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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

MÚSICA, ÍDOLOS E PODER (DO VINIL AO DOWNLOAD) - PARTE 14


CAPÍTULO 14 


Um dia, Chico Pereira , o fotógrafo, me disse: 

—Vou organizar uma festa no próximo domingo e quero que você venha. Meus filhos conhecem um pequeno grupo na universidade que faz música. Não sei se a música é boa, mas eles são ótimas pessoas e poderão ser ótimos amigos para você. 

Cheguei ao apartamento do Chico numa tarde de domingo de 1957. Apareceu, em seguida, o Jorge Karan , que, mais tarde, teria uma importância enorme nos registros sonoros das primeiras apresentações da bossa nova. Ouvimos alguns discos de jazz, que Chico tinha acabado de importar por meio de seu contrabandista. 

Algum tempo depois, entrou na casa um grupo de meninos e meninas encabulados, com violões debaixo do braço, todos manifestamente de boas famílias, a maioria ainda estudante. Eram Roberto Menescal, Nara Leão e seu namorado Ronaldo Bôscoli, Oscar Castro-Neves, Luis Carlos Vinhas e, por fim, Carlos Lyra. Lá estava em peso a depois denominada “turminha da bossa nova”. Adorei as músicas — “O barquinho”, “Maria Ninguém” e “Chora Tua Tristeza”... adorei as poesias e adorei as pessoas, com as quais me sentia identificado. E com uma certa desconfiança inicial fui adotado por eles. 

Vou fazer uma pausa para abordar um pensamento que, na época, me perseguia constantemente. Eu não entendia por que a indústria fonográfica brasileira ignorava por completo a juventude como um mercado potencialmente muito importante, uma vez que já existiam, lá fora, os sinais da importância que os jovens de todas as classes sociais iriam ter na explosão da indústria fonográfica. Elvis Presley e Bill Haley & Seus Cometas vendiam milhões de discos aos teenagers norte-americanos, e eu estava convencido de que assistiríamos ao mesmo fenômeno no Brasil, quando a nossa juventude descobrisse seus porta-vozes. 

Quando os meninos começaram a tocar, pensei: “Aí está a música para a juventude brasileira!” Recém-chegado da França, talvez tenha imaginado encontrar ali os ecos das canções que encantavam a juventude francesa; e talvez achasse que o que era bom para a França era bom para o Brasil. Vieram à minha memória “Les feuilles mortes”, “Vous qui passez sans me voir”, “Clopin Clopant”, “La Mer”, “L’âme des poètes”, e intérpretes como Charles Trenet , Jean Sablon , Henri Salvador, Boris Vian e Juliette Greco, que me recordavam a atmosfera musical que eu tinha acabado de conhecer. 

Na mesma época, Caymmi veio nos visitar — a mim e a Aloysio — no estúdio e, no meio da conversa, nos contou a história de um jovem baiano recém-chegado ao Rio, de grande talento e de uma musicalidade muito original, que ele gostaria de nos apresentar. O encontro foi marcado para o sábado seguinte, no apartamento de Aloysio e Daisy. Caymmi chegou com um rapaz que achei ainda mais tímido do que a turma da bossa nova. 

Poucas foram as palavras pronunciadas naquela noite e, começando com “Bim bom”, muitas foram as músicas cantadas pelo jovem João Gilberto. Em poucas palavras, levamos um susto! Era algo totalmente revolucionário! A beleza do canto, a incrível qualidade harmônica do violão e o conceito rítmico revolucionário do João nos impressionaram tanto que decidimos contratar imediatamente aquele personagem que a Bahia nos mandava e que Caymmi nos recomendava. 

Muitas das músicas tinham sido escritas por Tom Jobim , que até aquele momento eu identificava como o companheiro de uma cantora da Rádio Nacional chamada Violeta Cavalcanti, contratada da Odeon na esperança de desbancar a Emilinha Borba e a Marlene. O Tom sempre andava na sombra dela; eu ficava muito perplexo ao ver um rapaz tão bonito e tão fino parecendo um gigolô! 

Durante a semana seguinte, falei longamente com Aloysio sobre o plano de lançar artistas e compositores novos para atender ao mercado jovem, e decidimos abrigar João Gilberto, Tom Jobim e a turma da bossa nova, tendo como foco direto de promoção a juventude de classe média. 

O preconceito da classe média em relação aos músicos, compositores, cantores e cantoras era enorme, e deixava antever algumas das dificuldades que iríamos encontrar. Um belo exemplo se apresentou quando Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e eu entramos num fim de tarde no apartamento do dr. Jairo, pai da Nara. Ele lia o jornal quando a filha, com a voz que a gente recorda sempre como tão intimista e suave, lhe disse: 

— Pai, eu vou ser cantora! 

Dr. Jairo abaixou o jornal, tirou os óculos, olhou-a durante alguns segundos e respondeu: 

— Quer dizer, minha filha, que você vai ser puta?! 

Tornando a levantar o jornal, prosseguiu placidamente com a leitura. E olha que o dr. Jairo era um homem liberal para os padrões da época, também pai de Danuza Leão, conhecida por seu comportamento sofisticado, às vezes extravagante, casada com Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora. 

A falta de salas de espetáculo adequadas foi o primeiro obstáculo para o lançamento do movimento. Os locais disponíveis, os célebres “inferninhos”, eram, em geral, promíscuos. E os outros eram bares da alta sociedade carioca, dos quais o Sacha’s era o mais conhecido, onde se badalava mais do que se escutava. Os meninos começaram, então, a tocar nos colégios, nas escolas, nas universidades e nas tardes musicais da Escola Naval, aos domingos. 

O sucesso das apresentações nos deixou confiantes, Bôscoli e eu, de que encontraríamos a mesma receptividade quando os primeiros discos chegassem à imprensa, e, principalmente, às emissoras de rádio. Essa esperança desabou no momento em que apresentei a canção “Chega de saudade”interpretada por João Gilberto, ao departamento de vendas e divulgação da Odeon em 1958. Cheguei com o disco de acetato em São Paulo, contei toda a história que cercava o lançamento, cujo ponto central seria a abertura de um novo mercado dirigido para a juventude, e coloquei o disco na vitrola. 

Todos ouviram num silêncio que achei muito promissor, até o momento em que Gurzoni , o importante gerente de vendas e elemento decisivo para o futuro sucesso do empreendimento, pegou o disco e proclamou a frase já célebre: 

— Isso é música de veado!!! E jogou o acetato no chão. O golpe final nas nossas esperanças de um rápido sucesso foi o programa “Preto no Branco”, da TV Rio, apresentado por Sargentelli. Era um pro-grama em horário nobre, de caráter sensacionalista, no qual duas pessoas se enfrentavam, uma a favor e a outra contra uma determinada idéia, posição política etc. 

Sargentelli convidou o Tom, que não aceitou, chamou o João, que recusou, convidou o Bôscoli, que também declinou. Mas não podíamos perder aquela oportunidade de falar para o grande público. 

Então, nós nos reunimos na casa da Nara para encontrarmos uma solução. E a solução, por unanimidade, se me lembro bem, foi de que cabia a mim, como representante da companhia de discos e participante do movimento, ir ao cadafalso. 

No dia do programa, vesti o terno, coloquei uma gravata e segui para a emissora, confiante na qualidade da minha missão mas preocupado com as limitações do meu português. Ao entrar no set, fiquei muito surpreso ao ver que Antonio Maria, que a priori deveria ser um defensor da nossa causa, era o convidado para baixar impiedosamente o pau em nossa música. Se o Antonio que eu via naquele instante — velho, gordo, suado, porém muito famoso — estava na oposição, seriam muito poucos os jornalistas a favor. O resultado da minha intervenção em defesa da bossa nova e da existência de uma música brasileira para a juventude deve ter sido satisfatório, porque, ao retornar à casa da Nara, a turma toda me felicitou efusivamente.

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