CAPÍTULO 37
“Casa nova, vida nova”, diz o ditado popular.
Eu tinha trocado de empresa para criar uma emoção nova na minha trajetória profissional. E, da mesma forma, troquei o Midem, que se tornava um palco de negócios cada vez mais corporativos, pelo Festival de Jazz de Montreux, dirigido por meu amigo Claude Nobs. O seu festival surgia como o mais importante do mundo. Evidentemente, pela qualidade musical e pela importância dos participantes. Mas, sobretudo, por Claude ter tido a magnífica ideia de instalar junto às salas de espetáculo do festival equipamentos de gravação audiovisuais de última geração. Era praticamente o único festival onde o artista, ao acabar o concerto, podia levar a gravação da sua performance debaixo do braço e lançar o disco ou o vídeo de imediato. E foram esses discos e vídeos, espalhados pelo mundo afora, que consolidaram a sua fama.
Até aquele momento, o Claude nunca havia convidado artistas brasileiros para participarem do festival, simplesmente por não ter qualquer conexão com o país. Por coincidência, ele havia recebido uma proposta para apresentar o Azymuth, excelente trio instrumental brasileiro do final da década de 1970, que tinha contrato conosco. E lhe propus uma experiência incluindo o grupo numa noite dedicada ao jazz fusion. Como a apresentação dos meninos foi recebida com muito entusiasmo no festival, voltei alguns meses depois, levando para ele uma boa quantidade de discos brasileiros.
Claude se convenceu facilmente de programar, para o ano seguinte, uma noite exclusiva de música brasileira, para a qual levei Gil, Baby, Pepeu, Dadi e Jorginho, em 1978. O público enlouqueceu e o Claude também. E um empresário francês ali mesmo contratou todo mundo para o Festival de Juanles-Pins, na Côte d’Azur, no sul da França.
A “noite brasileira” virou uma instituição permanente em Montreux até se estender para duas noites, o que continua ainda nos dias de hoje. Era o início de um longo processo em que, a cada festival, a gente conseguia mais datas em outros palcos do verão europeu. Lançamos, então, o primeiro disco brasileiro gravado em Montreux, que veio confirmar a importância da nossa música ao lado de Ella Fitzgerald, Quincy Jones, Miles Davis, Aretha Franklin, Count Basie, Bob Marley e outros grandes talentos internacionais.
No ano seguinte, 1979, levei Elis, acompanhada por César Camargo Mariano, e Hermeto Pascoal com seu grupo. A demanda de entradas era tamanha que decidimos — Claude e eu — acrescentar uma sessão à tarde. A apresentação do Hermeto, que abria a noite para Elis, provocou uma comoção enorme, apoteótica, considerando-se o fato de que ele era pouco conhecido do público europeu. Elis, desde 1967, tinha feito muitas incursões na Europa e a cada apresentação em Paris, Londres, Estocolmo e Bruxelas seu prestígio aumentava, sobretudo nos meios profissionais, que a viam como sucessora em potencial da Ella Fitzgerald. Eram dez da noite quando Elis, feito um furacão, entrou no palco. Eu costumava ficar na coxia, atrás do palco, assistindo aos shows pelo circuito interno de TV.
Naquela ocasião, estava saboreando de antemão um final que seria um apogeu. Fui pegar uma água; ao voltar, ouvi do stage manager:
— Olha, sua artista vai desmaiar no palco...
De fato Elis suava aos montes, estava pálida e ofegante, como que carregando o mundo nas costas.
Peguei minha água, coloquei-me de quatro, e foi assim que entrei pelos fundos do palco, o mais discretamente possível, em direção a Elis. Nesse momento, Elis virou-se para o César, que estava ao piano, e me vendo lá plantado de quatro com o copo na mão, precipitou-se em minha direção, bebeu a água de um jato e voltou ao microfone. Suou um bocado mais e cantou como se fosse seu calvário, dramaticamente, majestosamente, e, pouco a pouco, o peso do mundo foi se aliviando das suas costas. O final do show foi espetacular e grandioso — o público ovacionou com 11 pedidos de bis!
Nesse momento, o Hermeto aparece a meu lado na coxia, resmungando:
— Essa mulher é fantástica. Mas eu tenho que ensiná-la a cantar!!!
Elis saía do palco — extenuada — em nossa direção, quando Hermeto a pegou pelo braço e a levou à força de volta ao palco, sentou ao piano e começou a tocar “Garota de Ipanema”, que Elis havia jurado jamais cantar. Porém, não houve como escapar. Plantada no meio do palco, o público em paroxismo, ela acabou interpretando também “Asa branca”. Eu nunca tinha ouvido Hermeto tocar piano solo, nem ouvido um piano tão bonito... Elis, por sua vez, deu uma performance à altura da provocação do Hermeto, e a jam session ficou tão emocionante que até hoje considero que faz parte dos grandes momentos da música brasileira. Depois do show, jantando no restaurante do cassino, perguntei baixinho à Elis o que havia sucedido:
— Quando pisei no palco, lembrei que a Ella Fitzgerald tinha pisado dois dias antes naquele mesmo chão, lembrei que sou filha de uma lavadeira… Eu fiquei transtornada e queria morrer! André, você promete que não vai lançar o disco?
— Prometo.
No dia seguinte, voamos de madrugada para Tóquio, onde um outro festival estava nos esperando.
Fomos recebidos no hotel pela equipe técnica do festival, que, de imediato, fez o levantamento dos equipamentos trazidos pelos músicos. De repente, Hermeto, ainda se recuperando do porre da véspera, depois do concerto em Montreux, gritou:
— Porra! Esqueci toda a percussão lá na Suíça!
O primeiro concerto estava marcado para o dia seguinte às cinco da tarde, e não havia tempo para recuperar as tumbadoras, os reco-recos e todas as maravilhosas tralhas do Hermeto deixadas meio mundo atrás…
— Vamos todos dormir. Amanhã a gente resolve — disse Hermeto.
No dia seguinte, chegamos bem cedo para efetuar a passagem de som, só faltando na caravana o Hermeto, que, ao raiar do dia—segundo nos informaram nossos acompanhantes japoneses—, tinha desaparecido misteriosamente num carro disponibilizado pelo festival. Elis, César e seus músicos ensaiaram rapidamente e voltaram para o gigantesco hotel onde estávamos hospedados. E nada de Hermeto aparecer! Depois de uma longa espera, chegaram o carro do festival e dois táxis, de um dos quais saiu sorridente o nosso homem, sob um sombreiro vietnamita, com uma blusa florida e carregando dezenas de panelas, de todos os tamanhos imagináveis, compradas numa feira nas ruas de Tóquio...
— Já tenho tudo o que preciso para a percussão de hoje. Vamos ensaiar!
Éramos constantemente alertados pela produção do festival para não estranhar o comportamento silencioso do público durante os concertos. Era sinal de respeito e não de desinteresse.
— É assim, é? Eu vou botar os japoneses pra gritar! Você vai ver! André, manda colocar um
microfone no túnel pelo qual a gente chega ao palco — disse Hermeto.
Elis abriu o concerto no fim da tarde com enorme sucesso, num estádio lotado, com o drama de Montreux já bem longe da memória. Instalados os microfones para o grupo de Hermeto, fez-se silêncio, todos esperando pelo artista. O silêncio se prolongava. Os músicos a postos no palco e nada de Hermeto aparecer!
Huuuuuuu!
Huuuuuuu!
Em cadência, os gritos — vindos de lugar nenhum — irrompiam no estádio. Passada a surpresa, o público começou a responder, pouco a pouco, com os mesmos gritos. De início timidamente, até que, progressivamente, todos de pé urravam como em transe numa cerimônia sacra na santa África, ovacionando Hermeto, que entrava no palco com o chapéu vietnamita e a camisa florida, tocando as panelas japonesas, o piano, a flauta e outros instrumentos! Estavam presentes — e extasiados — Wayne Shorter e Chick Corea, com os quais convivemos a semana inteira.
Três anos mais tarde, depois de uma tumultuada separação de César Camargo, e às vésperas de gravar um novo disco, Elis morre acidentalmente. Mal terminado o enterro, muita gente me perguntava se eu lançaria a gravação do concerto de Montreux. Eu respondia religiosamente:
— Não. Não vou, não. Prometi a ela que não lançaria.
Passaram-se os meses e eu ficava me lembrando da intensidade, da dramaticidade com a qual Elis havia cantado naquela noite, e sobretudo do final, quando o Hermeto a havia acompanhado ao piano, com grande lirismo e grande cólera. Decidi, então, ouvir as fitas do concerto. Fui até o estúdio e lá estavam os rolos de fita, separadinhos, me esperando. À primeira vista, achei esquisito ver tantos rolos. Até que me lembrei que a sessão da tarde também tinha sido gravada.
Voltei para casa com as fitas cassete da gravação dos dois concertos, que eu ficava ouvindo nos momentos livres, editando os melhores takes das duas apresentações — a da tarde e a da noite —, incluindo, no final, o famoso dueto com Hermeto. Minha reação foi propor ao Hermeto que gravasse três discos de piano solo na Alemanha, no estúdio do Manfred Eicher, dono da gravadora ECM, que nós lançaríamos numa caixa no Brasil e nos Estados Unidos, através da gravadora do Chick Corea.
Até hoje lamento que a sugestão não lhe tenha interessado. Minha segunda reação foi constatar que aquela montagem reproduzia fielmente a grandiosa performance de Elis.
Lentamente, o Diabo soprava no meu ouvido: “Rapaz, você tem que lançar, você tem que lançar…”Até o dia em que falei:
— Elis, você vai me perdoar. Vou trair minha promessa, mas não posso deixar de lançar esse concerto, que vai ser um dos seus últimos e mais emocionantes testemunhos...
Uma grande tranquilidade se apossou de mim após eu ter proferido essas palavras. E uma curiosa sucessão de acontecimentos veio confirmar esse sentimento nos dias seguintes, quando fui ao estúdio para começar a montagem final. Era preciso subir dois andares de escada para chegar até lá. E, enquanto eu subia, escutava Elis cantar lá em cima. Distraído, eu pensava: “O quê? A Elis já chegou?! Midani, que pensamento estranho...Você bem sabe que ela não está mais aqui!” O que eu ouvia era evidentemente uma fita, que os técnicos estavam tocando para ajustar os equipamentos. Ainda impactado, sentei à mesa de gravação e falei: “Agora, Elis, você vai me ajudar a montar esse seu concerto direito.” E comecei a chorar, sem o menor embaraço, ouvindo a voz dela cantando, e a consultava sobre detalhes da montagem como se ela estivesse presente: “Esta música vai aqui ou ali?”
E quando acabei o trabalho dias depois, eu tinha a firme convicção de que estávamos de pleno acordo, com a montagem do disco Elis Regina : Montreux Jazz Festival.
Em 1981, numa noite de domingo, toca o telefone do meu quarto no Caesar Park de São Paulo, onde eu tinha ido passar o fim de semana. Era Caetano me informando que o João Gilberto tinha elaborado um projeto de gravação de um disco, e que eles achavam que só eu poderia levá-lo adiante:
— André, eu não quero te descrever nada. Por favor, entre em contato com João que ele te explica direito… No dia seguinte, já no Rio, liguei para o João :
Oi, João. Sou eu, André.
Eu sei, eu sei, Andrezinho... Reconheço a tua voz e o teu sotaque. Faz tanto tempo que a gente não se fala...Venha aqui pra gente conversar. Marcamos para o dia seguinte:
— Como vai você? — perguntou João.
Em resposta, contei como ia minha vida. Por minha vez, perguntei como ia a dele. Ele não me contou nada. A título de resposta, pegou o violão e começou a cantar baixinho, baixinho... E eu, ouvindo, como que hipnotizado ou enfeitiçado pelo incrível sopro do João.
— Quero gravar com Maria Bethânia, Caetano e Gil ... Vamos, André! Vamos fazer esse disco juntos! Vamos... Eu até já tenho o título na cabeça: Brasil!
— Vamos sim, João. Com uma só condição: que o contrato me dê pleno controle sobre o andamento e a conclusão do projeto. E assim foi acordado. Saí de lá muito emocionado, sabendo que seria um projeto histórico. A gravadora reservou um estúdio para as quatro semanas seguintes, em tempo integral. A qualidade artística das gravações era estupenda! Mas os atrasos se tornavam cada vez mais penosos para todos. E, sobretudo, dispendiosos para a empresa. Acabei suspendendo o trabalho com apenas seis músicas prontas; mas eram de alta qualidade e os arranjos de orquestra — que eu planejava entregar ao Claus Ogermann — iriam complementá-las brilhantemente. Liguei para o Claus :
— André, obrigado pelo convite. Porém nunca mais trabalho com João Gilberto!
A final, convidei Johnny Mandel , que com grande delicadeza se incumbiu de escrever os arranjos.
Leonardo Neto lançou mão de todas as técnicas de marketing, das mais convencionais às mais esotéricas, para apresentar ao mercado essa obra tão bela e tão cara.
Rogério Sganzerla foi contratado para registrar, em película de 16mm, o making of da gravação de Brasil. Os astros e o I Ching foram consultados quanto à data de lançamento mais adequada. O Rogério não se comportou com elegância, pois desapareceu com os rolos do documentário, cujo destino era um especial na TV Globo e seria hoje um precioso DVD. E, finalmente, os astros — sobre os quais a companhia tinha jogado toda a responsabilidade de escolher o dia certo para recuperar tamanho investimento — também nos deixaram na mão. Embora tenhamos acatado o dia sugerido e apesar de todos os esforços, não chegamos a vender 40% de nossas estimativas... Porém Brasil nunca deixou de vender, ano após ano — aqui no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. Como gotas de água, que uma após outra vão enchendo o balde, ou como o bom vinho, que vai melhorando com o decorrer dos anos, recuperamos o investimento sete anos depois do lançamento.
Talvez eu não devesse ser tão rigoroso com os astros, pois o contrato assinado com João nos dava direito a mais um disco. E esse disco nos caiu do céu! Em julho do ano seguinte, João deu um concerto memorável em Montreux — ele e seu violão —, evidentemente gravado ao vivo e lançado no Brasil, nos Estados Unidos e no resto do mundo, com direito ao primeiro prêmio Grammy de melhor disco do ano recebido por um artista brasileiro nos tempos modernos. O Grammy é o Oscar da música.
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