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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

75 ANOS DE ELIS REGINA: OS SONHOS MAIS LINDOS (PARTE 03)

Por Tito Guedes


“Os sonhos mais lindos sonhei/ De quimeras mil, um castelo ergui...”. Não há quem leia os versos iniciais de Fascinação e não os associe imediatamente à voz poderosa de Elis Regina. O mesmo acontece com diversas outras músicas consagradas por ela, como Atrás da porta, Tatuagem, Casa no campo ou Águas de março. 

A partir de 1965, Elis entrou em uma curva ascendente de sucesso, prestígio e domínio de sua técnica vocal, o que a fez chegar nos anos setenta como a grande cantora nacional, capaz de arrebatar as plateias mais exigentes e com a proeza de não desafinar nem mesmo quando chorava! 

O fato é que depois do álbum Em Pleno Verão, de 1970, quando deixou de lado certos radicalismos estéticos, Elis diversificou seu repertório e trouxe um frescor que caiu muito bem na discografia que produziu nessa época. Outro fator que contribuiu para essa renovação foi o encontro com o músico e arranjador César Camargo Mariano, com quem se casou. Juntos, os dois criaram alguns dos melhores discos e shows da história da música brasileira. 

O start dessa parceria foi dado com o disco Elis, de 1972. Nele já estão presentes os compositores que se tornaram recorrentes nessa nova fase da artista: Chico Buarque, Ivan Lins, João Bosco, Aldir Blanc, para citar apenas alguns. A capa, que mostra Elis sorridente em um grande jardim, refastelada em uma cadeira e vestida de branco, tem forte ligação com a letra de Casa no campo, “rock rural” de Zé Rodrix e Tavito que se tornou emblemático tanto dessa fase da vida de Elis (recém-separada de Bôscoli e engatando um novo casamento com César), quanto daquele período na vida política e social do Brasil. Eram muitos os jovens que cantavam a plenos pulmões aquela letra de espírito quase hippie: 

Eu quero uma casa no campoOnde eu possa ficar no tamanho da pazE tenha somente a certezaDos limites do corpo e nada mais…

Em 1974, os dois seriam responsáveis pelo nascimento de outra obra-prima da discografia brasileira: o disco Elis & Tom. Gravado em Los Angeles, nos Estados Unidos, entre março e fevereiro daquele ano, o álbum promoveu a união explosiva da maior cantora do Brasil com o maior compositor do Brasil, o “maestro soberano” Antônio Carlos Jobim. Produzido por Aloysio de Oliveira e com arranjos magistrais de César Camargo Mariano, o álbum passou por um processo criativo conturbado, com inúmeras discordâncias entre Tom e César, mas o resultado foi impecável. Em 2007, ele foi considerado o 11º melhor disco de música brasileira de todos os tempos pela revista Rolling Stone Brasil. 

Só a faixa de abertura desse disco serviu para fazer História. Trata-se do dueto de Elis e Tom em Águas de março, a faixa mais celebrada do álbum. Além dessa, há também no repertório clássicos que caíram muito bem na voz de Elis, como Só tinha de ser com você, Modinha e Fotografia.



Em dezembro 1975, Elis Regina iniciou um dos projetos mais bem sucedidos de toda a sua carreira. Não, não era um show comum. Era um espetáculo, com toda a grandeza e glamour que o termo traz em si. Trata-se de Falso Brilhante, que ficou em cartaz até fevereiro de 1977 em São Paulo, somando 257 apresentações e um público total de 280 mil pessoas. Criado coletivamente com a equipe, com direção cênica de Myriam Muniz e musical de César Camargo Mariano, o espetáculo se propunha a traçar uma retrospectiva da carreira de Elis. O repertório de 42 músicas eram divididos em duas partes e a infraestrutura era grandiosa: um enorme cenário que evocava elementos circenses, com trocas de figurino e os músicos todos caracterizados.

Em 1976 foi gravado um disco homônimo, que registrou 10 das canções presentes no show. Embora limitado em relação à grandiosidade do espetáculo, o álbum Falso Brilhante é, sem dúvida, um dos trabalhos essenciais da discografia de Elis Regina e foi responsável pelo lançamento de um compositor ainda desconhecido pelo público: Belchior. Dele, Elis gravou Como nossos pais e Velha roupa colorida, duas músicas de alto teor político e contestatório, com letras que tratam criticamente da situação do país naquele período, então imerso em um repressivo regime militar. 

Não à toa, são duas músicas que ressoam em protestos até hoje, bem como outras músicas “engajadas” gravadas por Elis nesse período, como Deus lhe pague, O bêbado e a equilibrista e Cartomante.

Para além de todos esses trabalhos antológicos, talvez o momento de maior glória de Elis Regina (ao menos segundo sua própria concepção) tenha sido a apresentação no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, em 1979. Ela se apresentou na Noite Brasileira da 13ª edição desse que é até um hoje um dos principais festivais de música do mundo. 

Ante de subir ao palco, Elis teve uma crise de choro, emocionada com a constatação de que ela, filha de uma lavadeira, pisaria no mesmo palco por onde já passara Ella Fitzgerald. E ela não apenas pisou no palco. Mesmo muito nervosa, fez um show avassalador (como se fosse novidade), e foi ovacionada pelo público durante 11 minutos seguidos! No final da noite, voltou ao palco para uma jam session com o músico Hermeto Paschoal, considerada histórica até hoje. 

Elis não aprovou seu desempenho nessa noite (por conta do nervosismo, que afetou a voz) e por isso vetou o lançamento de um disco com o áudio do show. Mesmo assim, o álbum Montreux Jazz Festival foi lançado postumamente pela Warner em 1982. Se o lançamento foi justo ou não com a memória da artista, o fato é que ao menos temos o registro de um dos momentos mais importantes de sua carreira. 

Em janeiro de 1982, quando ninguém esperava, Elis Regina morreu em decorrência de uma overdose. Vitimada pelo mesmo furacão emocional que lhe deu o dom de emocionar o mundo através do canto, ela deixou um país órfão e gerou uma verdadeira comoção nacional.

Até hoje, ninguém foi capaz de ocupar o seu lugar, e nem nunca será. Isso porque Elis não deixou seu lugar vago. A chama de sua arte ainda queima como fogo, e sua obra ainda despertará por muitos anos o mesmo fascínio que despertava nos ouvintes do século passado. Quente, inebriante, porque “és fascinação, amor…” 

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