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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

GUERRA PEIXE E OS MARACATUS NO RECIFE: TRÂNSITO ENTRE GÊNEROS MUSICAIS (1930–1950) - PARTE 01

Pela passagem dos 20 anos de morte do maestro, o Musicaria Brasil publica, em partes, o artigo escrito pela Doutora Isabel Cristina Martins Guillen* que aborda sobre a sua relação com os maracatus de Recife



RESUMO
Este artigo discute as relações culturais construídas em torno dos maracatus nas décadas de 1930 a 1950 na cidade do Recife, principalmente os trânsitos que a música promoveu entre compositores eruditos, artistas populares e grupos considerados folclóricos. Seu objetivo é demonstrar que nesses trânsitos as ressignificações culturais são amplas e complxas, e seu entendimento pressupõe a reconstituição das redes sociais e culturais em que se deram.


PALAVRAS-CHAVE: maracatus; Guerra Peixe; Recife



A obra de Guerra Peixe, Maracatus do Recife, publicada em 1955, pode ainda hoje ser considerada como o estudo mais completo sobre os maracatus e tem como mérito indiscutível uma vasta pesquisa de campo, da qual resultou a categorização dos dois tipos de maracatus existentes em Pernambuco: o maracatu-nação (ou de baque-virado) e o maracatu de orquestra (ou de baque-solto). Naqueles anos em que Guerra Peixe esteve no Recife (1949–1952), havia entre folcloristas, jornalistas e demais intelectuais uma grande imprecisão quanto à categorização dos maracatus. Tinha-se como legítimo maracatu o tipo hoje denominado de nação ou baque-virado, descrito por Pereira da Costa no início do século XX. 

Este maracatu é constituído de uma corte real da qual fazem parte rei, rainha, príncipes e princesas, além de damas da corte, embaixadores etc. Integram ainda o cortejo real algumas figuras emblemáticas,tais como a dama do paço, que carrega a boneca (ou calunga), o pálio, que protege rei e rainha, e o estandarte. Esse cortejo é acompanhado por um conjunto musical formado por instrumentos de percussão, denominado de batuque (bombos, caixas de guerra e tarol, gonguê e mineiro).

Nas décadas de 1930 e 1940, outro tipo de maracatu tomava corpo na cidade do Recife; Guerra Peixe em seu livro chamaria de orquestra ou baque-solto. Ele se diferencia do nação principalmente pela composição do seu conjunto musical, constituído de um terno (gonguê de duas campânulas, porca — espécie de cuíca —, ganzá e bombo) e de instrumentos de sopro. Além disso, é emblemática do maracatu de orquestra a presença do caboclo de lança, muito conhecido na atualidade e tido como um dos símbolos da cultura popular pernambucana. Os tuchaus, brincantes fantasiados de índios com grandes cabeleiras de pena, também ganhavam visibilidade, e os encontramos nos dois tipos de maracatus.

A não-diferenciação entre as manifestações existentes denota que o significado de maracatu era polissêmico, não se referindo exclusivamente a um tipo específico, visto que algumas “troças”, como o Timbu Coroado, formado de esportistas do clube Náutico, designavam-se igualmente como maracatu. Estou denominando de troças esses grupos porque portavam cartazes de crítica, fossem elas sociais ou críticas de costumes.

Esses grupos, no entanto, convidavam os batuques dos maracatus-nação para desfilarem com eles nos dias de carnaval, a exemplo do Estrela Brilhante, que acompanhou o Timbu Coroado por muitos anos. A imprensa recifense do período não fazia a mínima distinção entre os maracatus nação, como o Elefante ou o Leão Coroado, os maracatus de orquestra, como o Pavão Dourado ou o Estrela da Tarde, e as “troças”, como o Timbu Coroado e o Cata Lixo. Todos os três tipos eram tratados como maracatus.

Entretanto, à medida que adquiriam visibilidade, os maracatus de orquestra começaram a ser encarados como mera descaracterização ou deturpação do “autêntico” maracatu de origem africana, o maracatu-nação. Guerra Peixe foi o primeiro a estabelecer as diferenças entre os dois grupos a partir da análise dos conjuntos musicais e de suas performances. Destacou-se, na ótica de Guerra Peixe, a discussão em torno da extrema complexidade musical existente nos maracatus, contribuindo para a quebra dos conceitos construídos por estudiosos anteriores, que caracterizavam esses grupos como uma música primitiva. Além disso,Guerra Peixe promoveu uma grande revisão bibliográfica, explicitando incoerências e deslizes nas obras de autores que lhe antecederam no estudo dos maracatus, a exemplo de Renato Almeida, Mário de Andrade e Ascenso Ferreira.

Guerra Peixe também foi importante no que diz respeito ao processo de mediação entre os maracatus e a sociedade recifense, contribuindo para que eles fossem vistos de maneira mais positiva. A sua obra foi marcante o suficiente para que ainda hoje seja tomada como referência que orienta tanto intelectuais interessados no estudo da cultura popular como os maracatuzeiros que nele se apoiam buscando um referendo para a legitimidade e autenticidade nos maracatus-nação.

Em que contexto Guerra Peixe escreveu esse livro? Quais foram os debates e questões a que o maestro buscava responder na época? Para encontrarmos respostas a estas indagações, não podemos prescindir de uma discussão sobre as relações, bastante complexas, que se estabeleceram entre música erudita, música popular e folclore no Brasil, nas décadas de 1930 a 1950, e a inserção de Guerra Peixe nesse debate.


Folclore e música: o nacionalismo em Mário de Andrade e suas repercussões

A obra de Guerra Peixe pode ser mais bem compreendida se analisada tomando-se como escopo as idéias que Mário de Andrade colocou em circulação, entre os intelectuais do período, sobre a relação entre modernidade e tradição, entre a música popular e a erudita. Para Mário, o artista moderno (ou modernista) não deveria se apresentar ou pensar sua produção como negação do passado, mas sim como atualização do mesmo, não se afastando, portanto, de certo compromisso com a tradição que a cultura popular sintetizaria. Mário de Andrade propôs uma discussão sobre como deveria ser a música “genuinamente” nacional, entendendo que caberia ao artista (músico) promover uma transfiguração erudita das manifestações populares, enfatizando-se os elementos folclóricos. Essa discussão sobre o papel de Mário como mediador entre música erudita e popular, bem como a influência que ele exerceu sobre os músicos de modo geral, foi encampada pela historiografia. Tomando-se essa discussão como substrato, importa analisar como Guerra Peixe elaborou alguns desses elementos ao pensar o maracatu-nação, principalmente ao formular uma crítica às suas próprias composições no momento em que se confrontou com a cultura popular e os maracatus, de modo especial na cidade do Recife.

É bastante consolidada entre os estudiosos da obra de Guerra Peixe a ideia de que ele apenas teria incorporado temas nacionalistas em sua musica após a fase dodecafônica, depois do período que passou no Recife. Faria Júnior, no entanto, observa que Guerra Peixe teria tido uma primeira fase, que se poderia denominar de protonacionalista, em que a influência das ideias de Mário de Andrade foi patente e reconhecida pelo próprio compositor. Em meados da década de 1930, Guerra Peixe teria lido a obra de Mário de Andrade,Ensaio sobre a música brasileira, e, mais, a incorporação e manuseio de material nacional não se deram apenas por influência de Villa-Lobos, admitida pelo próprio Guerra Peixe, mas também por coleta direta de material folclórico, anterior à sua estadia no Recife. Guerra Peixe teria o hábito de registrar tudo o que ouvia: pregões, desafios etc. Faria Júnior, aliás, fez uma instigante análise da primeira Suíte infantil, baseada em material inédito existente no arquivo do compositor, demonstrando que Guerra Peixe, nos anos de 1942 e 1943, transcrevia para sua obra música popular brasileira, obtida através de coleta direta (“Fanfarra” é coleta de fanfarras executadas por clarins à porta do Teatro João Caetano no carnaval de 1942, porém o mais interessante são os “achechês” fornecidos por J. Espinguela, o Irajá, e por Donga!). Esses pontos não se dissociam da tão controversa questão de haver Guerra Peixe composto e publicado música “popular” sob pseudônimo, deslindando os véus que ocultam as incursões não permitidas dos músicos eruditos pelo mercado da música popular.

Rosa Nepomuceno e Vasco Mariz também reconhecem a influência de Mário de Andrade no trabalho de Guerra Peixe, notadamente nas diretrizes gerais da pesquisa folclórica e sua utilização na música erudita. Mário seguidamente defendeu a pesquisa do folclore como fonte de reflexão para o compositor erudito preocupado em criar uma música nacional. Em Ensaio sobre a música brasileira, ele observava criticamente que poucos intelectuais no Brasil demonstravam real interesse pelos estudos folclóricos:

Pode-se dizer que o populário musical brasileiro é desconhecido até de nós mesmos. Vivemos afirmando que é riquíssimo e bonito. Está certo. Só que me parece mais rico e bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo. (...) Do que estamos carecendo imediatamente é dum harmonizador simples mas crítico também, capaz de se cingir à manifestação popular e representá-la com integridade e eficiência.


Devido à influência modernista e à força de Mário de Andrade, além, evidentemente dos modismos vigentes em Paris, que valorizavam o primitivo, especialmente de matriz africana, Villa-Lobos, Francisco Mignone e Camargo Guarnieri, cada um a seu modo e tempo, trataram de incorporar em suas composições elementos da música popular, correndo muitas vezes o risco de serem criticados por produzirem obras que eram “verdadeiros pastichos da música folclórica”. Ressalte-se que, no início dos anos 1930, Francisco Mignone compôs as primeiras obras do chamado ciclo negro, dentre as quais sobressai Maracatu de Chico Rei. Qual o significado de maracatu nesse contexto? Que tipo de música a palavra agencia? Batuque, tambores, instrumentos de percussão, sinônimos de música folclórica negra. Simbolicamente aliados ao rei negro, que lidera os escravos e libertos, na construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Vila Rica.

Mário de Andrade envidou denodados esforços para promover a recolha folclórica em bases que considerava mais científicas. Enquanto diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, criou a Discoteca Pública Municipal, em 1935, e promoveu a Missão de Pesquisas Folclóricas, que em 1938 realizou um levantamento etnográfico nas regiões Nordeste e Norte, registrando em discos e filmes diversas manifestações da cultura popular, principalmente a musical. Essa tarefa Mário de Andrade já havia sinalizado como de primordial importância quando de sua viagem pelo Nordeste e Norte em meados da década de 1920, em que ele próprio recolheu músicas por Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, particularmente o coco, base para seu projeto inconcluso “Na pancada do Ganzá”.

Guerra Peixe tomou as palavras de Mário de Andrade sobre a recolha do folclore como advertência e indicativo da necessidade de aprofundar o estudo da cultura popular. Em correspondência a Vasco Mariz, afirmava:

O folclore musical brasileiro não está nem recolhido; muito menos estudado e nada aproveitado. O que tem havido é simples imitação da música urbana principalmente do Rio de Janeiro. O folclore musical continua sendo no Brasil o ilustre desconhecido. O seu aproveitamento na música erudita tem sido uma mistificação. Os nossos compositores têm substituído o seu aproveitamento por um suposto nacionalismo. Tem-se é camuflado a música erudita com as sugestões da modinha, da valsa, do choro, etc. Mas isso não é folclore, nem aqui e nem na China.

Nesse sentido, Guerra Peixe aliou-se à tradição andradiana, transformando-se em folclorista renomado, trabalhando durante sua estadia no Recife na recolha de material para posterior estudo sobre caboclinhos, rezas de defunto, maracatus, xangô, cocos, mamulengos e outras manifestações. Em São Paulo, Guerra Peixe atuou com igual dedicação, graças também ao apoio de Rossini Tavares de Lima, da Comissão Paulista de Folclore. Pelo interior paulista, Guerra Peixe registrou jongos, cateretês, modas de viola, congados, dentre outras manifestações que se refletiriam em suas composições. Sobre seu trabalho de recolha, escreveu do Recife a Vasco Mariz:

Meti-me a estudar a música popular desta terra. Quase todas as semanas vou a um brinquedo qualquer, munido de papel, lápis e uma máquina gravadora. Tenho recolhido material que não é vida. A parte rítmica, que tem sido tão descuidada entre nós, tem sido o meu alvo principal. Pois, até agora, só de Xangô, recolhi cerca de 250 ritmos diferentes. Mais uns 80 de maracatu, uns 30 de caboclinhos, etc. Não se contando, naturalmente, as toadas e as loas.
Do maracatu já fiz um trabalho completo, anotando o ritmo de cada instrumento, do conjunto e as toadas, conforme a finalidade e a ordem. Dos caboclinhos, idem. No Xangô é que a coisa se complica. Pois vejo que este estudo requer pelo menos mais um ano de trabalho intenso. As toadas são muitas, os ritmos idem, e tudo isso obedece a uma certa ordem que deve ficar esclarecida. Não são cantadas a esmo, pois estão subordinadas à vinda dos orixás. Por sua vez, os orixás dependem da seita, se nagô, gegi, bata, conco [sic], ou o diabo.
Também tenho visitado um Bumba-meu-boi, uns Guerreiros, uma Ciranda e uma Aruenda.
É coisa que não acaba mais, e que nossos compositores não conhecem. Mesmo que já tenham assistido a esses brinquedos uma vez ou outra, não basta, porque isso tudo tem algo de muito mais profundo e exige um estudo demorado. Mesmo o teatrinho de bonecos típicos, o Mamulengo, tem sido alvo de minhas atenções.
Para o mês irei a Garanhuns para assistir a dois reisados, um inteiramente de homens, outro de mulheres. E os nossos folcloristas (inclusive O. Alvarenga) dizem não haver reisado em Pernambuco. Esses brinquedos não são conhecidos dos nossos compositores, nem mesmo do Villa. Depois dessa pequena série de manifestações desconhecidas, como afirmar que a música erudita brasileira é baseada no folclore?

Sua presença no Recife seria, portanto, da maior importância, refletindo-se não só em suas composições. É inegável que Guerra Peixe, a partir dessa recolha, contribuiria decisivamente para a compreensão e o estudo da cultura popular. Se tal estudo foi fundamental para a trajetória de Guerra Peixe, como essas questões eram discutidas em Pernambuco?
De que modo ele atuou na cidade e na cena cultural do Recife? Que debates suscitou?


Recife: trânsitos entre o popular e o erudito

Ao se debruçar sobre a história da música popular brasileira, pode-se constatar a complexidade com que os trânsitos culturais entre popular e erudito contribuíram para deslindar as fronteiras então supostamente tão bem estabelecidas entre um e outro. Hoje, hibridismos, mestiçagens, transculturação ou mediação cultural são conceitos utilizados para se tentar dar cabo dessa complexidade que pôs em circulação cultural Villa-Lobos, Ernesto Nazaré, Donga, Mário de Andrade e muitos outros. A história do samba no Rio de Janeiro é exemplar e muito bem estudada, demonstrando — como Chartier tão bem colocou — que os trânsitos entre o popular e o erudito dissolvem essas fronteiras. No entanto, nas décadas de 1930–1950 essas fronteiras apareciam para muitos intelectuais como territórios muito bem demarcados.

Torna-se necessário, no entanto, dilatar a visão dos círculos por onde se deu esse trânsito com a explícita intenção de mostrar que os percursos são mais amplos e mais complexos, principalmente quando se trata da discussão sobre o nacionalismo na história da música brasileira, seja ela popular ou erudita. É óbvio que nessa questão a contribuição de Guerra Peixe ainda precisa ser debatida. É notável, por sinal, a ausência na historiografia brasileira de um debate mais acurado sobre essa temática na década de 1950, após as críticas ao movimento dodecafônico feitas por Camargo Guarnieri e as defecções de Guerra Peixe e Carlos Santoro, seguindo orientações do II Congresso Internacional de Compositores e Críticos Musicais, ocorrido em Praga, em 1948, em que explicitamente se recomenda aos compositores que adiram à cultura nacional de seus países.

Importa acentuar, para nossa discussão, que, nos anos de 1930 a 1950, em meio à intensa repressão aos maracatus e às religiões afro-descendentes desencadeada pelo governo de Agamenon Magalhães, houve, sim, um movimento que alçou os maracatus-nação do lugar de “coisas de negro”, reminiscência de antigas práticas de escravos africanos, para a condição de cultura autenticamente pernambucana, matriz africana na mestiçagem cultural que se promoveu e valorizou nesse período. É importante destacar que esse movimento foi perpassado por uma forte tensão social e política entre duas grandes tendências, quais sejam, as que viam na cultura popular as bases para se firmar a identidade regional — e Gilberto Freyre é seu grande representante — e aqueles que, atuando no governo de Agamenon, promoveram a repressão à cultura afro-descendente com o intuito preciso e explícito de lançar as bases para a civilização e modernização da cidade. Tensão social evidentemente também presente entre os populares, aqueles que precisavam tocar para os orixás, que desfilavam no carnaval com seus maracatus e que procuravam se inserir nessa discussão e disputa política, buscando legitimidade e aliados para manter suas práticas e crenças.

O maracatu encontrava-se no centro desse debate e apareceu pontualmente na obra de alguns dos modernistas que atuavam no Recife, notadamente Lula Cardoso Ayres, não mais com aquele caráter saudosista e melancólico que encontramos na obra de Pereira da Costa ou Mário Sette. Esse novo olhar, perceptível na obra de Lula quando elegeu como um de seus temas a rainha do maracatu em sua majestade, foi precedido de um significativo movimento que, entre 1930 e 1950, também reposicionou o lugar da cultura afro-descendente. A realização do I Congresso Afro-brasileiro no Recife, ao final do ano de 1934, causou grande impacto cultural na cidade. A forma como foi organizado — na verdade, seu caráter informal — foi decisiva para certa aceitação das “contribuições” da cultura afro-brasileira para a formação da nacionalidade.
Após a realização do I Congresso Afro-brasileiro, os trabalhos nele apresentados foram publicados e prontamente discutidos nas páginas do Diário de Pernambuco. Aos poucos, novos sinais de incorporação da cultura afro-descendente adentraram as práticas culturais das elites, o que não implicou sua plena aceitação — é preciso se discutir o quanto ela ainda é vista como manifestações pitorescas e reminiscências de antigas práticas de negros escravos. A folclorização apaziguadora é capaz de fazer com que certa cultura seja aceita e, ao mesmo tempo, que se mantenham os negros “no seu devido lugar”. No artigo “Negros e brancos no carnaval da Velha República”, Peter Fry e demais autores observam que

explicar por que os batuques — ou mais precisamente a identidade étnica que eles simbolizavam — se transformam em problema público implica, com certeza, a compreensão da alteração significativa que ocorre na relação entre governantes e governados. Aos escravos podia-se permitir manter seus valores e crenças — porque eram concebidos como estando fora da sociedade. Aos negros cidadãos deviam ser negros só na pele. No mais, há a necessidade de eliminar os vestígios africanos.

O governo de Agamenon Magalhães resolveu levar a sério tal necessidade e redobrou esforços intelectuais e recursos institucionais para reprimir práticas consideradas bárbaras e incivilizadas. Durante esses anos, a cultura afro-descendente viveu momentos de dura repressão, legitimada pelo Estado.

Entre idas e vindas, em 1938, a famosa bailarina Eros Volusia, que provocava furor no Rio de Janeiro, veio ao Recife e apresentou, no Teatro Santa Izabel, duas coreografias que tinham como tema o frevo e o maracatu. No Anuário do carnaval pernambucano, publicação feita pela Federação Carnavalesca Pernambucana (FCP), em 1938, podemos admirá-la em uma fotografia em que vestia uma fantasia assemelhada aos caboclinhos e ficamos sabendo que esses artistas não perdiam a oportunidade de conhecer a cultura afro-descendente, pois lá apareciam fotografias de nossa esfuziante dançarina no Xangô do Pina e no Maracatu Cruzeiro do Forte. Percorrendo ainda as páginas desse anuário, encontramos outras fotografias de xangôs, bem como do Maracatu Leão Coroado e do Maracatu Elefante. Será que podemos afirmar que essas imagens e descrições da cultura afro estavam se transformando em algo corriqueiro? E isto pode ser tomado como indício de sua aceitação pela sociedade? Infelizmente, não! Sob a égide de Agamenon Magalhães, que tinha como entre seus principais assessores um grupo de católicos fervorosos, as religiões afro-descendentes conheceram dias de intensa perseguição. E os clubes, as troças, os caboclinhos e os maracatus, dias de normatividade.

Ainda em 1938, aportou no Recife a missão folclórica organizada por Mário de Andrade, que percorreu o Norte e o Nordeste gravando, filmando e fotografando diversas manifestações da cultura popular. Dirigida por Luis Saia, a missão ficou poucos dias no Recife, gravou os famosos cantos de carregadores de piano, mas teve enorme dificuldade em conseguir um terreiro para gravar o xangô devido à situação política (vigilância policial em torno das religiões afro-descendentes):


A manifestação folclórica de maior interesse etnográfico para a Missão, em Recife, era o xangô. A delicadeza da situação política dificultava a obtenção de autorização oficial prévia, cedida pela Polícia da capital, necessária para registro dos cultos de feitiçaria afrobrasileira. No entanto, apesar da radicalização do processo empreendido pelos Católicos Marianos, no sentido de apagar da sociedade todo e qualquer tipo de manifestação religiosa afro-brasileira, os integrantes da missão conseguiram permissão pra que fosse realizado um toque de xangô para efeito de filmagem.


A missão folclórica gravou alguns segundos do Maracatu Leão Coroado, além de Saia ter anotado em suas cadernetas de campo algumas toadas que ouviu. Se o maracatu não foi privilegiado pela missão, graças, no entanto, ao trabalho de diversos intelectuais, bem como à atuação de seus próprios dirigentes, encontrava-se em vias de ser alçado a símbolo da autêntica cultura negra em Pernambuco, presente nas obras de Ascenso Ferreira, Capiba e Lula Cardoso Ayres.

Lula foi inegavelmente um dos grandes responsáveis por um olhar positivo sobre os maracatus (tanto o de baque-virado quanto o de baque solto). Desempenhou um papel-chave no sentido de firmar uma imagem da rainha do Maracatu Elefante — Dona Santa — através dos seus desenhos e suas fotografias. Em 1941, em plena repressão aos xangôs e catimbós, Lula surpreendeu o Recife com os murais que elaborou para decorar o Clube Internacional, introduzindo temas do carnaval de rua, como maracatus, caboclinhos e ursos. Toda a imprensa reagiu favoravelmente, admirada com a beleza da cultura popular. Mais do que isso, seus murais suscitaram um rico debate sobre a identidade do carnaval pernambucano e as contribuições da cultura popular para a tradição.

À revista Contraponto, editada em Recife a partir de 1946, coube, em larga medida, a difusão do traço de Lula. Nela, ele publicou muitas gravuras que tinham como tema a cultura popular, principalmente o carnaval e, em especial, o maracatu. Nos seus primeiros números, Lula colocou na capa gravura sobre o maracatu e, no número 7, de março de 1947, vemos Dona Santa estampada na capa. A divulgação que Lula promoveu de Dona Santa a tornou célebre, através não só das fotografias que publicou, mas também das gravuras que fez da rainha de maracatu, com a legenda “quem não conhece, nas ruas do Recife carnavalesco, esta rainha de Maracatu apanhada pelo lápis de Lula?” E lá estava Dona Santa consagrada e reconhecida como “a” rainha de maracatu. Contudo, é na figura do que hoje denominamos de caboclo de lança que Lula revelou seu poder de observação. Foi indubitavelmente um dos primeiros a difundir imagens dos caboclos de lança e dos tuchaus, interessando-se pela sua exuberância dessas manifestações e distinguindo a diferença em meio às várias personagens da cultura popular. Devido às lentes de Lula, e a seu traço, o olhar se esmiuçou no detalhe que o conjunto oculta. Não mais descrições generalizadas, e, sim, personagens específicos, pessoas que fazem o carnaval.

Mas, sem dúvida alguma, é a atuação dos compositores de maracatu que devemos aqui discutir, com o intuito de estabelecer uma relação com as composições de Guerra Peixe. Capiba, no início dos anos 1930, tinha composto uma série de “maracatus”, musicando algumas poesias de Ascenso Ferreira e compondo outras. Venceu concursos musicais com É de tororó e Eh! Uá! Calunga. O maracatu constituía-se, ou estava se constituindo, portanto, num gênero musical da “cultura popular” não folclórica. Assim como o frevo e as marchinhas, era composto especialmente para o carnaval, animando os bailes nos clubes em dias de festa de momo. Existiam concursos promovidos pela Federação Carnavalesca Pernambucana, e os vencedores tinham suas composições publicadas nas páginas dos jornais. Houve um grande esforço por parte da FCP e, sobretudo, de seu dirigente, Mário Melo, para que o maracatu se firmasse nacionalmente como gênero musical genuinamente pernambucano. Para tanto, se incumbiram de divulgar esses maracatus nas rádios cariocas, gravavam essas músicas na voz de Francisco Alves e outros mais. O esforço não era para difundir o folclore pernambucano, e, sim, pela criação de um novo gênero da música popular, quase que disputando espaço com o já consagrado samba.

Porém, esse gênero de maracatu efetivamente não se consolidou, e podemos encontrar nas páginas dos jornais do Recife do final dos anos de 1930 uma discussão sobre as razões que o levaram a “cair de moda” em meio à década de 1940, lamentando-se seu “desaparecimento”. Instando os compositores a comparecer nos concursos musicais, o cronista da coluna “Mundos de Luz e Som” lamentava o fato de que não mais se compunham maracatus. Sebastião Lopes aceitou o desafio e compôs novo maracatu, enquanto Capiba prestava esclarecimentos: não havia “ambiente” para se comporem músicas daquele gênero. “Não sei se a transição política que sofremos tem contribuído para isto, mas o fato é que o ambiente não é o mesmo de 1933 e 1937, quando lancei É de tororó e Eh. Uá. Calunga.”

Essas composições de Capiba, datadas dos anos 1930 e classificadas como maracatus, e que aparecem transcritas e publicadas na obra organizada por Ascenso Ferreira, É de tororó, editada em 1951, não foram devidamente analisadas do ponto de vista musical, exceto por Ariano Suassuna, em ensaio publicado no mesmo volume. O maracatu composto por Capiba, com letra de Ascenso Ferreira, É de tororó, não obstante, foi sucesso no Recife, seguindo para o Rio de Janeiro, onde foi incluído em um dos quadros da revista de Jardel Jércolis, que excursionou pelo Brasil, Espanha e Portugal. Esse mesmo maracatu tornou-se sucesso carnavalesco no Rio de Janeiro no ano seguinte. Ao comentar a publicação do livro É de tororó, Manuel Bandeira afirma:

Uma das mais fortes impressões que guardo do tempo da meninice foi o meu primeiro encontro com um maracatu. Era terça-feira gorda e eu ia para a Rua da Imperatriz, no Recife, assistir de um sobrado a passagem das sociedades carnavalescas. Filomomos, Pás, Vassourinhas. De repente, na esquina da Rua da Aurora, me vi quase no meio de um formidável maracatu. De que “nação” seria? Porto Rico? Cabinda Velha? Leão Coroado? Não me lembro. Dos melhores era, a julgar pelo apuro e dignidade do Rei, da Rainha e seu cortejo — príncipes, damas de honra, embaixadores, baianas. Pasmei assombrado.
Tudo em volta de mim era carnaval: aquilo não! Mas o que é que me fazia o coração pulsar assim em pancadas de medo? Analisando agora, retrospectivamente o meu sentimento, creio que o motivo do alvoroço estava na música, naquela música que mal parecia música — percussão de bombos, tambores, ganzás, gonguês e agogôs, num ritmo obsessor, implacável, pressago... Mesmo de longe (lembro-me de certas noites em que, na velha casa de Monteiro, a viragem trazia uns ecos de batuque, o ritmo dos maracatu...) invocava.
Todas essas memórias dos meus oito anos, impagáveis como o cheiro entre mar e rio do cais da rua da Aurora, buliram em mim, mais vivas do que nunca, à leitura do livrinho É de tororó... 

Bandeira ressalta que Capiba não foi apenas compositor popular, mas cuidou igualmente de transpor para música erudita os temas da cultura popular. Na sua Suíte nordestina, transcrita para orquestra por Guerra Peixe, a música negra e o batuque estão presentes. Bandeira identifica na sonoridade dos maracatus de Capiba os velhos maracatus de sua infância, notadamente o Eh, Luanda! “Reconheci logo nos acordes da mão esquerda aquele ritmo obsessor, implacável...” Tema intrigante e que deixo como instigação para que os músicos se dediquem a pensar no assunto.

Ainda a respeito dos maracatus de Capiba, o ensaio de Ariano Suassuana analisa as composições em questão, discutindo os caminhos que os compositores poderiam percorrer quando se tratava da relação com a música popular. O compositor simplesmente poderia, “sem maiores aspirações que lhe seriam insufladas por um talento maior”, compor novos frevos, maracatus etc. Nessa categoria classifica Eh, Luanda! e Maracatu Elefante, que Capiba criou em homenagem a Dona Santa. O segundo caminho apontava para a “superação do popular”. Deixemos que o próprio Ariano Suassuna nos explique:

Partindo da simples imitação das formas populares, passará ela por uma fase de transposições, para chegar finalmente à recriação, sua forma mais alta. A imitação é, no caso, o campo do compositor popular; e a transposição o de uma espécie intermediária, importantíssima para a criação de uma música nacional. (...) Em nossa região, foi Capiba um dos primeiros que tentou realizar aquilo que chamamos acima de transposição do popular, rasgando novos caminhos que só mais tarde serão realmente apreciados.

Capiba teria feito uma série de “transposições” em frevos, valsas, choros e “canções”. Ariano Suassuna observa que há nessas composições claros contatos com as músicas de Stravinsky e Mozart, porém a melhor criação nesse terreno foi sem dúvida a Suíte nordestina. Assim posto, classifica grande parte dos maracatus de Capiba nessa segunda categoria (apesar de reconhecer que alguns deles foram compostos para concorrer aos concursos do Diário de Pernambuco e da FCP). O maracatu É de tororó, com poema de Ascenso Ferreira, “apresenta uma espécie de reversão ao trágico espírito religioso do negro, mesclado da angústia que assumirá formas musicais lentas e dolorosas — em estilo sempre romântico-negro”. Tal estilo refere-se à “música melancólica” acrescida, entre outras, de palavras como penar, sofrer, chorar e esquecer. Essa ligação “líteromusical” remete à “tragédia de raça do negro”, evocada por música e palavra.

Esse era o ambiente que se vivia no Recife quando Guerra Peixe chegou, em 1949, contratado pela Rádio Jornal do Commercio. Que trabalhos musicais desenvolveu? Como atuou na cidade, entre seus intelectuais? Sabemos que Capiba foi seu aluno, em aulas de harmonia e composição, da qual resultou a orquestração feita por Guerra Peixe de sua Suíte nordestina. O mesmo aconteceu com Sivuca e muitos outros músicos importantes na cidade. Vejamos agora como essa estadia de Guerra Peixe no Recife foi fundamental em sua carreira musical, bem como para a relação que estabelecerá entre o popular, o folclórico e o erudito.



*Isabel Cristina Martins Guillen
Doutora em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autora, entre outros livros, de Errantes da selva: histórias da migração nordestina para a Amazônia. Recife: Editora da UFPE, 2006. iguillen@uol.com.br

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