CAPÍTULO 15
Dois megaconcertos, com imensa participação do público estudantil, realizados em uma mesma noite de 20 de maio de 1960, no Rio — um na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), chamado “A noite do amor, do sorriso e da flor”, e o outro na Pontifícia Universidade Católica (PUC) —, a partir de uma dissidência entre Bôscoli e Carlos Lyra, comprovaram que a bossa nova era, de fato, a música que faltava para a juventude brasileira.
Além de ser uma manifestação artística nova, trouxe grandes mudanças de comportamento na relação “estúdio de gravação/artista”. Um dos melhores exemplos é novamente João Gilberto, que impôs gravar 13 vezes a mesma canção até se dar por satisfeito, numa época em que o intérprete normalmente tinha o direito de repetir somente duas ou três vezes a sua performance. Outra mudança fundamental aconteceu na relação entre arranjadores e cantores: até então, com raríssimas exceções, o arranjador/ produtor escolhia a música que considerava conveniente para o cantor, determinava o tom do arranjo, escrevia sem muito consultar o intérprete, que, no estúdio, tinha meia hora para colocar a voz.
A partir desse momento, o artista passou a ter cada vez mais liberdade na escolha do repertório e no encaminhamento do arranjo.
Foi também a partir das necessidades técnicas de sonorização, simplesmente não disponíveis nos lugares onde os artistas e músicos da bossa nova trabalhavam, que as companhias de discos tiveram que se envolver na produção dos shows. O concerto “A noite do amor, do sorriso e da flor” é o melhor exemplo disso: retirei do estúdio da Odeon alto-falantes, amplificadores e, salvo engano, os microfones, para levar ao palco da Faculdade de Arquitetura. Era uma iniciativa inédita até aquele momento na história do show business brasileiro.
Para enfrentar com alguma chance de êxito aquele panorama à primeira vista desfavorável, contratei o Bôscoli — que, fora suas horas noturnas com a bossa nova, era um jovem repórter da revista Manchete e do jornal Última Hora, além de autor de muitas canções em parceria com Menescal e Carlos Lyra — como estrategista desse meu plano junto à imprensa. Bôscoli foi, sem dúvida, uma das pessoas mais inteligentes que conheci na profissão. Poderia ter sido um poeta de importância se não tivesse sido tão dispersivo. Foi fundamental na descoberta de uma nova linguagem poética para se adequar à nova proposta harmônica e rítmica (“É sol, é sal, é sul...”) sua sagacidade era única, precisa. Foi um trabalhador incansável. Por fim, foi quem batizou aquela nova música de bossa nova, a partir do verso “Isto é bossa nova, isto é muito natural”.
Ronaldo veio, então, se juntar ao que eu chamaria de meu “grupo de choque”, composto por Chico Pereira , César Villela e Otto Stupakoff, dentro da Odeon. Publicamos um trade paper mensal chamado Etiqueta O, que até hoje surpreende pela qualidade estética e pelo conteúdo revolucionário nos conceitos que ainda não eram identificados como “estratégia de marketing”.
Mensalmente, produzíamos sofisticadas apresentações audiovisuais dos lançamentos em curso para as lojas e os meios de comunicação do Rio e de São Paulo, com forte ênfase à bossa nova.
Assumi pessoalmente a responsabilidade da divulgação de João Gilberto perante as estações de rádio e de TV, e, por assim dizer, fui bater de porta em porta “com João debaixo do braço” em cada uma delas, falando com seus diretores de programação.
Afinal, com a ajuda de alguns radialistas, a resistência começou a ceder e “Chega de saudade” estourou em todas as emissoras do país.
Uma ajuda indireta veio da Companhia Brasileira de Discos, quando Armando Pittigliani contratou Carlos Lyra, Nara e Sergio Mendes, entre outros, e consequentemente mais uma gravadora entrou nessa batalha, basicamente uma guerra contra os diretores de programação mais velhos, que instintivamente pressentiam o perigo representado para seus confortáveis feudos por uma música que, de certa maneira, rompia com o passado.
De São Paulo, algum tempo depois, um movimento musical paralelo se juntou a nós, sob a liderança inicial do Zimbo Trio e do Walter Wanderley.
No entanto, a chegada da bossa nova foi cruel para um grupo de artistas como Lúcio Alves, Dóris Monteiro e Agostinho dos Santos , até então na vanguarda da música brasileira. De um dia para o outro perderam a liderança. Somente Maysa seguiu acima do bem e do mal, se assim posso dizer, para desespero de Aloysio, que via a carreira de Sylvinha Telles estancar à sombra de Maysa, que acabou gravando um disco de bossa nova com arranjos fantásticos do Luizinho Eça.
No início da década de 1960, João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes já eram sucesso nacional. Muita gente reivindicava o crédito de tal fenômeno e Ronaldo costumava dizer, ironicamente, que a bossa nova passou a ter muitos pais, mas ninguém sabia quem era a mãe.
Passaram se os anos e sempre voltava à minha cabeça a mesma pergunta: “Quem poderia ter sido, de fato, a mãe?” Até que percebi que, para mim, a verdadeira mãe tinha sido o próprio Dorival Caymmi.
Ele foi a “mãe de direito”, porque a sua arte e o seu estilo romperam com muitas tradições estilísticas, porque ele trouxe ao sucesso popular canções com alma puramente brasileira. E foi também a “mãe de fato”, porque foi ele quem nos apresentou ao João Gilberto.
Eu ia quase todas as noites a uma boate perto da rua Duvivier, que pertencia a um francês de reputação certamente duvidosa, e onde Caymmi, em longas temporadas boêmias, cantava até o dia amanhecer. Era comum a poderosa e temida Estela, sua mulher, irromper na boate, com o semblante furioso, e em voz bem alta manifestar que era a dona do homem:
— Caymmi, é hora de voltar para casa. E já! E Dorival saía cabisbaixo, com seu violão debaixo do braço. Na mesma época, Dorival , que tinha composto anos antes uma canção para ninar a recém-nascida Nana, decidiu gravar “Acalanto”, em dueto com Nana, então com uns dez, doze anos. O que não sabíamos era que Nana , filha de peixe,“peixinha” era. À medida que os dois ensaiavam a canção — Caymmi olhando para ela, e ela buscando segurança e apoio no olhar dele —, a atmosfera amorosa entre pai e filha no estúdio crescia, até que as lágrimas, transformadas em incontroláveis e abundantes choros, tomaram conta dos músicos, dos técnicos e do Aloysio. Sem esquecer as minhas lágrimas e as do próprio Dorival .
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