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terça-feira, 13 de outubro de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*


Carne e osso
Para quem estuda e pesquisa, ou simplesmente aprecia, o gênero canção, o programa de rádio e de TV Zoombido é uma fonte de prazer. A forma toda cuidadosa e apaixonada com que Moska comanda o programa enche nossos ouvidos de barulhinhos bons. Questões sobre como para que e como surge uma canção estão sempre em pauta.
"Carne e osso", de Zélia Duncan e Moska, é uma canção que pontua bem a intenção do projeto de Zoombido: a disposição de estar disponível para o imprevisível e para a improvisação. A letra é um assumidíssimo desbunde diante da caretice politicamente incorreta contemporânea. O sujeito sugere que o gostoso é descer do salto e rodar a baiana; é assumir os defeitos; é ser profano; é ser demasiado humano.
O céu interior (da felicidade de não ter a vergonha de alegre) toma conta do sujeito. Ele cria um paraíso (se aproxima do céu) na medida em que tira as máscaras cotidianas da falsa santidade: "Perfeição demais me agita os instintos", diz. Parece querer dizer e diz que estamos na terra e, afinal, "quem se diz muito perfeito, na certa encontrou um jeito insosso pra não ser de carne e osso".
Registrada no disco Zoombido Vol. 2 (2009), "Carne e osso" cantada pelos dois autores - embora Zélia Duncan já a tivesse gravado sozinha no disco Pré-pós-tudo-bossa-band (2005) - retoma (dialoga com) uma questão presente na canção "Sobre todas as coisas", de Chico Buarque.
Para ficarmos no nível da ideia de pecado (e sem aprofundar uma possível e pertinente leitura existencialista), destacamos os versos que perguntam: "Será que o Deus que criou nosso desejo é tão cruel? Mostra os vales onde jorra o leite e o mel e esses vales são de Deus?".
Ou seja, porque Deus nos colocaria no mundo e nos faria humanos se não fosse para aproveitar nossa Humanidade: o esplendor (criado pelo criador) de nossos desejos? O sujeito-criatura de "Carne e osso" suspende as instâncias que definem pecado e santidade, pois quanto mais ele abre a boca e desfruta do leite e do mel mais ele se aproxima do céu.


***

Carne e osso
(Zélia Duncan / Moska)

A alegria do pecado
Às vezes toma conta de mim
E é tão bom não ser divina
Me cobrir de humanidade me fascina
E me aproxima do céu

E eu gosto
De estar na terra
Cada vez mais
Minha boca se abre e espera
O direito ainda que profano
Do mundo ser sempre mais humano

Perfeição demais
Me agita os instintos
Quem se diz muito perfeito
Na certa encontrou um jeito insosso
Pra não ser de carne e osso
Pra não ser carne e osso





* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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