que na geladeira, o dono escondia seu produto. 

Tem Coca aí na Geladeira

Aí meu irmão cagueta é a imagem do cão
Só porque o samba era no morro ele caguetou os irmãos
Fui num samba lá no morro, nunca vi tanta limpeza
Era proibido cafungar, fumar bagulho e beber cerveja
O responsável assim dizia: Na minha festa não tem bebedeira
Porque aqui no meu barraco só tem Coca aí na geladeira
A polícia foi informada que o dono da festa era vapor
Que o bagulho estava entocado dentro do congelador
Aí o delegado partiu pra lá pra dar um flagoroso perfeito 
Dizendo Isto não está direito, vou acabar com a bandalheira
Mas quando abriu a geladeira o doutor gritou muito injuriado:
Esse caguete caguetou errado porque aqui não tem sujeira.
Parece até festa de bíblia porque só tem Coca aí na geladeira.

Produto Importado, de 2003, trata da mercantilização da cocaína e de suas rotas de tráfico. Em um improviso feito por Bezerra na introdução da música, existe uma citação à respeito do goleiro da seleção colombiana de futebol, René Higuita, preso em 1998 por ligações com o cartel de Bogotá. A cocaína aparece neste samba como produto valorizado pela demanda do mercado e pelo dificuldade de produção e transporte. Um produto que alcança todas as classes, e cuja falta é motivo de lamento e reclamação. 

Produto importado

Toda hora eu vendo
Essa mercadoria não é de encalhar
É produto estrangeiro
Que vem importado lá de Bogotá.
Se está duro não chega perto, porque fiado eu não posso vender
Coisa fina custa caro e dá muito trabalho pra gente trazer
Tem que ver de navio ou então de avião pra poder chegar aqui
E se você não tiver com grana, também não tem chance para possuir
Em produtos importados, não pode haver bagatela
Eu vendo para a elite, classe média alta e baixa e também pra favela
Muita gente aí não gosta, mas eu vou fazer o que
Quando eu não tenho a massa reclama, então eu não posso parar de vender

Podemos, em uma analogia um pouco forçada, relacionar a associação recorrente da cocaína enquanto produto de um mercado ilegal, com as aspirações legalizantes de regulamentação de um mercado de substâncias psicoativas, regido  por leis neoliberais que dão à Cesár o que é de César, e ao mercado o que ele, através de lobbies e legislações, consegue arrancar do controle estatal.

Longe de meus intentos pretender enxergar em Bezerra um dos iniciadores do tema da regulamentação de um mercado legal de drogas, mesmo por que em suas músicas sobre o tema, impera mais o escárnio do sujeito cagueta, nó cego, mané, traíra, pilantrusca ou qualquer outro adjetivo de mau caratice dentre os tantos de sua obra, do que um apelo pela licitude de um ainda utópico mercado de psicoativos. Apenas direciono uma das apropriações possíveis da obra de Bezerra pela sociedade civil organizada em torno da questão das drogas.

Tanto relacionada à maconha como sozinha, a cocaína aparece, da mesma forma que a erva, enquanto recreação ou mercado, cujo caráter ilegal acaba penalizando, mesmo que diferenciadamente, a todas as classes. Se ela gera narcotráfico e morte, é pelo simples fato de ser proibida. Bezerra teve um filho morto, já adolescente, por conta de problemas com drogas. Mas não comentava o assunto. 


7.3 QUEM É VOCÊ PRA FALAR MAL DO MEU COMPORTAMENTO

Exímio polemista, Bezerra foi um prato cheio para a imprensa, tanto a “marrom” quanto a dita respeitável. Seus atritos com jornalistas foram muitos, em parte embasados em seu repertório, em outra por freqüentes alterações no conteúdo de suas entrevistas, de forma a realçar certos discursos e folclorizá-lo. Sua trajetória plena de incertezas abria espaços para um campo imaginativo complexo, onde não faltavam associações a Bezerra como usuário de maconha e cocaína, e, como já discutido capítulos acima, de alguma forma coligado ao narcotráfico. 

Embora sejam inúmeras as assertivas de que não bebia, fumava ou usava qualquer tipo de droga, esta associação mereceu a atenção do artista em algumas músicas, que considero importante comentar. A primeira delas, de 1989, certamente contém a maior quantidade de xingamentos em uma única frase da MPB. Esta música relaciona, em uma pequena síntese, todos os objetos de estudo que de alguma forma propus neste trabalho: a umbanda, a maconha, a cocaína, o traíra, a lei do morro estão aqui representadas. 

Língua de metrô

Olha aqui, quem é você pra falar do meu comportamento
Você não tem, base nem conhecimento pra dizer que eu dou dois e sou cafungador
Olha aí, seu muquirana, otário, safardana, língua de metrô,
Você é pilantra, patife, canalha, crocodilo e covarde e também delator...
Mas a língua é chicote do corpo nessa você dançou
Não falou bonito na língua de Congo, e também não está zero a zero com o vovô
O meu boletim e nada consta e eu provo assim
Vê também se o mosaico tem meu nome na lista, e se os federais andam atrás de
mim
E a verdade, safado, você sabe mas não quer dizer
Tudo isso é despeito, no duro, por que meu sucesso incomoda você
Vou livrar sua cara por que somos todos irmãos
Muito embora você merecendo pagar pelo preço da vacilação

Parto para a análise imediata da segunda música para depois tecer comentários conjuntos sobre ambas, dadas as similitudes narrativas. 

Tua Batata tá Assando

E se quiser falar de mim, que fale agora
Não deixe eu virar as costas pra jogar conversa fora
Sei perfeitamente bem que você fala de mim rasgado
Diz que eu cheiro cocaína e que fumo maconha adoidado
Não satisfeito ainda disse que eu topo qualquer embalo
E que também já fui avião quando morei no meu morro do galo
Sua monstruosa inveja, não deixa você crescer
Meu sucesso permanente ele incomoda muito a você
O que vem de baixo não me atinge, por que sou um cidadão de bem
Você me detona na minha ausência, é por que muito respeito me tem
Olha aqui seu canalhocrata, preste bem atenção no que eu tô falando
Você não perde por esperar, a tua batata tá assando
Você falou de mim o que bem quis, não fui na polícia, seu cara de bode
Quero ver se você vai fazer o mesmo quando eu lhe der um tremendo sacode 


Em ambas as canções, a inveja de seu sucesso é o motivo da difamação, e a ameaça de punição (física ou policial) está presente. E a reiteração de sua honestidade, com o “boletim nada consta” e a autopromoção enquanto cidadão de bem, cumpre um papel claro de oposição entre o malandro e o mané, aqui personificado no difamador. Peculiar e interessante é notar que, na primeira música, o não estar zero a zero com o vovô coloca o adepto em situação de perigo, fragilizando-o perante as vicissitudes da vida. A importância da retidão de conduta com as entidades, a importância da conduta no morro, segundo a lei do não sei, não vi, não ouvi, a importância do esclarecimento como forma de poder popular. Bezerra codifica, em fragmentos musicais, o ethos e o legis das favelas cariocas, reproduzindo-o para os próprios moradores destas comunidades. É o sentido mais pleno de sua cadeia de esclarecimento 


7.4 RELAÇÃO UMBANDA X MACONHA

Em diversas músicas, a maconha aparece enquanto instrumento ritual da umbanda.
 
De fato, até 1964, ela ainda era utilizada em alguns terreiros, como auxiliar no processo de transe. Esta utilização vinha do fato de que, na áfrica, diversos povos dela se utilizavam em contextos rituais. Bezerra reconstruiu este universo através de alguns sambas onde a maconha aparece ora como auxílio e necessidade das entidades e médiuns da umbanda, ora como instrumento de charlatões que dela se utilizam a fim de simular o transe.

Em 1982, Bezerra grava Deixa uma Paia pro Véio Queimar, onde uma entidade reclama de um otário cabeça de boi que fumou maconha e não lhe ofereceu. O preto velho se prepara para dar um susto nele, a fim de que isso não se repita. 

Deixa uma Paia pro Véio Queimar
Prepara meu cachimbo, cambono,
Por favor me traga a bengala depois
É que eu vou dar um descarrego
Neste otário cabeça de boi
É que este otário é metido a malandro
Ele fez a cabeça sozinho
Pisou na redonda e esqueceu do vovô
Vovô foi do cativeiro e só vem na terra fazer o bem
Vovô é cabeça feita e não atrasa ninguém
E vai somente dar um susto nele, cambono
Que é pra ele se lembrar
Toda vez que fizer a cabeça,
Deixa uma paia pro véio queimar.

Em 90, Bezerra grava Vovô Tira Tira, onde um pai de santo charlatão se utiliza da maconha para poder trabalhar. Mas que tem medo da repressão, pelo uso da maconha, pela suposta prática da umbanda, e pelo estelionato. Bezerra coloca o caráter ambíguo das relações entre as entidades da umbanda e os homens, ao descrever que a religião que pode te levar para perto dos deuses, também pode, se mal utilizada, aproximar o adepto do coisa ruim. 

Vovô TiraTira

Aperta um que vovô tira-tira pintou no gongá
E sem dá dois, vovô não pode trabalhar
É que tira tira é caô-caô e tira onda adoidado
Tira a roupa do vestido, tira a alma do pelado
Tira você de perto de Deus e deixa perto do diabo
Tira todos os pertences de quem nele leva fé
Tira o sossego do casal, e faz a cabeça da mulher
Pra botar chifre no marido e depois deixa ela a pé
Tira você de uma boa, tira sua inspiração
Tira tudo do seu bolso, tira até sua razão
Ele só não tira da caçapa porque detesta camburão

Outro exemplo de relação entre a umbanda e a maconha é a música Feitiço do Tião, de 1998, onde o personagem vai visitar um terreiro que mais se parece com uma boca de fumo, onde as entidades tem nomes relacionados ao tráfico e à maconha, e onde os médiuns fumam antes de incorporar.  

Feitiço do Tião

Tá pra existir feitiço igual esse que eu fui conhecer
Era o feitiço do Tião juro fiquei bolado sem nada entender
Ao invés dos médiuns baterem a cabeça, faziam a cabeça pro santo descer
Na gira de preto velho, falei com vovó joaninha
Também com vovô camisolão, vovô sentinela e vovó corujinha
Vovó Maria braço de homem, vovô come quieto e vovó leva e traz
Foi aí que eu conheci um tal de preto velho alcatraz
Mas quando deu meia noite, sujou, o bicho pegou de verdade
A 3978 baixou no feitiço descendo a lenha em toda entidade
Exu macaco saiu de fininho, seu Ogum ventarola selou seu cavalo
Iansã do brejo se arrancou pro morro, ogum Tanajura ficou grampeado
E o coitado do Tião foi prestar conta na delegacia
Apanhava igual tambor de macumba, de longe seus gritos o povo ouvia
Desesperado ele gritava, doutor, sou um membro da sociedade
O dinheiro que arrecado no feitiço é só pra fazer caridade

O estelionatário, uma vez preso, se utiliza de um dos pilares da umbanda, a caridade, para tentar interceder junto ao delegado, mas com toda aquela quadrilha de entidades suspeitas, que dispersaram ao ver a polícia, fica difícil esconder o delito.  Talvez por que a relação umbanda/maconha quase sempre tenha se dado de forma clandestina, é recorrente a associação destas duas práticas com o crime, o estelionato e o charlatanismo. Como estratégia de repressão, esta associação foi muito propagada até a metade do século passado. Mas a utilização ritual de maconha cessou em 1964, nos poucos terreiros que ainda a mantinham, por conta de barganhas políticas para a legitimação da umbanda. O samba se legitima, e ajuda a umbanda a se legitimar. A umbanda, em seu processo de legitimação, retira a maconha de sua liturgia. A maconha, ainda proscrita, batalha por sua legitimação. E Bezerra, que não era negão, mas era neguinho, que não “dava dois” mas conhecia quem dava, e que no gongá batia a cabeça em alvas vestimentas, resolveu misturar tudo. 


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