• CAPÍTULO 5 •
SAMBA-CANÇÃO,BOSSA NOVA E ZICARTOLA
Em 1939 o mundo mergulhou (e se afundou) na Segunda Guerra Mundial. Em decorrência, houve uma diminuição, em todos os cantos do planeta, das atividades que não estavam diretamente ligadas ao conflito. O ritmo dos investimentos na produção fonográfica e nos espetáculos caiu substancialmente, afetando a até então crescente indústria do entretenimento. Discos deixavam de ser lançados, shows eram cancelados, bailes e desfiles carnavalescos adiados. Apesar do namoro do presidente Getúlio Vargas com os nazifascistas, o Brasil acabaria apoiando os Aliados. O samba, nesse contexto, já havia conquistado seu espaço nas rádios, tornando-se o gênero preferido do povo. Tanto que, em pelo menos uma ocasião, o samba se fez presente na guerra.
Em 1944, o Brasil enviou sua força expedicionária (FEB), um contingente de 25 mil homens, a monte Castelo, na Itália. Em uma daquelas noites tenebrosas, na volta de uma patrulha, um nervoso soldado virou para o sentinela e disse: “Esqueci a senha. Mas sou brasileiro, não está vendo?” Então o sentinela, engatilhando a arma, ordenou: “É brasileiro? Canta um samba.” E o expedicionário cantou, de pronto, um samba de Ataulfo Alves e Mário Lago:
“Covarde sei que me podem chamar/ porque não guardo no peito esta dor/ atire a primeira pedra ai ai ai/ aquele que não sofreu por amor...”, livrando sua pele. Esse diálogo, relatado no livro do professor Arthur Loureiro de Oliveira sobre os 500 anos de música brasileira, dá um parâmetro da grandiosidade que o gênero atingiu na década de 1940.1 Neste capítulo, vamos falar do melancólico período do pós-guerra, da euforia sociocultural dos anos 1950 e do Zicartola, restaurante musical e quartel general do samba na década de 1960.
A Segunda Guerra Mundial
Com a invasão da Polônia, em 1939, Adolf Hitler deu início à Segunda Guerra Mundial. Antidemocrático, totalitário, racista, anti-semita, nacionalista e expansionista, o nazismo foi a política de extrema direita que uniu em torno de Hitler a Itália de Benito Mussolini e o Japão do imperador Hirohito. Conhecidos como países do Eixo, lutaram contra os Aliados (países capitalistas como EUA, França e Inglaterra, além da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS) na maior guerra já registrada pela história.
Com a rendição do Eixo, em 1945, após as trágicas bombas atômicas jogadas pelos Estados Unidos em Nagasaki (70 mil mortos) e Hiroshima (cem mil mortos), os ventos da democracia liberal passaram a soprar forte no Ocidente, e o mundo ficou divido entre a influência da URSS, país socialista, e dos Estados Unidos, país capitalista – os dois mais importantes vitoriosos da Segunda Guerra. Começava então a Guerra Fria.
No Brasil, o governante do período era Getúlio Vargas, que, digamos, namorou com o Eixo, mas acabou apoiando os Aliados, inclusive mandando tropas para a Itália. A guerra acirrou os ânimos dentro do país contra os alemães, japoneses e italianos, que foram, aliás, proibidos de participar do carnaval no Rio de Janeiro.
Nesse período, num reduto da boemia carioca dos anos 1940, o antigo Bar Adolfo, fundado em 1887 e dirigido por descendentes austríacos, o clima esquentou em uma noite agitada. O bar foi invadido por jovens estudantes que garantiam ser o recinto um núcleo nazista. Antes que começassem a quebrar tudo no charmoso botequim, Ary Barroso largou seu chope e fez um inflamado discurso do alto de uma mesa, em defesa do estabelecimento. O Adolfo salvou-se da quebradeira, mas, por via das dúvidas, os donos tomaram a sábia decisão de mudar o nome para Bar Luiz.
O pós-guerra foi marcado por um clima depressivo nas artes; em todo o mundo, predominava um sentimento de melancolia e luto pela perda abrupta de milhões de vidas. Nesse contexto, o samba ganha a roupagem de samba-canção, com letras que falam de desamores e infortúnios. É bom que se diga, esse período está longe de representar um primo pobre do samba. Apesar do clima “abolerado”, ele é pontuado por excelentes compositores e intérpretes. Já entrando no final da década de 1950, tudo muda: a nação respira novos ares, e o otimismo do período Juscelino Kubitschek– com o lema “50 anos em 5” – reflete-se no surgimento da bossa nova, movimento de jovens da Zona Sul carioca que cantam o amor, o sol, o mar, a beleza da mulher... A bossa nova abre um novo horizonte estético na música popular brasileira e muda para sempre seu cenário.
A Segunda Guerra Mundial e a música popular
A guerra constitui-se em grande tema para os compositores da primeira metade da década de 1940. Augusto Garcez e Roberto Martins ironizavam a figura de Adolf Hitler, principal liderança do nazismo: “Quem é esse que usa cabelinho na testa/ e um bigodinho que parece mosca?/ Só cumprimenta levantando o braço/ Ê ê ê ê palhaço.” Haroldo Lobo e Milton Oliveira ridicularizaram o “passo do ganso” dos soldados alemães: “Que passo é esse, Adolfo?/ Que dói a sola do pé?/ É o passo do gato?/ Não é. É o passo do ganso/ Cuem, cuem, cuem, cuem.” O fim da guerra, em 8 de maio de 1945, inspirou compositores, como Wilson Batista, que compôs “Comício em Mangueira”, gravada por Carlos Galhardo: “Houve um comício em Mangueira/ O cabo Laurindo falou/ toda a escola de samba aplaudiu/ e toda a escola de samba chorou/ ‘Eu não sou herói’ – era comovente a sua voz – ‘Heróis são aqueles que tombaram por nós’.”
Em 1963 é inaugurado o Zicartola, um restaurante modesto, situado em um sobrado no Centro do Rio, cujo grande trunfo era ser comandado pelo compositor Cartola e sua mulher, Zica. Local de encontro de gerações e estilos musicais e, sobretudo, de valorização do samba urbano, o Zicartola agregou nomes como Zé Kéti, Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Tom Jobim, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nelson Sargento, Nara Leão e Paulinho da Viola. O rico convívio de linhagens tão diferentes gerou o surgimento de dois espetáculos emblemáticos na história da MPB: Opinião e Rosa de Ouro. Dito isso, o trem segue em frente parando em cada uma das estações.
O samba-canção
O samba-canção é mais antigo do que o leitor pode imaginar. Samba “de andamento lento, melodia romântica e letra sentimental”,2 apareceu no cenário musical brasileiro no fim dos anos 1920, na obra de compositores semi-eruditos. Chamado também de “samba de meio do ano” – feito fora do ciclo carnavalesco –, popularizou-se a partir da composição “Linda flor”, em 1929, cantada pela vedete Aracy Cortes e produto da parceria dos compositores Henrique Vogeler, Marques Porto e Luís Peixoto.
Quase todos os grandes compositores de samba escreveram samba-canção.
Noel Rosa, com “Pra que mentir?”, Cartola, com “As rosas não falam”, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, com “A flor e o espinho”, Ataulfo Alves, com “Boêmios”... O ambiente da década de 1950 estimulou a expansão desse gênero no mercado nacional, mas o estilo também sofreu influências dos sentimentais boleros dos cabarés latinos e, no que diz respeito às letras, das propostas poéticas europeias ligadas à filosofia existencialista (que traduzem um forte desencanto com o mundo). De fato, o samba-canção aspira a um certo semi-eruditismo, marcado por letras e características orquestrais mais sofisticadas.
Essa década foi marcada pela chegada da comunicação de massa. Os artistas, através de seus produtores e contando com um amplo mecanismo de divulgação (rádios, jornais, revistas e a recém-criada televisão), mobilizavam milhares de fãs.
O cenário onde circulavam os que queriam ver e ser vistos era a cintilante Copacabana. Charmosa, elegante, boêmia, a “princesinha do mar”, como João de Barro e Alberto Ribeiro vieram a chamá-la no samba-canção “Copacabana”, era o bairro dos sonhos de quase todos os brasileiros. Com seus bares, cabarés e restaurantes, ela substituiu a Lapa como centro das atividades noturnas. Em um bairro que até os anos 1930 era um longínquo paraíso natural, coabitavam agora prostitutas, damas da sociedade, políticos, intelectuais, milionários, traficantes e consumidores, todos bronzeados, livres, leves e soltos. Cenário ideal para um samba-canção, com seus rompantes de tragédia amorosa. Pode-se dizer que a geração musical que vai do samba-canção à bossa nova fez de Copacabana sua morada existencial.
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