Há décadas suas canções e atitudes desafiam o senso comum. Em inúmeros momentos, ele pareceu lutar consigo mesmo contra a acomodação, tendo nas arquibancadas e nos camarotes o público espectador que o ama e o odeia, às vezes ao mesmo tempo. Ninguém jamais vai acusá-lo de não se encontrar em pleno movimento como músico e compositor.
O resto da história você já sabe. Caetano Veloso, hoje, é uma lição de como emanar energia criativa sem se ater às regras do mercado fonográfico - se é que elas ainda existem - que ainda povoam os sonhos e pesadelos dos inúmeros grupelhos que insistem em nos assombrar com canções péssimas e álbuns milimetricamente escrotizados em sua pasteurização. Por vezes, Caetano se mostra mais escroto do que precisa, ao devolver um ar afetado às críticas que recebe - algumas delas, bastante justas, diga-se de passagem. Mas ao cuspir discos brilhantes como Cê e agora o seu novíssimo Zii e Zie - "tios e tias" em italiano -, ele se vê em condições de tirar onda com os artistas mais jovens, mas que soam muito mais velhos - no pior sentido da palavra. E isso passa por um ponto invejável na vida de quem se mete a cantar e tocar: a conquista da liberdade artística. Que outro cantor pode assinar um disco usando só o seu primeiro nome? Caetano não só pode como o fez em seu mais recente trabalho.
Enquanto muitos teimam em compor maçarocas em forma de canções, em que não se ouve direito justamente o binômio harmonia/melodia, Caetano corre por fora, subvertendo as referências sonoras que a maioria das pessoas tem a seu respeito, injetando em suas novas canções guitarras repletas de feedbacks nervosos, quase insanos - como nos solos cortantes, quase dissonantes, de "Perdeu, a belíssima canção que abre Zii e Zie, um "esquizo-samba" desconcertante em seu concretismo, e da delicada "Lobão Tem Razão".
Veja abaixo Caetano mostrando "Perdeu" ao vivo, antes mesmo do lançamento de Zii e Zie:
Os arranjos legais que permeiam todo o disco têm origem no formato instrumental que Caetano escolheu a partir de Cê - violão, guitarra, baixo e bateria - tudo gravado da maneira mais "orgânica" possível, sem teclados de churrascaria, sem backing vocals de casamento brega, sem timbres 'limpinhos'. Ao cantar com incrível falsete em "Por Quem?", Caetano parece ter imaginado que a canção pudesse ser interpretada por Gal Costa. A recriação de "Incompatibilidade de Gênios" (de João Bosco e Aldir Blanc) é ritmicamente conduzida por uma bateria "torta", que cruza de modo esquizofrênico e interessantíssimo com os acordes de guitarra, enquanto que "Base de Guantánamo" é genial em sua simplicidade composicional, o que só realça o curto e contundente discurso crítico da letra.
Assista Caetano experimentando o arranjo de "Incompatibilidade de Gênios":
E "Base de Guantánamo":
O auge de sua liberdade artística aparece na letra de marchinha rocker "Menina da Ria", com uma série de brincadeiras linguísticas e simbolismos - "a moça do outro lado da poça" pode ser uma garota de Niterói, com "poça" remetendo à baía da Guanabara, em uma "aparição transatlântica", explicando que a ação se passa em Portugal. Ao extrapolar o sentido dúbio das palavras, Caetano mostrando que ainda consegue fazer uma coisa ridícula soar irresistível.
Não que ele não tenha cometido equívocos ao longo da carreira - os maiores exemplos disso são o pretensioso e pseudoexperimental Araçá Azul (um manifesto invejoso do trabalho que Walter Franco fazia na época), o insípido e oportunista Velô, e o terrível A Foreign Sound -, mas é inegável que Caetano nunca deixou de tentar injetar modernidade e jovialidade às suas composições. A união entre guitarras indie e o samba, iniciada de modo mais explícito em Cê, é outra prova disso.
Para ouvintes submissos, acostumados ao bundamolismo que reina em grande parte da cena musical, isso pode soar arrogante e pretensioso. Na verdade, é justamente disso que precisamos: artistas e bandas que nadam contra a correnteza que carrega futilidades e frivolidades.
O disco Velô de 84 é um grande trabalho de Caetano veloso.
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