Por Mariana de Moraes (especial para o Estado)
Relembro e te vejo sorrindo ao meu lado, as mãos entrelaçadas, quentes, protetoras, as pessoas a te olhar na rua. No seu rosto um risinho maroto de quem sabe e não diz. “Pai, por que as pessoas te olham tanto?” “Você acha, Mariazinha?” “Olham sim, você sabe.” “Sei não” – o riso largo, sacana, já quase uma gargalhada – “não sei porquê me olham na rua”.
E seguimos em silêncio, os passos sincronizados, os meus saltitantes, passeando pelas ruas da cidade. Eu, uma menina de 7 anos, sem acreditar muito na resposta, algum mistério, esse pai cheio de histórias. Logo entendi o que quer dizer no poema o “Haver: resta esse desejo de sentir-se igual a todos, de refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória. Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade, de não querer ser príncipe senão de seu reino.” Papai era um homem sofisticadamente simples.
Décadas depois desse registro de memória afetiva dos poucos momentos em que estivemos juntos, o mantenho, pai e filha, mais ninguém, e assim, como filha, apesar do poeta ser do mundo, o guardo possessivamente dentro de mim. Meu pai. Tivemos pouco tempo, mas tive também, por ser temporã, momentos de um homem já avô, experiente, sábio, sempre gentil e verdadeiro. Ainda assim, nunca perdeu o espanto frente às coisas, esse espanto que os poetas têm, no cultivo de um olhar primeiro, de manter o menino que “achava bonita a palavra escrita, por isso sofria de melancolia, de sonhar o poeta, que quem sabe um dia, poderia ser”, ditos em O Poeta Aprendiz. E é, pai, para sempre, um grande e amado poeta, com um alcance impressionável. Para mim um dos melhores, craque nos sonetos, técnica impecável, sentimentos sublimes, tocando o coração das pessoas facilmente, as alegrando e diminuindo a pressão de se saber, das angústias, das dúvidas, da intensidade dos sentimentos.
Na busca em torno dessa ausência de quem perdeu o pai muito cedo, me sinto privilegiada, pois, afinal, quantos órfãos podem ter um pai tão presente, vivo na memória e nos corações das pessoas? Um pai que se vai e deixa uma obra aonde me aconselho desde então, na busca desse homem, dessa personalidade, do que pensa, do que sente, do que me reconheço, do gosto pela leitura, o amor e respeito à vida, principalmente pela humanidade. Quando é grande a dúvida e a angústia, é em Poética que sossego, afinal, o tempo é quando.
Era um homem, acima de tudo, perfeitamente imperfeito. Não há praticamente um dia que não esteja presente, seja nas canções executadas em todo o mundo, seja na grande referência que se tornou para todos, gente humilde, os acadêmicos, os amantes, estudantes, artistas, jornalistas, as crianças, as pessoas que o citam tanto, na mesma busca dessa filha por um conforto, um entendimento do que é sentir para valer! Como você disse, “quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu .”
Entre tantas ações comemorativas, uma das que mais me dá alegria é a visitação às escolas. É uma lindeza ser recebida com frisson pelos alunos, alguns tão miúdos que é extraordinário perceber que com 5 anos, antes mesmo da alfabetização, que se sintam íntimos do poeta centenário, do compositor que mudou paradigmas em suas letras geniais. Eu me emociono tanto, e acho graça, você é um pop star, e eles te buscam como eu, como tantos, como você sempre buscou com verdade e sem limites a si mesmo. E assim, cultivam o gosto pela poesia e se aventuram na escrita, seus novíssimos leitores, quanta ternura!
Ganhamos todos, que bem a cultura da nossa Pátria Amada, tão pobrinha, você faz. Tenho muito orgulho do branco mais preto do Brasil, um homem a frente de seu tempo, que ganhou o mundo, levando o melhor de nossa brasilidade. Com Orfeu e suas canções teve o reconhecimento internacional e até o imaginário do que o estrangeiro pensa sobre nós, levou Ipanema aos 4 continentes, fazendo as pessoas suspirarem em muitos idiomas e gravações a passagem do tempo.
Sei que olha por nós, e com prazer sei que é uma vitória ver seus filhos – de idades e mães diferentes – tão unidos, responsáveis. Seu maior legado é o AMOR, sem dúvida, esse sentimento poderoso que nós herdamos com intensidade, nem sempre é fácil ser de Moraes. Juntos, trabalhamos incansavelmente para divulgar sua obra, respeitando seus desejos, numa curadoria permanente para manter o alto nível de sua qualidade artística, tentando seguir o tempo e as mudanças, com todo o respeito ao autor. Seus netos são pessoas especiais, sensíveis, e todos nós temos uma certa meninice, comum à família, não envelhecemos por dentro.
Eu me lembro do texto do amigo e poeta Carlos Drummond de Andrade, publicado logo após a sua partida, um diálogo entre Deus e o simpático São Pedro, a perguntar quem era aquele baixinho de violão, copo cheio na mão, será que faria bagunça no coro dos anjos? E São Pedro responde que Vinicius combateu a maldade pela ternura, a injustiça pela fraternidade, que nasceu com a célula poética, desabrochou em canções variadas, encantou o povo e morreu fazendo música para as crianças. Sou uma voz a mais na multidão a cantar: Se todos fossem iguais a você, que maravilha viver!
Fonte: estadao.com.br
Fonte: estadao.com.br
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