Tudo é ficção. Somos máquinas de inventar. Acreditamos nas nossas invenções. Somos poetas e fingimos sentir o que deveras sentimos. Noutro plano, somos o ator que "não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no sexo imposto".
Esta máxima de Valère Novarina - em Carta aos atores e Para Louis de Funés -, lançada depois do autor se perguntar "por que se é ator?", diz muito do (mais que) humano em nós: inventores de palcos e cenários onde possamos viver nossos desejos.
Penso nisso enquanto ouço a canção "Eu sou melhor que você", de Maurício Pacheco. Gravada por Moreno Veloso, Domenico Lancellotti e Alexandre Kassin - no projeto + 2, Máquina de escrever música (2000) -, a canção revela um sujeito estacionado no canto da comparação adolescente e humana daquilo que vai de nós para o outro.
Aliás, a gestualidade vocal cambiante de Moreno, entre agudos e graves típicos da fase em que a voz está em processo de (in)definição, tenciona sobremaneira o que é cantado pelo sujeito da canção: o medo de ser igual, ou inferior, ao outro.
Somos máquinas de cantar. Queremos reconhecimento. Cantamo-nos para afirmar a nossa existência: "Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer", diz o sujeito da canção. Cantamos o outro para, ao diferenciar-mo-nos, promover as conexões necessárias à vida. Cantamos o outro para sermos cantados. "Que prazer mais egoísta / o de cuidar de um outro ser", diria Cazuza.
O sujeito de "Eu sou melhor que você", ao espalhar tal ideologia: de que é melhor que o outro, espelha a potência de cada indivíduo, a vontade de ser mais e melhor. O tom confessional - todo mundo se acha mas eu sou - e as imagens do corpo imposto - "Todo homem tem voz grossa e tem pau grande / e é maior do que o meu, do que o seu" - querem interferir no desenho que o sujeito engendra para si. Ele recolhe o que todo mundo diz e compõe um discurso crítico.
Diante da massa supostamente lúcida - "Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta / Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa / Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota" -, o sujeito assanha o mundo: brinca com a profusão das certezas e se sugere frágil. Ele revela a vulnerabilidade de todo mundo.
"Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos", diz o sujeito. O que poderia ser ouvido como celebração narcísica, resulta em um sujeito antinarciso, posto que assina: "Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém".
Listada as supostas qualidades de todo mundo, o sujeito da canção se apaixona, se arrisca, se expõe e sofre. Ele admite a coexistência do orgulho e do amor. Ele é todo mundo e é ele ao se distanciar para cantar que, na base, somos carentes profissionais fingindo suingue e felicidade melhores.
***
Eu sou melhor que você
(Maurício Pacheco)
Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta
Todo mundo tem razão e vence sempre na hora certa
Todo mundo prova sempre pra si mesmo que não há derrota
Todo homem tem voz grossa e tem pau grande,
E é maior do que o meu, do que o seu, do que o do Pedro Sá
Todo mundo é referência e se compara só pra ver que é melhor
Todo mundo é mais bonito do que eu mas eu sou mais que todos
Todo mundo tem suingue, é feliz, é forte e sabe sambar
Todos querem mas não podem admitir a coexistência do orgulho e do amor porque:
Eu sou melhor que você, Boa viagem.
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém
Todo mundo diz que sabe e quando diz que não sabe é porque,
é charmoso não saber algo que todas as pessoas já sabem como é
Todo mundo é especial, é original, é o que todos queriam ser
Não basta ser inteligente, tem que ser mais do que o outro pra ele te reconhecer
Todo mundo ganha grana pra dizer que ela não vale nada
Todo mundo diz que é contra a violência e sempre dá porrada
Todos querem se apaixonar sem se arriscar, nem se expor e nem sofrer
Todas querem vida fácil sem ser puta e com reputação,
Se reprimem e começam a dizer:
Eu sou melhor que você
Eu sou melhor que você mas por favor fique comigo que eu não tenho mais ninguém
É melhor que você,
Mais ninguém é melhor que você
Todo mundo acha que pode, acha que é pop, acha que é poeta
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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