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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

A ERA DOS FESTIVAIS: ENTRE VAIAS E APLAUSOS (PARTE 02)

Por Tito Guedes





Depois do histórico festival promovido pela TV Excelsior em 1965, nada mais foi como antes. Elis Regina se tornou a grande estrela da música nacional, nasceu a MPB e a Era dos Festivais começou a se inscrever na História. 

Em pouco tempo, outras emissoras também passaram a produzir suas próprias competições televisionadas, e essas atrações logo se tornaram a principal vitrine para os cantores e compositores brasileiros. O público, claro, embarcou de cabeça nessa nova tendência. 

Afinal, a televisão era ainda novidade em muitos lares, e sentar-se diante dela para torcer por sua canção preferida se tornou um deleite, mobilizando paixões com a mesma intensidade de outra paixão nacional - o futebol. 

1966 - Começa o Fla x Flu 

Em 1966, a TV Record embarcou na onda dos novos palanques musicais televisionados e promoveu o II Festival de Música Popular Brasileira. Dele participaram estrelas como Roberto Carlos, Wilson Simonal, Maysa e muitos outros. 

Mas as preferidas pelo público se sobressaíram na competição desde as primeiras eliminatórias: “A banda”, de Chico Buarque, defendida por Nara Leão, e “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, defendida por Jair Rodrigues. 

As duas músicas eram muito diferentes entre si. Uma, singela e inocente, narra a passagem de uma bandinha por uma triste cidade do interior. A outra, engajada e imponente, trata da luta e resistência dos imigrantes nordestinos. 


Ambas ganharam torcidas apaixonadas e se tornaram as favoritas da competição. A repercussão foi tanta que extrapolou as paredes do Teatro Record ou as salas de estar dos lares brasileiros - ganhou as ruas. Se hoje os brasileiros brigam para saber quem é “coxinha” ou “mortadela”, em 1966 quase saiu no tapa quem era “A banda” com quem era “Disparada”. 

No dia da final, o clima era de total expectativa. Para a surpresa de todos (e revolta de muitos), o resultado foi um empate! Ambas foram agraciadas com o prêmio de primeiro lugar. Embora hoje em dia o Chico já não goste muito de sua “A banda”, a interpretação de Jair para “Disparada” é considerada por muitos o melhor desempenho de toda a sua carreira. 




A instituição das vaias

Nesse mesmo ano de 1966, a TV Rio resolveu embarcar na Era dos Festivais e criou o Festival Internacional da Canção Popular (que depois passaria a ser transmitido pela Rede Globo). Diferente dos outros, o FIC era dividido em duas fases. Na fase nacional, se escolhia a canção brasileira que iria competir na fase internacional, com canções do mundo todo. 

Na primeira edição, a vencedora brasileira foi “Saveiros”, de Nelson Motta e Dori Caymmi, defendida por Nana Caymmi. O público, no entanto, achou injusta a decisão do júri, e na hora em que Nana subiu ao palco para entoar o canto da vitória, foi vaiada estrepitosamente, como jamais acontecera em sua carreira e como definitivamente não merecia. 

O episódio ganhou muita repercussão e a partir daí as vaias se instituíram como personagem central dos festivais, que foram se tornando cada vez mais turbulentos. Assim, se o público não gostava de determinada música ou artista, vaiava sem dó nem piedade. Muitas vezes nem se ouvia direito a música concorrente, e sim uma batalha sonora de vaias raivosas e aplausos calorosos, que brigavam de igual para igual na tentativa de descobrir quem iria vencer. 

Era prática comum, por exemplo, as “torcidas organizadas de vaias”. A então estudante de jornalismo Telé Cardim ficou famosa pelo hábito de comparecer aos festivais apenas para vaiar as canções ou os artistas que ela julgava alienados em relação à situação política do país. Com o tempo, os próprios artistas a reconheciam na platéia e ela chegou a comparecer às competições com uma blusa que estampava um grande “U”. 

De acordo com o pesquisador Zuza Homem de Mello, em seu livro “A Era dos Festivais: Uma Parábola”, em um período no qual as pessoas não podiam votar nem se manifestar livremente nas ruas, os festivais se tornaram a válvula de escape para que a juventude exercesse sua liberdade de expressão. 

Por isso, episódios como a ferrenha torcida por “Disparada” e “A banda” e as vaias cada vez mais constantes representavam também o grito sufocado de cidadãos que encontraram na música uma oportuna e potente ferramenta política. 



1967 - Um ano decisivo 

Pode-se dizer que 1967 foi o auge da Era dos Festivais. É certamente um dos anos mais importantes de todo esse período - e em vários sentidos.

No FIC de 1967, por exemplo, o grande público foi presenteado com o surgimento de Milton Nascimento, que ali defendeu “Travessia”, canção de sua autoria que logo se tornou um clássico. Milton não ganhou (perdeu para “Margarida”, de Guttemberg Guarabyra), mas provou que ali nascia um grande artista. 

Nesse mesmo ano, o III Festival Internacional da Música Popular Brasileira da TV Record entrou para a História como um dos festivais mais memoráveis, a começar pela vitória de Edu Lobo e Marília Medalha com a brilhante “Ponteio”. 


Foi nessa edição que Caetano Veloso e Gilberto Gil, então desconhecidos pelo público, se apresentaram com músicas muito diferentes do que já se chamava de MPB, com inúmeras influências estrangeiras e o uso de guitarras elétricas nos arranjos, um verdadeiro pecado à época. 

Com “Alegria, Alegria”, Caetano falou em Coca-Cola e enalteceu figuras do universo pop como a atriz Brigitte Bardot. Com “Domingo no parque”, Gil apresentou uma letra diferente de tudo que se vira até então e revelou ao mundo uma das bandas de rock mais importantes da Século XX: Os Mutantes. 


A reação a essas inovações foi, claro, uma mistura ensurdecedora de vaias e aplausos. A ousadia dos dois incentivou um importante debate sobre a cultura brasileira e originou um movimento cultural que logo virou protagonista da cena musical brasileira. Sim, a Tropicália foi concebida e parida no palco desse festival.

Nessa mesma ocasião, o público presenciou uma grande virada na carreira de Chico Buarque. Depois de experimentar o sucesso comercial com “A banda” no ano anterior, o compositor adotou um tom político e engajado com a canção “Roda Viva”, defendida ao lado do MPB-4 em performance inesquecível. Pouco tempo depois, essa música deu origem a uma das peças de teatro mais importantes na luta contra a ditadura militar.


E como se não bastasse, foi também nesse festival que aconteceu o já mítico episódio da “violada” de Sérgio Ricardo. Irritado com as incessantes vaias da platéia, que não aprovara a mudança no arranjo de sua música concorrente, “Beto bom de bola”, o cantor se levantou do banquinho, esbravejou um “vocês venceram!”, quebrou o violão no palco e o arremessou ao público, como uma fera enjaulada que ataca os agressores. Foi desclassificado. 


Esses e outros acontecimentos (como a histórica interpretação de Roberto Carlos para “Maria, carnaval e cinzas”) renderam um famoso documentário, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil: “Uma Noite em 67”. 

Todos esses acontecimentos serviram como prenúncio de que a partir daí o clima iria pesar cada vez mais, acompanhando a tenebrosa atmosfera do país. Havia algo de podre acontecendo em Brasília, e o cheiro se alastrou para o palco dos festivais. O público foi ficando cada vez mais enraivecido e os artistas cada vez mais radicais e indignados.

Em 1968, já não haveria tempo a perder se temendo a morte ou uma desclassificação. Estariam todos atentos e fortes. 


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