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terça-feira, 11 de agosto de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Pé do meu samba

"Só as pessoas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas". Este verso de Fernando Pessoa diz muito sobre as declarações de afeto e dos exageros que cometemos em tais ocasiões.
Ou melhor, este verso nos ajuda a pensar que quando há amor não há regras para descrever os encontros afetivos. Todas as metáforas são válidas, afinal são apenas palavras que circulam o objeto sem jamais chegar a dizê-lo de fato.
De Caetano Veloso, "Pé do meu samba", canção que dá nome ao disco que Mart'nália lançou em 2002 - Pé do meu samba, é a descrição metafórica, proliferante e apaixonada do que ela a musa inspiradora representa para o sujeito.
Ela é o Rio dele e para ele: qual beija-flor, os significantes (a cadeia de metonímias e comparações espalhadas na letra) dançam em torno da musa a fim de beijá-la. Ele canta reforçando a exuberância da presença do outro na vida dele: um brasileiro que samba pelos pés do outro.
A melodia é exata, tem precisão cirúrgica. O violão e a voz ímpar de Mart'nália agregam valores que estão implícitos no texto. Aliás, quem consegue ser mais Rio de Janeiro (na maneira e no tom malandros) do que ela? Musa híbrida: a figura de Mart'nália é híbrida. Quem mais consegue condensar em si o cheiro bom da madeira do violão?
E o inebrio dos sentidos não páram: Feira de São Cristovão (paladar); pé do samba (tato); curva de Copacabana (visão); e Vila Isabel (audição). Ela é ainda o chão do terreiro, ou seja, leva o sujeito para além da fisicalidade: à transcendência.
Ela é, portanto, a música e a dança: pé do samba; chão e teto. Ela é ela: a tradução personificada do Rio para o brasileiro. Esta canção é só para dizer e diz.


***

Pé do meu samba
(Caetano Veloso)

Dez na maneira e no tom
Você é o cheiro bom
Da madeira do meu violão
Você é a festa da Penha,
A feira de São Cristovão,
É a Pedra do Sal
Você é a Intrépida Trupe
A Lona de Guadalupe
Você é o Leme e o Pontal

Nunca me deixa na mão
Você é a canção que consigo
Escrever afinal
Você é o Buraco Quente
A Casa da Mãe Joana
É a Vila Isabel,
Você é o Largo do Estácio,
Curva de Copacabana
Tudo que o Rio me deu

Pé do meu samba
Chão do meu terreiro
Mão do meu carinho
Glória em meu Outeiro
Tudo para o coração
De um brasileiro




* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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