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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A ESSENCIAL TIA AMÉLIA REVIVE NO PIANO DE HERCULES GOMES

Por Tárik de Souza 



Muitas abordagens feministas da criação musical brasileira, saltam direto da pioneira pianeira e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935) para as cinquentistas Maysa (1936-1977) e Dolores Duran (1930-1959), como exemplos de exceções ao predomínio masculino condutor da MPB, ao longo de décadas. Mas, no meio do caminho, destaca-se, entre outras, a obra singular e prolífica da pianista e compositora Tia Amélia. Filha de músicos, a pernambucana de Jaboatão dos Guararapes Amélia Brandão Nery (1897-1983) começou a compor aos 12 anos. Viúva, em 1922, encarou a vida artística do início da era do rádio, em Pernambuco e no Rio, excursionou ao exterior, apresentou-se no Teatro Municipal carioca e, após um recesso de 17 anos, voltou a brilhar já na fase da TV, em programa próprio, que passou por várias emissoras. O nome artístico respeitoso ganhou de Roberto Carlos, a quem acolheu no início da carreira, e a homenageou na canção “Minha tia”, em 1976. O disco dela “Velhas estampas”, com a banda Vila Rica, em 1958, ganhou prêmios, fez sucesso e marcou época. Sua ligação à ancestralidade da MPB foi sacramentada num encontro com outro pianeiro pioneiro, o fundador Ernesto Nazareth (1863-1934). “Quando eu morrer, você continue no choro, não deixe o choro morrer”, teria recomendado a ela, o autor dos megaclássicos “Odeon”, “Apanhei-te cavaquinho”, “Brejeiro” e “Tenebroso”, entre muitos.

Em “Tia Amélia para Sempre” (SESC), pelo pianista capixaba Hercules Gomes, o legado da pianista e compositora é retomado, quase quarenta anos depois, com a devida abertura para a modernidade, através de improvisos e uma leitura intensa de suas composições. Os baixos da mão esquerda da virtuosa pianista, que emulam um turbinado violão 7 cordas alinhavando os choros, reencarnam no desempenho eloqüente de Hercules. “Diferente do que estamos acostumados a entender por piano popular nos últimos 70 anos, Hercules utiliza outro jeito de tocar, trabalhando bastante a mão esquerda, com saltos, acordes, sextas, linhas do baixo, enquanto a direita, ao desenhar as complexas melodias do choro, se esbalda nos contratempos da música, trazendo uma imensa riqueza rítmica, e transformando o piano numa verdadeira orquestra de baile”, define, no encarte, o estudioso Alexandre Dias, diretor do Instituto Piano Brasileiro. “Seus dedos esticados sempre me lembraram os de Vladimir Horowitz, somando-se uma técnica de pulso solto, que depois compreendi vir de seus anos de estudo com Silvio Baroni, discípulo de Piero Maranca”, adiciona.

Nascido em Vitória, Hercules, iniciado no piano autodidata aos 13, estudou na Escola de Música do Espírito Santo e bacharelou-se no curso de Música Popular da Unicamp, de Campinas. Apresentou-se em festivais de música em Ouro Preto, Belo Horizonte, Havana, Cuba, (Internacional Jazz Plaza), Buenos Aires, Argentina (Piano, Piano) e em Miami, USA (Brazilian Music Institute). Participou do projeto “Goma-laca – Afrobasilidades em 78 RPM”, ao lado do maestro baiano Letieres Leite, do CD “Radamés Gnatatli – Concerto cariocas”, com a Orquestra Sinfônica de Campinas, de quem foi solista convidado no Festival de Inverno de Campos de Jordão. Também apresentou-se como solista convidado da Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo, da Orquestra Jovem Tom Jobim e da Jerusalém Symphony Orchestra, em Israel. Em 2013, estreou solo no disco “Pianismo”, com seis composições próprias e outras seis de autores como Edu Lobo, Hermeto Pascoal e Ernesto Nazareth. Cinco anos depois, celebrou a maestrina inaugural, em “No tempo da Chiquinha”, nos 170 anos de Chiquinha Gonzaga. Um prelúdio para o mergulho no universo de sua sucessora inescapável, Tia Amélia.

Segundo Alexandre Dias, o crítico de música erudita Eurico Nogueira França, ao presenciar Tia Amélia num dos lendários saraus na casa de Jacob do Bandolim, enxergou na pianista, “uma predileção por Liszt”. O próprio Hercules Gomes, também em texto do encarte, elogia na homenageada, “as composições, o gingado, o virtuosismo, a inteligência ao traduzir no piano a linguagem do choro, o carisma, a alegria”. São ingredientes que não faltam ao repertório do CD. Ele inicia nos auto explicativos “Saracoteando” e “Cheio de truques”, repletos de negaceios e retomadas, contrapontos velozes e escalas, nos dedos malabaristas de Hercules. O clima ralenta na primeira parte de “Paulistano”, com alguns graves soturnos, desaguando numa segunda mais saltitante. Até o discursivo “Meu poeta”, Hercules tripula seu piano solo orquestral. Mas, a partir da homenagem da autora à sua terra, “Jaboatão” - até o encerramento, no também solitário “Saudades suas” - Hércules ganha a adesão de parceiros de estirpe. Como o violão de Gian Correa, o pandeiro de Rafael Toledo, a percussão de Alfredo Hacl e o cavaquinho de Henrique Araujo, um dos arranjadores do álbum, ao lado de Nailor Proveta (clarinete) e o próprio Hercules.

A polifonia enriquece ainda mais este disco antológico, em temas como “Bordões ao luar”, “Chuvisco” e o incisivo “Cuíca no choro”, onde o agudo instrumento percussivo contracena com um raro adufe, dos tempos primevos da música brasileira. Também primordiais são os sopros de eufônio (Philips Thor) e tuba (Eliezer Tristão), que colorem “Dois namorados”, “Sorriso de Bruno” e “Chora coração”, instalando um eventual ambiente festivo de “amaxichoro”, com o perdão do neologismo. Apenas Hércules, ao piano, e a flauta de Rodrigo Y Castro, conduzem a sonorosa valsa “Gratidão”, outro acepipe da culinária refinada de Tia Amélia. Assim como “Seresteiro”, que conta com a especial participação do virtuose do bandolim chorão, Izaías Bueno de Almeida. “É muito difícil entender porque uma artista como essa pode ser tão pouco lembrada nos dias de hoje”, fustiga Hercules no encarte. Mas seu excelente disco e a futura biografia de Tia Amélia, que está sendo elaborada pela coordenadora de produção do disco, Jeanne de Castro, se encarregarão de corrigir este lapso histórico.

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