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terça-feira, 13 de janeiro de 2015

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



No final da audição da canção "Peixes", de Nenung, gravada por Mariana Aydar no discoPeixes pássaros pessoas (2009), o ouvinte chega a conclusão de que pessoas são peixes (sempre) fora d'água, ou seja, são pássaros mudos. Obviamente, esta é uma conclusão ligeira, apesar de complexa, e a própria canção tenta construí-la e desconstruí-la.


O importante é perceber que a canção coloca nas garras das pessoas a tarefa de se autocantar: ser sereias de si. Ela entrega às pessoas a responsabilidade de ser peixes, pássaros e pessoas: seres híbridos. E o sujeito da canção faz isso embaralhando as tradições sobre o mito das sereias.

A voz melodiosa - tão essencial à vida (à fama) quanto destruidora, mortal - e a cauda de peixe são alguns dos elementos que caracterizam este ser encantador e ameaçador. No entanto, não podemos esquecer que a iconografia da Antiguidade apresenta as sereias como seres marinhos alados: com garras de pássaro (harpias: aves de rapina); e assustadores. Ou seja, o recurso sedutor é mesmo a voz (o canto) e não a beleza física das entidades: muitas vezes representadas com barbas.

O jogo erótico não passa pela sedução visual. A voz com o conhecimento sobrenatural penetra o corpo pelos ouvidos: a sereia diz ao indivíduo aquilo que ele, ordinário e comum, não sabe: ela revela ao homem o próprio homem, em um luxo da experiência das sensações de si.

Importa lembrar o poema A argonáutica, de Apolônio de Rodes, em que, para sobreviver à sedução irresistível, o próprio Orfeu usa a lira para eclipsar as sereias. O poema nos sugere que para resistir ao canto sedutor é preciso um sobrecanto, um canto paralelo: a luta erótica da voz contra (e a favor de) a voz. Algo difícil de ser entendido numa sociedade em que a audição (a potência vocal) perdeu demasiado espaço (principalmente) para a visão.

Com isso, em processo complexo, aliado à imagem judaica-cristã da mulher como causa da queda do homem, a sereia perde o conhecimento que lhe definia e atravessa nosso tempo apenas como ser belo e sedutor. Mesmo que a força da voz ainda se destaque, hoje ela divide espaço com o apelo da beleza física que invade a imaginação e o pensamento sobre as sirenas: a linda e sexual mulher não humana com calda de peixe.

Nunca é demais lembrar que mais do que o canto (ou em proporções iguais) o silêncio sirênico é terrível. Afinal, precisamos ser cantados. Cheio de metáforas, o que o sujeito da canção "Peixes" nos sugere é que este canto pode ser construído por cada um: significar e singularizar a própria vida.

O sujeito desenhado por Mariana Aydar faz isso acompanhando a banda passar (sim, a princípio a melodia lembra uma marcha), mas, por fim, exorcizando-se com um grito aterrador e introdutor do sujeito (nós: híbridos - peixes, pássaros, pessoas) na vida.




***

Peixes
(Nenung)


Peixes são iguais a pássaros
Só que cantam sem ruído
som que não vai ser ouvido

Voam águias pelas águas
Nadadeiras como asas
que deslizam entre nuvens

Peixes, pássaros, pessoas
nos aquários, nas gaiolas
pelas salas e sacadas
afogados no destino
de morrer como decoração das casas

Nós vivemos como peixes
com a voz que em nós calamos
com essa paz que não achamos

Nós morremos como peixes
O amor que não vivemos
Satisfeitos mais ou menos
Todas as iscas que mordemos
Os anzóis atravessados
nossos gritos abafados




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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