CAPÍTULO 20
Em 1964, fui transferido para o México, a pedido do Glenn Wallichs, para lá instalar a Capitol/Odeon. A Capitol do México foi fundada com 50% de capital mexicano, do grupo Televisa, e 50% de capital americano, vindo da Capitol USA. Cabia à Capitol USA escolher o presidente da operação, prover o repertório internacional e a sua experiência fonográfica, sendo responsabilidade da Televisa mexicana usar seus meios de comunicação e preencher os cargos de gerência.
Ao chegar ao México, encontrei imediatamente Emilio, filho do velho Azcarraga, àquela altura
dono do grupo Televisa e de praticamente todos os meios de comunicação do país, que me informou que os escritórios já estavam funcionando e que a Capitol do México só estava me esperando para começar a operar. Fui apresentado a meus futuros gerentes; à primeira vista, pareciam competentes, mas muito sombrios e fechados.
Com o passar das semanas, entendi que eu tinha mudado de um país de cultura portuguesa e africana, sumamente extrovertida e informal, para um país de cultura espanhola e asteca, sumamente introvertida e formal. Rapidamente percebi a imensa distância existencial e comportamental entre México e Brasil. E tomei consciência de que teria que me ajustar rapidamente à nova realidade. O México era, então, uma democracia ditatorial: a censura tinha sido inoculada em todos os níveis da sociedade, devido aos muitos anos de domínio do Partido Revolucionário. Os militares só precisavam aparecer para abortar os movimentos revolucionários que, de vez em quando, estouravam no interior do país, e debelar os movimentos contestatórios da violenta classe universitária.
O panorama geral da indústria fonográfica mostrava que as vendas de música mexicana eram responsáveis por 80% do faturamento da indústria e que as companhias independentes tinham uma participação esmagadora no mercado fonográfico, eram muito unidas e bastante protegidas do vizinho ameaçador pelo governo...“Pobre de Mexico, tan lejo de Dios e tan cerca de los Estados Unidos de America.” (“Pobre México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos da América.” Citação creditada a Porfi rio Díaz (1830-1915), presidente do México de 1876 a 1880 e de 1884 a 1911.) Contratei Lucho Gatica como o astro de primeira grandeza de que a empresa necessitava; ele tinha o maior fascínio pela bossa nova, pelo futebol e por tudo que era brasileiro. Ao contrário de seus colegas, cantores românticos latino-americanos, tinha uma belíssima voz, que manejava com rara suavidade, uma musicalidade magnífica, um gosto apurado para escolher o repertório adequado, além de ser extremamente charmoso. Ele foi o primeiro ídolo latino a ser considerado cantor de sucesso em todo o nosso continente — inclusive no Brasil, fato inédito — e na Espanha. Sem dúvida, foi o precursor de Julio Iglesias e de Luis Miguel. Enquanto isso, Mario Gil, o diretor artístico, descobria um jovem compositor, pianista de qualidade e intérprete de personalidade, depois conhecido como Armando Manzanero, o maior compositor mexicano contemporâneo. Lembram de “Esta tarde vi chover”? `
A Capitol do México, sendo uma gravadora nova, deveria ter um staff muito jovem e procurar artistas e compositores também jovens, que circulassem em setores musicais ainda não cobertos pelas companhias tradicionais, que se mostravam muito conservadoras e antigas, com seus maravilhosos e eternos mariachis e trios vocais. Apoiados na experiência brasileira, procuramos talentos nas universidades. Porém, descobrimos que os estudantes eram totalmente desinteressados em matéria de música, uma vez que sua maneira de contestar se concentrava em verdadeiras lutas e em confrontos cada vez mais sangrentos contra as forças governamentais.
Mario Gil era um bom diretor artístico até as três da tarde, quando partia para o almoço, do qual regressava frequentemente bêbado. Nossa relação se tornava cada dia mais insustentável, e chegou a hora de despedi-lo quando, numa tarde, eu o surpreendi mijando e exibindo seu pau dentro do estúdio, em plena sessão de gravação, frente a uns trinta músicos, homens e mulheres, espantados com aquele espetáculo inédito e surpreendente.
O rock’n’roll mexicano que se gravava era pífio, ingenuamente bobo e pasteurizado. Pensamos que, na fronteira com os Estados Unidos, encontraríamos músicos mais interessantes. Viajei com o meu novo diretor artístico, René Leon , para Tijuana, cidade fronteiriça, na esperança de encontrar um rock vigoroso, influenciado pelos vizinhos. Naquela época,Tijuana era uma cidade relativamente pequena, oferecendo como atrativo turístico um enorme estádio construído para corridas de cavalos, inúmeras casas de briga de galos, alguns cassinos de caça-níqueis baratos e uma rua central povoada por cafés — que eram mais bordéis — onde muitos músicos tocavam ao vivo. Centenas de ônibus desovavam diariamente multidões de gringos, ávidos para apostar e, sobretudo, foder.
Ao longo de duas noites, visitamos cada um desses bordéis, que pareciam bares tirados dos filmes de cowboys, quando subitamente descobrimos o que estávamos procurando: cinco rapazes altos, magros, com cabelos negros muito compridos e caras de aristocratas astecas. Cantavam igualmente em espanhol e em inglês, com um furor e uma violência de certa maneira semelhante aos Rolling Stones. O grupo se chamava Los Yaquis. Nós os contratamos imediatamente e os levamos para gravar seus discos e viver na Cidade do México.
Para que Los Yaquis pudessem mostrar o que tinham de mais precioso — a força de sua presença no palco —, decidimos gravar seu primeiro LP num concerto ao vivo, que foi um sucesso estrondoso de vendas. Com eles, nascia o rock mexicano, que, desde então, conseguiu se inspirar em seu folclore para produzir um rock totalmente identificado com as tradições nacionais, além de oferecer uma qualidade e uma pujança extraordinárias, dando ao cinema contemporâneo do país o caminho das pedras para expressar violência e revolta de maneira autêntica.
No entanto, a fama causaria ao Benny, o cantor carismático do grupo, um episódio de vida tragicômico. O ministro da Justiça, como qualquer pai machista mexicano, não se conformava com apaixão da filha por um índio puro-sangue, e ainda, para o cúmulo da desgraça, um roqueiro agressivo, uma celebridade que aparecia diariamente com a moça nos jornais da capital. Só que o ministro tinha um poder que o comum dos machos mexicanos não possuía: o de fazer o que bem entendesse... Como não conseguia impor a autoridade paterna em casa, começou a pressionar Benny com ameaças cada vez maiores, que se revelaram igualmente inoperantes. E decidiu, então, colocar a polícia em campo: mandou seqüestrar Benny na saída de um bar, de madrugada.
Com a ajuda de Miguelito Aleman, filho de um ex-presidente da República, procuramos Benny em todas as prisões da capital — sem êxito. Decidimos nos fingir de desentendidos e lançamos a notícia de que se tratava de um sequestro praticado por bandidos. Colocamos anúncios em todas as emissoras de rádio, solicitando o apoio para descobrir o paradeiro do cantor. Meia hora depois, as rádios receberam do Ministério a ordem de suspender os anúncios. Porém, já havíamos recebido a informação que nos permitiu encontrar o Benny numa prisão onde entrara sem ser identificado. Era pleno inverno e Benny estava ali, morrendo de frio e de fome. Levamos comida, roupa e cobertores.
Passaram-se duas semanas e, de madrugada, recebi uma ligação dos seus companheiros, implorando que fôssemos ao encontro deles numa colina ao redor da cidade. René e eu encontramos Benny completamente pelado, surrado e congelado no caminho para Cuernavaca. A filha do ministro já tinha sido despachada para estudar nos Estados Unidos, e assim terminou o episódio.
Pouco a pouco, fui me apaixonando pelo México, entendendo o ódio dos mexicanos aos espanhóis, que os desprezavam, sua decepção com as classes dirigentes mestiças, que os haviam sempre traído durante as numerosas revoluções sangrentas. Ficava perplexo ao ver o funcionamento perverso do sistema matriarcal, que se por um lado era responsável pela unidade e pela força da família, por outro havia se transformado numa caricatura, cujo desastroso resultado era a transformação da esposa numa santa pura e a existência da “casa chica”, onde o marido sustentava as amantes. Emocionava-me com sua sofrida fé católica, admirava sua dedicação frenética em defesa das raízes, assim como a desesperada luta para preservar as tradições indígenas, que garantiam a permanência de sua identidade. Comovia-me seu abandono quase suicida à bebida, ao incrível culto da tristeza, que se expressava em todas as artes como resposta a todas essas calamidades.
Escrevendo estas linhas, me lembro da praça Garibaldi, célebre pela concentração de dezenas de grupos de mariachis, que ali tocam tanto para os turistas curiosos de cor local quanto para os apaixonados que oferecem canções às noivas. As canções são sempre dramáticas, os versos só expressam traições e desilusões, o amor só traz o choro desesperado.
Eu tinha acompanhado numa noite fria e chuvosa alguns amigos americanos. Estávamos sentados num dos cafés em torno da praça, tomando umas tequilas, quando apareceu um casal de mexicanos, jovens e pobres, bem pobres, vestidos de se dar pena, encharcados de chuva e caminhando abraçados, agarrando-se um ao outro como se temessem cair bêbados ali mesmo, como se a fragilidade de um pudesse carregar a fragilidade do outro.
Eram troncudos e baixinhos, tão baixinhos que o seu tamanho tornava ainda mais dramática sua presença naquele local. Intrigado, fui chegando mais perto; ao mesmo tempo o casalzinho se aproximava de um dos mariachis. O rapaz, com o braço esquerdo em volta dos ombros da moça, com a mão direita buscou no bolso do casaco o dinheiro separado para o mariachi tocar uma canção para ela. Entregou algumas moedas para o líder do grupo, que parecia alto sobre seus saltos e com seu grande sombreiro preto de rancheiro. O homem contou o dinheiro e disse:
— Isso, meu amigo, não dá…
O indiozinho virou-se para a noiva, que retirou do bolso da saia mais algumas moedas e entregou ao rapaz, que, por sua vez, as passou ao mariachi, que contou o dinheiro de novo e, satisfeito, virou-se para os músicos, que começaram a tocar... A chuva era torrencial. O indiozinho voltou a abraçar a namorada e os dois, chorando, ouviam e ao mesmo tempo cantavam a triste canção um para o outro, sob a chuva congelante. Pouco depois, foram embora, abraçados, encharcados, para beber mais algumas tequilas num botequim qualquer da vida.
A convivência com os canais de TV do grupo Televisa foi muito produtiva, amistosa e proveitosa, em muitos aspectos, culminando com a produção simultânea de duas trilhas sonoras — uma para a telenovela e a outra para o filme O direito de nascer, a mãe de todas as novelas. Nossa colaboração foi um belo sucesso. Encomendamos canções inéditas a vários compositores cubanos e mexicanos, interpretadas pelos melhores artistas latino-americanos. Selecionamos músicas antigas de grande relevância para serem gravadas pela orquestra sinfônica da cidade. Foi o primeiro lançamento de um disco oriundo de trilha sonora de telenovela, estratégia que seria aperfeiçoada no Brasil alguns anos mais tarde pela Phonogram e pela Som Livre.
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