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quinta-feira, 17 de junho de 2010

CONSTELAÇÃO DE FALSAS ESTRELAS

Adiquirindo gosto pelas cópias assépticas, o público se afasta da autêntica cultura popular.

Por Roberto Torres*

Triste sina a da cultura popular. Se antes desmerecida, esquecida, humilhada, hoje – redescoberta com um certo valor de capital – é explorada despudoradamente.
Recentemente, participando em Maceió do seminário do Toques e Trocas, projeto que procura integrar a cultura popular de Pernambuco, Alagoas e Bahia, pude presenciar um encontro realmente emocionante. Para a programação, foi trazido um evento que já acontece na cidade há bastante tempo: um encontro semanal, no Museu Théo Brandão, que reúne mestres de variados matizes: guerreiro, reisado, cavalo-marinho, bumba-meu-boi, assim como cantadores de coco, sanfoneiros e repentistas.
No evento, foi solicitado aos mestres que deixassem registrados seus depoimentos. Foi um momento histórico. Os relatos foram testemunhos sinceros, corajosos, do descaso, da falta de respeito, da exploração e até da covardia com que são tratados por aqueles que giram como satélites no entorno da cultura popular. Falaram das dificuldades em colocar seus folguedos na rua, muitas e muitas vezes às suas próprias custas; de não terem lugar onde ensaiar; do cachê minguado que são obrigados a receber quando convidados pelos órgãos oficiais para abrilhantar alguma comemoração; e da demora para receber esse pagamento. Deixaram visíveis suas desconfianças e a desesperança de que essa situação venha a mudar.
A partir daí uma questão se impôs, discernindo situações importantes, como a utilização da cultura popular por elementos cuja formação está fora do contexto original da cultura popular, aqui denominados “diluidores”. Muitos diluidores gravam discos, realizam turnês pelo país e no exterior, gozam da fama que deveria pertencer aos verdadeiros senhores da matéria.
Se observarmos o processo criativo de um desses diluidores mais conhecidos, o artista pernambucano Antonio Nóbrega, considerado por parte da mídia “o mais sofisticado artista popular do Brasil”, poderemos ver como ele lida com as tradições. Em sua mecânica, o procedimento é aparar as arestas da cultura popular, lixando as crostas, envernizando a superfície, proporcionando uma assepsia estética, produzindo uma cópia que na forma se assemelha ao original, mas na função a léguas se distancia.
Esse subproduto, servido apetitosamente a uma platéia ávida, tem o poder de fazer com que esse público – atendido em seus anseios – passe a aceitá-lo como referência do que identificam como cultura popular. E a partir daí, nas mesmas proporções, comecem a achar rústico, desalinhado, malfeito e de difícil assimilação o trabalho dos mestres de verdade.
Mas esse “privilégio” no trato com a cultura popular não é somente desses artistas diluidores. Outras classes também fazem parte da corrente, incluindo aí gestores de cultura, (ir) responsáveis pelas políticas públicas culturais; e acadêmicos, com suas pesquisas formadoras de teses e prestígios, mas sem retorno válido para os mestres. Todos, com as devidas exceções à regra, verdadeiros chupa-cabras da cultura popular.

*Roberto Torres é produtor e pesquisador musical.

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