CAPÍTULO 48
Voltei para Nova York, onde mais viagens pelo mundo me esperavam. Porém, eu regressava sempre com muita alegria ao chegar ao meu tranquilo apartamento e ao meu confortável escritório, do qual eu podia ver durante os meses de novembro e dezembro a gigantesca árvore de Natal toda iluminada, que tanto simboliza o início das festas de fim de ano em NovaYork.
Eu supervisava 14 companhias, tinha uma pequena e jovem equipe de cinco pessoas, três delas músicos; uma excelente, talentosa e querida gerente de marketing cubana, Maribel Schumacher; um administrador inglês, Roger Tagg; e, claro, eu tinha acesso a toda a infra-estrutura da Warner Music, quando necessário. Contrariando os prognósticos, acabei me sentindo muito à vontade na silenciosa vida corporativa.
O ritmo de trabalho era intenso, mas calmo. E essa calmaria era necessária porque era a mim que chegavam as más notícias. E eu precisava ter serenidade para encará-las e resolvê-las, uma atrás da outra: apenas evitar os fracassos não era o suficiente, porém já era meio caminho andado para o sucesso.
As reuniões anuais do board eram sempre em novembro, numa ampla sala de reuniões, no 30° andar do prédio, que acomodava confortavelmente umas quarenta pessoas. Eu e meus colegas tínhamos — cada um — um dia inteiro para comentar a situação política e financeira das regiões sob nossa responsabilidade, apresentar os resultados de vendas e o lucro do ano findo, e responder a uma infinidade de indagações relacionadas às previsões de desenvolvimento e às solicitações de investimentos que pretendíamos fazer no ano seguinte.
Ted Turner, casado na época com Jane Fonda, tem quase dois metros de altura. É insolente, irreverente, desajeitado, e havendo vendido seu conglomerado de comunicação, do qual fazia parte a CNN, à Time Warner, tornou-se um importante acionista da corporação e membro do board. Ao constatar que meus resultados financeiros cresciam espetacularmente, assim como minhas demandas para investimentos, numa dessas reuniões anuais me interpelou com seu jeito texano de cowboy:
— André, não adianta você nos explicar mais detalhadamente... Não entendemos nada dos seus territórios. Portanto, você pode fazer o que quiser. Porém lembre-se de que, de cada dólar que você investe, dez centavos são meus. Por favor, cuide bem desses meus centavos!
Naquele final de dia, com todos os meus resultados e projeções aprovados, e tendo recebido elogios do board, desci até o andar onde ficava o meu escritório — àquela hora, deserto —, entrei na minha sala, coloquei uma música clássica, apaguei as luzes, olhei pela janela em direção à arvore de Natal, toda iluminada, e me lembrei, com emoção, daquele “Midanizinho” de quarenta anos atrás, sentado num saco de açúcar em uma confeitaria de Paris, desesperado por não encontrar uma porta para escapar da triste situação na qual vivia...
A comunidade latina crescia assustadoramente e já representava 12% de toda a população dos Estados Unidos. A grande maioria era de mexicanos, seguida de porto-riquenhos, cubanos, colombianos, venezuelanos etc. O crescimento era tão rápido que os prognósticos oficiais previam que essa população ultrapassaria, em breve, a afro-americana. Essa invasão celebrada no México como uma reconquista paulatina, pacífica e sem derramamento de sangue dos territórios roubados pelos americanos em 1848, em nome do petróleo, era vista com perplexidade pelo governo dos Estados Unidos, que, sem ter ainda integrado harmoniosamente o contingente afro-americano, deparava-se com a inclusão de mais uma comunidade que, não satisfeita de invadir a Califórnia, o Texas e a Flórida, infiltrava-se rapidamente em Nova York, até então domínio dos porto-riquenhos, e em Boston, refúgio dos portugueses.
As duas estações de rádio de maior audiência em Los Angeles eram mexicanas. Duas redes de televisão, uma cubana e a outra mexicana, já transmitiam de Miami para o resto do país. Jornais e revistas em espanhol cobriam o sul. E as agências de publicidade desenvolviam campanhas dirigidas exclusivamente para o mercado latino.
Tendo a etiqueta de especialista do mundo latino dentro da Time Warner grudada na testa, acabei também encarregado de representar todos os meus territórios diante da HBO, da Warner Bros. Filmes e da Warner Records, a fim de investigar e promover co-produções para o mercado norte americano.
Minha primeira visita foi à Warner Bros. Filmes, em Los Angeles. Foi marcado um almoço no Beverly Hills Hotel, que tradicionalmente foi, e ainda é, o centro do mundo das ilusões cinematográficas, onde só se aceitam riquezas e brilhos, onde as paredes estão cobertas por fotografias em preto-e-branco autografadas pelas grandes estrelas do passado, como Buster Keaton, Charlie Chaplin, Grace Kelly, Marilyn Monroe, James Dean, Marlon Brando e outros... Enfim, o lugar onde a história do cinema foi escrita.
Terry Semmel — o então presidente da Warner Bros. Filmes —, seu assistente e sua limusine chegaram à porta do hotel ao mesmo tempo que eu. Sentamos à mesa, pedimos a comida e, quando acabei de expor longamente o potencial que representavam os trezentos milhões de pessoas de língua espanhola, os duzentos milhões de língua portuguesa, a existência de cineastas, de atores, de escritores e de músicos ímpares, Terry me respondeu:
— Olha, André, a nossa missão é produzir filmes para distribuir no mundo inteiro. A indústria cinematográfica americana já detém algo como 75% do mercado mundial. Não vejo vantagem alguma em arriscar mais capital de investimento para ir roendo os 25% restantes... No entanto, vou consultar meus gerentes locais e volto a falar com você.
Terry nunca me deu um retorno porque ele também sofreu os efeitos devastadores da política do chairman Jerry Levin e teve que sair da companhia, que ele e seus antecessores tinham elevado ao primeiro lugar do mercado mundial.
No dia seguinte, fui visitar a companhia de produção de programas para televisão. Os escritórios, numa magnífica mansão cercada por um imenso jardim no bairro de Burbank, transpiravam conforto e riqueza. Havia pinturas por todos os cantos. Tapetes imensos cobriam a sala e a mesa de trabalho do presidente — de cujo nome não me recordo —, tecnocrata recém-nomeado para dirigir aquela unidade que mais parecia a mesa de comando de um jato moderno. Retomei o discurso do dia anterior, ao fim do qual ele chamou um afro-americano, suposto especialista em assuntos ligados a produções para os públicos black e latino. Esse senhor, visivelmente inibido, falou:
— Senhor Midani, não vejo como poderíamos investir em produções de TV dirigidas ao público de língua espanhola se vocês não têm escritores, tampouco diretores e atores importantes... É só você ver a mediocridade que a Telemundo e a Univision vêm apresentando no mercado…
Dali em diante, percebi que não adiantava insistir. Só me restava, por desencargo de consciência, coletar e mandar livros, vídeos e filmes argentinos, brasileiros e espanhóis para corrigir aquela falta de conhecimento, e retomar a conversa em outro momento...
Já havíamos negociado com sucesso, cobrindo todos os territórios latinos, o contrato da Jennifer Lopez cantando em espanhol. Era preciso agora que o novo presidente da Warner Records norte-americana, Doug Morris, a contratasse cantando em inglês, para cobrir o mercado anglo que a Jennifer tanto ambicionava. Ela estava fazendo muito sucesso como atriz e cantora num filme mexicano que contava a morte de Selena, uma cantora tex-mex, estrela da maior dimensão na comunidade latina nos Estados Unidos, que havia morrido meses antes num trágico acidente de carro perto de Dallas. O filme era recorde de público, restrito, entretanto, aos mercados mexicano e latino nos Estados Unidos. Minha conversa com Doug começou mal porque quase ninguém na Warner Records — ele inclusive — ouvira falar da Jennifer ou do filme.
Ele insistia no fato de que, nos últimos cinquenta anos, não se conheciam produções musicais ou cantores de origem latina que tivessem chegado ao sucesso no mercado anglo. Recordei-lhe, então, que Sinatra, Vic Damone, Andy Russell, Tony Bennett e muitos outros eram filhos de italianos e que provavelmente, em breve, poderia se repetir o mesmo fenômeno com os artistas filhos de imigrantes mexicanos, porto-riquenhos e cubanos cantando em inglês (como de fato aconteceu alguns anos mais tarde com a própria Jennifer Lopez , Ricky Martin e Christina Aguilera). Doug me olhava, incrédulo. Para não haver dúvidas quanto ao vigor e ao tamanho do mercado latino, eu propus irmos a Pasadena, onde o grupo mexicano Maná se apresentaria no estádio local, com a participação do conterrâneo Santana.
Chegamos uma hora antes do espetáculo e o estádio já estava repleto, com quarenta mil mexicanos jovens e enlouquecidos. Ao regressar para Los Angeles, Doug, espantado de ver tantos latinos num mesmo recinto, concordou em repensar o “caso Jennifer ”. Porém, mais uma vez, o tempo trabalhava contra... Doug foi despedido por Bob Morgado e perdemos a Jennifer Lopez para a Sony.
Além das minhas atividades de executivo, a Time Warner me deu a responsabilidade de representá-la perante as principais ONGs latinas nos Estados Unidos. Numa reunião em NovaYork, o ator Will Smith me apresentou a um celebrado professor cubano de história, que lecionava numa universidade em Harvard e que me contou esta história incrível: o hino nacional norte-americano não era para ser o “Star-Spangled Banner”, e que somente foi oficializado como tal em 1931 pelo Congresso. O hino original deveria ter sido “America the Beautiful”, que conhecemos pelas interpretações emocionadas de Elvis Presley e Ray Charles. O professor me contou que o Congresso norte-americano, até o final do século XIX, era dominado pelos irlandeses, que se encontravam regularmente, ao final das sessões, num bar vizinho, discutindo os debates do dia, enquanto bebiam — como bons irlandeses — quantidades respeitáveis de cerveja.
Naquele dia, o assunto era o hino nacional que tinha sido apresentado para um voto de aprovação futuro. Os irlandeses, num rasgo nacionalista, e com muita cerveja na cabeça, decidiram que não queriam nada com o “America the Beautiful”. Tinham uma melodia muito melhor, que era a que eles cantavam, justamente “The Star-Spangled Banner”. Bastava fazer uma nova letra e pronto: aí estava o hino!
Esse país, o mais poderoso do mundo, que não tem nome decente — pois “Estados Unidos da América” não é propriamente um nome de país, como México, Canadá, Brasil etc. —, também ficou sem um hino oficial durante mais de um século, pois a briga entre os partidários de um ou do outro prosseguia sem trégua, até mesmo durante os anos do governo de John Kennedy, bem depois de 1931.
A Time Warner decidiu, então, financiar a gravação da partitura sinfônica original de “America the Beautiful” e oferecê-la ao governo americano como contribuição à interminável celeuma que cercava “America the Beautiful” e como homenagem da comunidade latina à memória do país.
Contratamos a Orquestra Sinfônica de Washington e seu coral, que foram dirigidos por uma regente cubana, com a participação de vários solistas latinos, e finalmente convidamos representantes do Congresso e do Senado, e o presidente Bill Clinton para uma cerimônia oficial, durante a qual a orquestra tocou a canção que deveria ter sido seu hino nacional. E todos foram presenteados com uma edição limitada da gravação. A cerimônia precedeu o jantar anual dos embaixadores, no qual o corpo diplomático costuma homenagear autoridades políticas norte-americanas. Naquele ano, a organização tinha ficado a cargo da embaixatriz mexicana, que organizara um silent auction em prol de uma ONG de seu país. Eu acabei comprando uma raridade: uma luva de boxe vermelha autografada por Cassius Clay — aliás, Muhammad Ali —, que passei a guardar com orgulho na sala de meu apartamento, junto a um extraordinário retrato original em preto-e-branco do rosto do Muhammad Ali, suando em bicas, os olhos intensamente fixos, esperando o início de um próximo round, fotografado pelo célebre Gordon Parks.
Anos depois, eu me aproximo da luva e... O que foi que aconteceu? — perguntei à empregada. — A assinatura que estava aí na luva desapareceu!!!
Não aconteceu nada não, senhor André... Eu limpei a luva...Acontece que estava bem suja...
Até hoje tenho a luva que, suponho, deve ter nocauteado alguém numa dessas antológicas lutas do maior boxeador de todos os tempos. A luva de um dos mais importantes contestadores do establishment norte-americano. Mas o autógrafo desapareceu e, com ele, um dos mais carinhosos símbolos que eu tinha.
De todos os presidentes em exercício na Time Warner, de repente eu já era, de muito, o mais velho. E, portanto, havia chegado a hora de eu me retirar das minhas funções. Transferi Iñigo Zavala, o diretor artístico da companhia espanhola, para o posto de diretor-geral da mexicana. E, posteriormente, eu o levei para Nova York para perfazer seu treinamento como meu sucessor.
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