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sábado, 17 de outubro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Aldir Blanc e João Bosco

“Caía a tarde feito um viaduto
e um bêbado trajando luto
me lembrou Carlitos...”
JOãO BOSCO e ALDIR BLANC, “O bêbado e a equilibrista”


Em 1970, João Bosco e Aldir Blanc iniciaram uma parceria que renderia mais de uma centena de composições. De estilo sincopado e abolerado, suas músicas revelariam o compositor mineiro João como um dos grandes melodistas e instrumentistas brasileiros, fazendo de sua voz uma extensão de suas qualidades musicais. Já o carioca Aldir, com influência das obras de Noel Rosa e Nelson Rodrigues, usaria sua pena de velho feiticeiro para reinventar alguns dos mais característicos tipos cariocas.
Com influência do jazz e da bossa nova, João Bosco teve como primeiro parceiro o poeta Vinicius de Moraes, em “Rosa dos ventos”, “Samba do pouso” e “O mergulhador”. Compondo sozinho ou em parceria com Capinam, Antônio Cícero, Chico Buarque e Martinho da Vila, João mantém-se fiel a seus próprios argumentos, afirmando não querer vincular seu nome a gêneros ou estilos. Sua preocupação é em aperfeiçoar constantemente sua técnica.
Aldir Blanc é o “ourives do palavreado”, segundo Dorival Caymmi. Compositor, poeta, cronista e vascaíno doente, Aldir tornou-se um retratista inspirado das cenas cariocas. A cidade, a rua e as pessoas são a lupa que ele usa para ver o mundo. Suas parcerias, em mais de 400 músicas, incluem nomes como Guinga (com quem recuperou a tradição do choro-cantado), Moacy r Luz, Cristóvão Bastos, Paulo César Pinheiro, Ed Mota, Paulinho da Viola e Maurício Tapajós.
Depois de Tom Jobim, Aldir e João Bosco foram os compositores mais gravados por Elis Regina, que imortalizou diversas canções da dupla, tais como os sambas “O bêbado e a equilibrista” e “Mestre-sala dos mares” e o bolero “Dois pra lá, dois pra cá”. Aliás, João e Aldir tornaram-se fonte riquíssima para uma legião de cantores que objetivavam maiores desafios para sua voz. Clementina de Jesus, Cauby Peixoto e Ângela Maria são outros nomes importantes que beberam nessa fonte, que parecia inesgotável.


Moacyr Luz

Um dos mais importantes parceiros de Aldir Blanc, o carioca Moacyr Luz, conhecido pelos amigos como Moa, já foi gravado por Elba Ramalho, Leila Pinheiro, Nana Caymmi, Beth Carvalho, Leny Andrade, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Emílio Santiago. Compositor de mais de 100 músicas gravadas, Moacy r criou com Aldir Blanc, entre outras, “Medalha de São Jorge”, “Mico preto” e “Flores em vida pra Nelson Sargento”. O samba “Saudades da Guanabara” é um “hino crítico” ao Rio de Janeiro feito por Aldir, Moacyr e Paulo César Pinheiro. Para muitos, é uma das letras mais bonitas sobre a cidade:

“Eu sei
que o meu peito é uma lona armada
nostalgia não paga entrada
circo vive é de ilusão (eu sei...)
Chorei
com saudades da Guanabara
refulgindo de estrelas claras
longe dessa devastação (...e então)
Armei
pic-nic na Mesa do Imperador
e na Vista Chinesa solucei de dor
pelos crimes que rolam contra a liberdade Reguei...”

Pode-se dizer que um dos mais importantes frutos da parceria Bosco-Blanc é a música “O bêbado e a equilibrista”: “Caía/ a tarde feito um viaduto/ e um bêbado trajando luto/ me lembrou Carlitos ... Meu Brasil/ que sonha com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu no rabo do foguete...” Cantada em shows, rodas de bar ou saraus, a composição se tornou um hino lírico de resistência à ditadura, um símbolo da solidariedade na luta pela anistia. Os anos de arbítrios, ou de chumbo, encontrariam mais uma vez na música uma eficaz defensora da liberdade de expressão.


O Almirante Negro

João e Aldir são mordazes críticos da realidade brasileira. Em “Mestre-sala dos mares”, retrataram a luta do Almirante Negro, João Cândido, um cabo semi-analfabeto, contra o preconceito e os arbítrios da marinha brasileira que, em pleno período republicano, ainda mantinha os castigos corporais, como a chibata, para os marinheiros, negros em sua grande maioria. Por isso a revolta, iniciada em 1910, ficou conhecida como Revolta da Chibata. Os marinheiros foram muito hábeis ao assumir o comando dos navios, ameaçando bombardear áreas do governo caso os castigos corporais não fossem suprimidos. Mas a elite governamental esperou tudo se acalmar para prender os revoltosos desprevenidos e desarmados. Vários foram fuzilados, mas a chibata foi definitivamente abolida. Segundo contam os autores, essa música foi várias vezes censurada. Eles mexiam daqui, mexiam dali, mas não adiantava, a letra não passava pelos censores. Até que descobriram que o grande problema era a palavra “almirante”, prontamente substituída então por “navegante”, e a letra, finalmente, foi liberada.

“Há muito tempo nas águas da Guanabara
o dragão do mar reapareceu
na figura de um bravo feiticeiro
a quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
tinha a dignidade de um mestre-sala
e ao acenar pelo mar na alegria das regatas
foi saudado no porto pelas mocinhas
francesas
jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos santos entre cantos e chibatas
inundando o coração do pessoal do porão
que a exemplo do feiticeiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
que através da nossa história
não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
que tem por monumento
as pedras pisadas do cais
mas faz muito tempo”










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