Toquinho (Especial para o Estado)
Quando comecei a trabalhar com Vinicius, em junho de 1970, ele ainda evitava viajar de avião. Então fomos para a Argentina de navio. Eu sentia uma sensação estranha, não sabia direito o que é que eu ia fazer lá. De repente, estava a bordo de um navio junto com Vinicius de Moraes, um ser humano grandioso de quem eu só conhecia o que ele tinha escrito e cantado por aí.
Sei que na primeira noite no navio eu passei muito mal, no meu quarto, enjoado, com tudo a balançar por todos os lados. E Vinicius sentado a uma escrivaninha, segurando o copo para que ele não caísse, conversando naturalmente, sem se alterar. Ficou lá ao meu lado, como um pai, ou melhor, como alguém com pretensões de se fazer amigo. Nossa relação começou assim, e logo de cara eu passei a vê-lo um pouco como irmão, porque ele não sabia ser velho, o que na realidade ele não era.
Chegamos em Buenos Aires dois dias antes do final da Copa de 1970 e começamos a trabalhar. O Brasil ganhou a Copa, nosso show na boate La Fusa já fazia um grande sucesso e, naquele domingo, abrimos o espetáculo com aquela música: “A taça do mundo é nossa/ Com brasileiro, não há quem possa...”. Então, minha relação de amizade e conhecimento com Vinicius já se iniciou em meio a esse clima positivo da seleção ganhando a Copa, nosso show em pleno sucesso, aqueles jantares invadindo a madrugada.
Houve uma adaptação perfeita entre a gente, porque tudo que Vinicius gostava de fazer eu também gostava: tocar violão, curtir os temas que iam saindo, comer bem, viver a noite ao lado de amigos e mulheres bonitas. Voltei da Argentina com aquela sensação gostosa de ter trabalhado com Vinicius. Ainda não tinha saído nenhuma música nessa primeira viagem. Já no navio eu tinha mostrado a ele um tema que eu estava desenvolvendo. Ele gostou da ideia, ficou curtindo, mas não colocou letra. Isso aconteceria quase dois meses depois. Vinicius estava casado com a baiana Gesse, que arrumou para fazermos três shows no Teatro Castro Alves, em Salvador, nos dias 6, 7 e 8 de setembro.
Durante a viagem de ônibus à Bahia, Vinicius fez a letra para aquele tema. Aí começava efetivamente nossa parceria, com a música Como dizia o poeta.... Lançamos essa música no Teatro Castro Alves, levando desta vez a Marília Medalha para cantar com a gente. Esse show foi um risco, pois era quase uma afronta fazer e mostrar música brasileira numa época em que prevaleciam o tropicalismo, o rock, as guitarras. O show do dia 7 foi dedicado aos estudantes, que responderam com uma ovação memorável!
Animados por esse indício de sucesso, tomados pela Bahia, que já entrava na vida da gente, não precisava nem de muito esforço para as músicas brotarem. Surgiram A bênção, Bahia, Mais um Adeus, mas apesar disso, não imaginava que a parceria fosse tomar o impulso que tomou e chegar até onde chegou. Sentia insegurança, não sabia se ele ia gostar de minhas melodias. Então, ele fez a letra de Tarde em Itapoan e ia dar para o Caymmi musicar. Um poema lindo, perfeito, era a oportunidade de fazer uma melodia que não deixasse nenhuma dúvida quanto à minha capacidade musical. Aí, simplesmente “roubei” a folha de papel da máquina de escrever, vim para São Paulo e, depois de três dias, voltei para Salvador com a canção pronta. Depois de ouvir inúmeras vezes, Vinicius aprovou. Foi aí que ganhei o poeta! Tarde em Itapoan tem uma melodia maravilhosa, parece que Vinicius letrou a música. Então, embalamos de verdade, num intenso processo criativo. Nos dez anos de parceria, criamos mais de 100 canções, gravamos perto de 25 discos e fizemos mais de mil shows aqui e no exterior.
O que Vinicius queria. O que determinou a consolidação rápida e consistente dessa parceria foi o fato de termos nos encontrado no momento mais adequado para um e outro. Eu tinha o que o Vinicius queria: uma pessoa que tivesse disponibilidade para ficar trabalhando com ele, e que tivesse uma linguagem nova. Eu era totalmente disponível e motivado a ficar do lado dele. Contribuiu para isso o grande entrosamento existencial entre nós. Jamais enxerguei Vinicius como um pai de postura paternal e protetora. Mesmo porque ele não agia assim nem com os próprios filhos. A feição de pai surgia por sua grande sabedoria de vida. E, ao mesmo tempo, quando se via diante de um pescador, por exemplo, me falava cheio de emoção: “Não sei absolutamente nada da vida perto de uma pessoa assim.”
É que ele carregava o tempo inteiro o garoto que ele era, o jovem disposto e disponível à vida; que arriscava nas coisas, que chegava tarde para acordar cedo, e acordava cedo; que ficava como um Buda, sentado na capota do carro do Bardotti, em Firenze, dando voltas pela mesma praça, depois de algumas garrafas de vinho no jantar; que bebia até mais tarde sem problemas de ressaca no dia seguinte. Muito mais resistente que eu nesse aspecto. Mas, por mais controvertido que pareça, foi ele quem me ensinou a ser profissional, a cumprir horários, a observar compromissos, a respeitar as pessoas. Isso reflete as contradições desse grande poeta. “O cotidiano é a ferrugem da vida”, ele dizia.
Essa ferrugem o agredia demais, a ponto de, diante do espelho, começar a fazer a barba de um lado do rosto, e, no outro dia, iniciar pelo outro lado. Tudo para ludibriar a ferrugem do dia-a-dia. Odiava esse lado massacrante da vida, mas procurava harmonizar-se com isso tudo. Dizia que a bebida o ajudava a encontrar essa harmonia. Em tudo, ele confirmava o que um dia Drummond disse dele: “O único Poeta que viveu como poeta.” Vinicius nunca soube viver sem poesia.
Na rapidez do cotidiano quase sempre não cabe poesia, mas ela o acompanhava o tempo inteiro. Para ele, tudo era natural. Quantas vezes fiz parte dessa poesia, desde ter de erguer as calças dele, que, de um tanto largas, caíram-lhe em plena Avenida São Luiz, e ele não usava cuecas, e tinha ficado nu da cintura para baixo em pleno centro de São Paulo, depois de uma das muitas noitadas que fizemos. Não dando a mínima, achando-se a verdadeira poesia concreta daquele burburinho urbano. Até ter de enfrentá-lo zangadíssimo numa manhã: acordei, desci para o café, e Vinicius já estava à mesa, fumando, sem levantar os olhos do jornal. Dei bom-dia, tentei conversar, e ele não respondia: “Aconteceu alguma coisa, Vinicius?”, perguntei. Ele olhou-me furioso: “Olha aqui, Toco, se um dia você ousar alguma coisa com minha mulher, eu não te mato, porque é pouco. Sabe o que eu faço? Te amarro numa cadeira, prendo tuas mãos abertas na mesa, vou martelando dedo por dedo. Para você, esse castigo será pior que a morte. Toma cuidado, pois farei isso!” E ele falava ruminando a fúria em cada palavra. É que durante a noite, ele sonhara comigo tentando namorar a Gesse, e vivia aquilo com tanto realismo, sentindo-se traído, como se tudo fosse verdade, pela força da fantasia.
Esse era o Vinicius. Segundo ele, nossa relação era como um casamento sem sexo. O resto tinha tudo, ciúme e inclusive algumas brigas, claro. No fundo, e o mais importante, um grande amigo que a vida escolheu para morrer quase em meus braços. Sentindo-me, de início, um objeto da blasfêmia da vida, eu admitiria depois como um privilégio ter sido o escolhido para vivenciar as últimas horas do poeta.
Fonte: estadao.com.br
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