Por Eduardo Tristão Girão
Criado em terreiro de candomblé, o baterista Esdra Ferreira bebeu nas fontes do jazz, do samba e do congado para criar sua inconfundível batida.
Com cerca de três décadas de carreira, o baterista Esdra Ferreira, belo-horizontino do Barro Preto, já tocou com praticamente todas as estrelas mineiras, além de Dominguinhos, Nana Caymmi, Paulinho da Viola e João Nogueira.
Eduardo Tristão Girão - Há músicos na sua família?
Esdra "Nenem" Ferreira - Profissionais, como eu, não. Mas quase todos os tios e primos tocavam alguma coisa. Meu pai cantava muito bem, tinha voz bonita. Toda a família dele gostava de cantar, de jazz, de Nat King Cole, de Frank Sinatra e de Billie Holiday. Já a parte da minha mãe é o povo do samba. São de Diamantina. Ela tocava quase todos os instrumentos de percussão, pois foi fundadora de uma das primeiras escolas de samba de Minas Gerais, a Monte Castelo. Com ela aprendi a parte do samba. Meus tios tocavam trompete. Fui criado nesse meio.
ETG - Quando você começou a se envolver com música?
ENF - Quando fui morar na casa da minha tia, no Bairro Colégio Batista, aos 7 anos. Por problemas de saúde, minha mãe não pôde cuidar de mim e me entregou para essa tia, que tinha um centro de candomblé. Ela era babalorixá, a manda-chuva do lugar. Lá comecei a brincar com o atabaque. Achava bonito, tinha ritmo, pois vinha da escola de samba da mamãe. Pequenininho, já a via tocar surdo, tamborim, tantã. Era natural. Foi uma experiência muito rica, pois aprendi vários ritmos e formas de tocar. Inclusive, aprendi o jeito primitivo de tocar, com aquela força.
ETG - Quando veio a bateria?
ENF - Passando pela Praça do México, no Bairro Concórdia, vi um cara tocando bateria. Achei absurdo um cara conseguir tocar aquele monte de coisas que formam a bateria. Era do outro mundo. Quando me mudei para o Alto dos Pinheiros, passei a frequentar o baile do Clube Recreativo. Não ia dançar, mas olhar o baterista. Ficava do lado dele. A bateria ficava num porão o dia inteiro e pedi para praticar enquanto o pessoal não estivesse ensaiando. Comecei assim, sozinho. E aprendi.
ETG - Você teve professor?
ENF - Tive, mas muitos anos depois. Foi o Emílio Gama. Ele foi meu professor técnico e o Laércio Vilar, professor intelectual. Percebi que tinha de estudar depois de receber muitas críticas das pessoas, quando me apresentava na boate Sucata. Era o bar da noite. Só fechava às 5h, 6h. Todo mundo ia para lá, inclusive o Laércio Vilar. Me criticavam muito por não ter técnica, ser muito bruto. Minha base, na verdade, era a do tambor, que é muito diferente. Bateria tem técnica especial, como tudo. Encontrei o Emílio quando ele veio do Rio de Janeiro ensinar aqui, na Ordem dos Músicos. Laércio me aconselhou a fazer o curso. O problema era a técnica correta, que eu não sabia usar. Eu e vários bateristas jovens fizemos esse curso. Estudei técnica, estudo até hoje e vou estudar eternamente. No dia em que parar, já era.
ETG - É preciso praticar todos os dias?
ENF - É bom. Todo instrumento deve ser praticado diariamente. É claro que, quando você está esgotado, não convém. Tudo tem limite. Quando a gente é mais jovem, estuda mais, mas é preciso manter, tocando e estudando. Estudar não é só a coisa de técnica. Para mim, o momento de estudo é de criação. Com os rudimentos que toco ao estudar, vou bolando várias coisas rítmicas e melódicas. Assim, a gente se prepara para se apresentar em público, o legal da história.
ETG - Quem foi o seu grande mestre?
ENF - No geral, foi o Laércio Vilar. O primeiro que me fez enxergar os outros bateristas do mundo. Ele e outro amigo nosso, o baterista Dinelli, que hoje é advogado. Íamos para a casa do Dinelli, no Padre Eustáquio, ouvir os grandes mestres, pois não tínhamos radiola. Ouvíamos Elvin Jones, meu grande mestre, Art Blakey, Max Roach e Buddy Rich. Os mais novos também, como Jack Dejohnette, meu ídolo maior na atualidade, Billy Cobham, Steve Gadd, Philly Jo Jones e Tony Williams. São caras criativos, inventaram o que o mundo todo copia. Criaram vários estilos. Nessa mesma época, também tive ídolos brasileiros, músicos que ouvi muito lá na casa do Dinelli, como Edson Machado, Airto Moreira, Dom Um Romão, Paulo Braga e Robertinho Silva. São meus ídolos.
ETG - O que está presente no seu toque de bateria?
ENF - A coisa africana, por causa dos tambores, a escola de samba e o congado. Participei disso tudo. Além do toque jazzístico das músicas que ouvia com meus pais, de Nat King Cole e de Count Basie. Então, é tudo misturado: o lado africano com a paixão pelo jazz e as coisas brasileiras, pois sou brasileiro, graças a Deus, com baião, xaxado, maracatu, samba e samba de roda.
ETG - É possível falar em estilo brasileiro de tocar bateria?
ENF - Sim. Isso começa pelo fato de que samba é um estilo em si. Só o baterista com estilo e sangue brasileiros consegue tocar samba com o nosso suingue. Mesmo assim, não são todos. É cultural, está no ar, na comida, nas pessoas, nas conversas. É coisa pura brasileira, assim como baião, choro e guarânia mineira.
ETG - Você é ogã. O que significa isso?
ENF - No meu caso, graças a Deus, é o seguinte: ogã, numa casa de candomblé em que se pratica iorubá, é o responsável pelo toque de chamado dos orixás, é o coração do candomblé, daquele momento de transe. Ele canta as cantigas em dialeto iorubá para a manifestação dos orixás. É uma pessoa muito responsável. Existe uma hierarquia: ogã alabê é o que canta, que tira a zuela. O ogã rum e o rumpi são os tambores médio e menor, respectivamente. Todos com funções independentes, cada um faz uma coisa para o todo da orquestra de tambores. Ogã é uma espécie de sacerdote, ligado ao dono do candomblé. Tudo dele é com o ogã, responsável pelo toque; se está bom, se é regular, se está mal tocado ou cantado. É complexa a coisa.
ETG - Musicalmente isso te influência?
ENF - Muito, pois ouvi demais as cantigas de candomblé e fiz um trabalho em cima disso com o flautista Mauro Rodrigues, a Suíte para os orixás. No meu toque, isso tudo está presente.
ETG - "Suíte para os Orixás" é seu único trabalho autoral lançado?
ENF - Por enquanto, é. Há o projeto de fazer um disco solo meu, com composições minhas e de compositores que quero interpretar. Este ano ou no ano que vem.
ETG - Como você compõe?
ENF - Canto uma melodia, ponho o ritmo e alguém coloca a harmonia para mim – Mauro Rodrigues, Beto Lopes ou Juarez Moreira, por exemplo. Sempre coloco o ritmo para eles. É uma troca, não é? Estou errado? (risos)
ETG - O que você vê de tendência na cena musical belo-horizontina?
ENF - Tenho gostado da garotada que vai ao Conservatório Music Bar, onde toco semanalmente. Fica lotado de gente que gosta de tudo que é bem tocado, bom e, principalmente, brasileiro. As pessoas se voltaram para a música brasileira com muita força. Os jovens estão se interessando mais por forró, samba, bossa nova, Clube da Esquina, Tropicália. Toda a vida, os ritmos brasileiros foram ricos, tocados por muitas pessoas. Mas, de uns anos para cá, essa tendência se fortaleceu. Por exemplo: tocamos jazz e, quando tocamos samba ou baião, parece que gostam mais. O negócio não era assim, era mais americanizado.
ETG - O que te vem à cabeça quando pensa na expressão música mineira?
ENF - Hoje ela é, com certeza, uma das músicas mais respeitadas e apreciadas no mundo. Principalmente depois do Clube da Esquina. Já fui ao Japão e à Rússia com o Toninho Horta. Viajei muito com Milton Nascimento e Beto Guedes, além do Marku Ribas, cuja música não tem muito a ver com o Clube, mas é respeitadíssima no mundo. Isso é um todo. No Japão, com o Toninho, a gente tem de fazer duas sessões por dia, de tanta gente que quer ouvi-lo. As pessoas me param para perguntar quando é que o Lô Borges, o Beto Guedes, o Flávio Venturini, o Juarez Moreira vão para lá. Todos os lugares por onde a gente viaja são assim. No Brasil, então, nem se fala. A música mineira está num momento maravilhoso. Mesmo depois do Clube da Esquina, continua muito bem com Skank, Jota Quest, Pato Fu, Flávio Henrique, Kadu Viana, Vítor Santana e Mariana Nunes.
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