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sábado, 19 de setembro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Nos anos 1960 e 1970, estava em voga dizer que só através da arte poderíamos transformar o mundo. A frase tinha um quê de exagero, mas, ao menos no âmbito da música popular brasileira, serviu de inspiração para milhares de jovens que participaram dos festivais pelo país.
Com os ânimos acirrados após a implantação do Ato Institucional no 5 (aquele que deu total poder aos militares, suprimindo todos os direitos democráticos dos cidadãos), uma parcela significativa da sociedade, formada por setores da classe média, estudantes, artistas e intelectuais, passou a contestar os desmandos da ditadura militar.
Para grande parte dos universitários, a ideia mais tarde cristalizada no slogan dos militares, “Brasil: ame-o ou deixe-o”, deveria ser combatida nas ruas, como na Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em 1968. E seria também combatida nos festivais, fosse pela rebeldia e o engajamento político dos artistas, fosse pela possibilidade de o público defender, muitas vezes de forma enérgica e pouco amistosa, suas preferências musicais (que não raro diferiam bastante das escolhas do júri oficial). Realmente, “amar” o país da maneira que queriam os militares, sem liberdade, democracia e cidadania, não fazia parte dos interesses do público dos festivais.
Dois movimentos musicais tiveram destaque nesses eventos. O primeiro foi o da música de protesto, ou de resistência/engajamento, que buscava uma “autenticidade” nas composições, um mergulho nas raízes da cultura musical brasileira. Já o segundo, o tropicalismo, bagunçou os cenários estéticos de nossa cultura, a partir de 1967. Em comum, os dois movimentos tinham a preocupação de contestar o status quo da época.
No aspecto histórico, a música de protesto pode ser vista como resposta à repressão psicológica ou física que o quadro político impunha. O Brasil não foi o único caso desse tipo de produção artística. Nos Estados Unidos, por exemplo, havia uma grande repulsa social em 1969 contra a Guerra do Vietnã. Esse sentimento acabou por gerar um período fértil de letras e melodias que cantavam a paz: músicas de Bob Dylan, como “Blowin’in the Wind”, são um belo exemplo. No Chile, no ano de 1973, durante a ditadura de Pinochet, o cantor Victor Jara homenageava o povo vietnamita em “El derecho de vivir en paz”.
No Brasil, destacaram-se o compositor Geraldo Vandré, autor de “Pra não dizer que não falei das flores”, e o cineasta e compositor Sérgio Ricardo, autor de “Zelão”, nomes que sintetizaram o movimento. “Vem, vamos embora que esperar não é saber/ quem sabe faz a hora não espera acontecer...” era o refrão da música de Vandré, que conclamava o povo a defender seus direitos sociais e políticos e tornou-se um hino da oposição ao regime militar. A canção, mais conhecida como “Caminhando”, era tão popular à época que, em 1968, no III
Festival Internacional da Rede Globo, quando ficou em segundo lugar – perdendo para a magnífica “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque –, o público presente no Maracanãzinho cantou-a em uníssono, rejeitando a indicação da primeira colocada.


Surge o conceito de MPB

É justamente durante a avassaladora ascensão dos festivais, com suas novas discussões sobre os limites e fronteiras da música brasileira, que passa a ser construído o conceito de MPB. Diferente da música folclórica – resultado da criação coletiva e transmitida pela oralidade – ou da música erudita – elaborada por músicos de escola –, a música popular nasce concomitantemente ao crescimento das cidades, sendo caracterizada pela simplicidade de suas composições transpostas para o registro impresso, fonográfico, radiofônico ou televisivo. Na prática, essas classificações não são tão rígidas, podendo a música popular sofrer inúmeras influências. Por exemplo, como classificar de simples as composições de Chico Buarque, Caetano Veloso e Paulo César Pinheiro? Villa-Lobos era um músico erudito que sofria as influências, fundamentais em sua obra, do folclore e da música
popular urbana; o sambista Cartola, homem de formação educacional simplória, elaborava letras e melodias de fino trato. Na prática, também a classificação da música popular como circunscrita à área urbana busca enfocar um objeto que é por demais complexo. Não se pretende aqui desclassificar nossas manifestações musicais anteriores à consolidação das cidades, mas apenas contextualizar a popularização, também no sentido mercantil, do termo MPB. No presente trabalho, esse termo é utilizado para toda a música popular, incluindo samba, choro e outros ritmos produzidos no século passado.


No caso de “Zelão”, do compositor Sérgio Ricardo, o protesto estava no retrato do dia-a-dia difícil da população do morro (“No fogo de um barracão/ só se cozinha ilusão/ restos que a feira deixou/ e ainda é pouco só”), que apesar dos sofrimentos não deixa a solidariedade de lado, “Mas assim mesmo Zelão/ dizia sempre a sorrir/ que um pobre ajuda outro pobre até melhorar”. Esse sucesso de Sérgio Ricardo, como outras tantas músicas da época, era um mergulho na vida ordinária do brasileiro, fonte riquíssima de inspiração para os compositores de protesto.
Se a música de protesto procurava conscientizar e politizar o processo de criação privilegiando a cultura das camadas simples, o tropicalismo sintonizava, digamos, em outras ondas. O aspecto político do movimento estava atrelado a uma vasta proposta cultural e estética (com interlocução nas artes plásticas, no cinema e no teatro) fundamentada em uma atitude acima de tudo inovadora e irreverente. Misturando ritmos e aliando elementos aparentemente contrastantes – o arcaico e o moderno, a elite e o popular e, sobretudo, o local e o universal –, o movimento resgatava mas ao mesmo tempo transformava a cultura brasileira, incorporando tendências internacionais (a introdução da guitarra elétrica é um bom exemplo) e contrapondo-se, portanto, às correntes nacionalistas extremadas.
Fica clara a influência da estética antropofágica de Oswald de Andrade. 
Os cantores e compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Gal Costa, o grupo Mutantes, os poetas Torquato Neto e Capinam, o artista plástico Rogério Duarte e os maestros Rogério Duprat, Damiano Cozzela e Júlio Medaglia foram as principais referências do movimento.


Oswald de Andrade e a antropofagia

Polêmico, irônico e gozador, o paulista Oswald de Andrade foi uma das principais figuras da cultura brasileira na primeira metade do século XX. Oswald viveu na arte o retrato de sua vida, escrevendo manifestos modernistas, participando da política e amando diversas mulheres, com destaque para a pintora Tarsila do Amaral e Patrícia Galvão, a Pagu. Em sua
obra, busca as origens nacionalistas sem perder a visão crítica da realidade social brasileira. O Manifesto Antropofágico, liderado por ele e assinado por outros inúmeros intelectuais, foi lançado em 1928, enfatizando a necessidade de se criar uma arte baseada nas características do povo brasileiro, com absorção crítica da modernidade européia. Propunha-se “devorar”
influências estrangeiras para impor o caráter brasileiro à arte e à literatura.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente.... Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o carnaval.... Antropófagos. Tupy or not tupy, that is the question”, dizia o manifesto. É esse espírito de devorador do movimento antropofágico que o tropicalismo recupera em sua proposta estética.

Apesar da riqueza em inovações e das marcas que deixou na cultura brasileira, o tropicalismo como movimento durou pouco. Iniciou-se em outubro de 1967, quando, no III Festival da Record, Gil apresentou “Domingo no parque” e Caetano, “Alegria, alegria”, e terminou no Natal de 1968, com a prisão de Caetano e Gil, logo após o AI-5.
Tanto a música de protesto quanto o tropicalismo resvalaram substancialmente nas hastes do samba. Veremos que o núcleo dos tropicalistas debruçou-se sobre o gênero, uns cantando, outros compondo, mas quase todos compreendendo sua importância na cultura musical brasileira. Se não bastasse isso, o gosto por instrumentos ligados ao samba – como cavaquinho, bandolim, violão e pandeiro –, difundido por grupos de influência tropicalista (caso dos Novos Baianos), ajudou em sua popularização entre os jovens músicos.

O compositor baiano Tom Zé, um dos artistas que participaram do LP-manifesto do tropicalismo, Tropicália ou panis et circenses, lançou em 1974 um trabalho pela gravadora Continental intitulado Estudando samba. Cheio de experimentos e inovações, o disco acabou ganhando o mercado internacional anos depois. O compositor Elton Medeiros, sambista de primeira hora, fez o texto de apresentação do LP: “Por isso, sem perda de tempo, pensou e realizou este disco, onde procurou reunir uma variedade de tipos e de formas rurais e urbanos do samba, dando a cada música a vestimenta que achou mais adequada. E por aí vai indo o Tom Zé: certo do seu trabalho certo, mas não muito certo de sua aceitação...” Elton Medeiros, Tom Zé e tropicalismo – quer melhor ligação do samba com o movimento?
Com relação à música de protesto, um dos maiores nomes dos festivais e da música brasileira, Chico Buarque de Hollanda, não deixa dúvida quanto ao papel do samba na formação dos compositores da época. “Vai passar” está entre tantas letras de Chico que, em ritmo de samba, faziam crítica ao momento político de arbitrariedade: “Vai passar/ nessa avenida um samba popular/ cada paralelepípedo/ da velha cidade/ essa noite vai/ se arrepiar...” E Chico, que sonhava com um país mais justo, digno e livre, pontuava o seu tempo “desbotado da história”: “Dormia a nossa pátria-mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações/ seus filhos erravam cegos pelo continente/ levavam pedras feito penitentes/ erguendo estranhas catedrais...”
No entanto, o samba teve espaços próprios de apresentação na televisão. Foi na efêmera Bienal do Samba, organizada pela TV Record, que o ritmo tomou conta da telinha. Com os concorrentes participando como convidados, sem eliminatórias seletivas, a Bienal do Samba aconteceu em 1968. E, para que o leitor tenha uma idéia da qualidade das composições e participantes da Bienal, basta dizer que Cartola ficou em quinto lugar com o samba “Tive sim”, cantado por Ciro Monteiro. O primeiro lugar ficou com Baden Powell e Paulo César Pinheiro, pela genial “Lapinha”, interpretada pelo “furacão musical” Elis Regina, deixando para trás nomes como Chico Buarque, Billy Blanco e Elton Medeiros. 
Fato curioso foi que “Coisas do mundo, minha nega”, composição de Paulinho da Viola – uma obra-prima do poeta portelense –, ficou em 6o lugar. Quando o júri voltou a ouvir as fitas de inscrições, reparou o erro e deu menção honrosa para a composição.
Outro acontecimento significativo foi o “renascimento” da música instrumental na década de 1970. Já havia um lastro histórico de valorização sonora sem a participação da voz – vimos isso quando falamos do choro e podemos indicar ainda a existência dos trios (piano, baixo e bateria) que, na bossa nova, alternavam acompanhamento de canários (cantores) com apresentações instrumentais, como Tamba Trio, Zimbo Trio, Jongo Trio e outros. Mas a década que caçava a palavra cantada encontrou nas magníficas obras de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e nos grupos Cama de Gato, Pau Brasil, Som Imaginário, Premeditando o Breque e Rumo um somatório de experimentos e um cruzamento de linguagens musicais especialmente ricos. Não será exagero dizer que esses músicos se opuseram à ditadura com a arma mais poderosa de que a cultura brasileira dispõe: a música.





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