Páginas

sábado, 4 de abril de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

Resultado de imagem para ALMANAQUE DO SAMBA


Ataulfo Alves

Nunca vi fazer tanta exigência
nem fazer o que você me faz
você não sabe o que é consciência não vê que eu sou um pobre rapaz...

ATAULFO ALVES e MÁRIO LAGO, “Ai, que saudades da Amélia”



Nos anos 1930, o Rio de Janeiro – assim como São Paulo – expandia sua infra-estrutura econômica, gerando melhores oportunidades de trabalho. Milhares de migrantes de outros estados passaram a ver no eixo Rio–São Paulo a solução para suas vidas. Já vimos que Wilson Batista, Ary Barroso e Geraldo Pereira arrumaram as malas e tomaram esse caminho. Mas houve também um mineiro de Miraí que chegou ao Rio, com 18 anos de idade, para tornar-se um dos pilares do samba carioca: Ataulfo Alves.
O sempre elegante e simpático Ataulfo deu muito duro na vida. Trabalhou como empregado na casa de um médico conterrâneo, limpou vidraça de farmácia e acabou, por mérito próprio, tornando-se prático de medicamentos. Após completar seu horário na farmácia, saía a caminho de sua casa no Rio Comprido, bairro próximo ao Estácio e ao Salgueiro, fazendo sempre uma ou várias escalas nas rodas de samba da região. Ataulfo, que nem imaginava tornar-se compositor, foi tomando gosto pelo clima musical carioca e aos poucos
começou a manusear instrumentos musicais e formar conjuntos, chegando mesmo a ocupar a direção de harmonia do bloco carnavalesco Fale Quem Quiser.
Sua estreia em disco teve como responsável Alcebíades Barcelos, o Bide, autor do clássico “Agora é cinza”. Bide apresentou Ataulfo a Mr. Evans, diretor americano da Victor, e logo depois Almirante gravou seu samba “Sexta-feira”, a que se seguiu a gravação feita por Carmen Miranda de “Tempo perdido”. Essa música já continha a nostalgia e o sentimento amoroso de grande parte das composições de Ataulfo: “Mesmo derramando lágrimas/ eu não te posso perdoar/ chega o que tenho sofrido/ todo o meu tempo perdido/ nunca mais eu
quero amar.” Estava garantida, em 1933, a entrada de Ataulfo Alves no mundo artístico carioca. Muitos foram os parceiros do compositor: o próprio Bide, Roberto Martins, Assis Valente e Claudionor Cruz, entre tantos outros. Mas foi com Wilson Batista e Mário Lago que ele alcançou os maiores sucessos de sua bem-sucedida carreira.
Com Wilson, Ataulfo fez “Eu não sou daqui”, o maravilhoso “Ó seu Oscar” e o emblemático “Bonde de São Januário”. São Januário era um bairro operário no Rio de Janeiro. Certa vez o Clube de Regatas Vasco da Gama foi obrigado a construir um estádio de futebol para participar do campeonato carioca, condição imposta com o objetivo de dificultar o acesso ao então elitista ambiente futebolístico (não se esqueçam de que o futebol surgiu na elite). O local escolhido foi a zona operária de São Januário.


Mário Lago

Poeta, escritor, ator, radialista, Mário Lago foi uma das grandes personalidades da cultura brasileira. Frequentador da boemia da Lapa, ativo em suas posições políticas de esquerda, gravado pelos principais cantores de seu tempo, Mário compôs pérolas do cancioneiro popular. Fez com Ataulfo “Atire a primeira pedra”, sucesso da dupla em 1944; com Roberto Martins, “Aurora”; com Custódio Mesquita, o clássico “Nada além”, gravado magistralmente pelo cantor Orlando Silva: “Nada além, nada além de uma ilusão/ chega bem e é demais para o meu coração...”


Durante o Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas utilizava as dependências do estádio do Vasco para fazer seus inflamados discursos populistas no dia do trabalhador. É justamente nesse período da ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, marcado pela atmosfera da ascensão do nazifascismo no mundo e do iminente conflito da Segunda Guerra Mundial, que Ataulfo compôs com Wilson “Bonde de São Januário”. Como se vivia o clima de valorização do trabalho, a letra foi rapidamente aprovada pelo temível DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão que censurava a imprensa, o rádio e as artes: “Quem trabalha é que tem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ o bonde de São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar.” Para alguns pesquisadores (e a polêmica vai muito além dessas afirmativas) a letra foi modificada por Wilson e Ataulfo, a pedido do DIP, já que a original diria “otário” em vez de “operário”. O que importa é que o discurso de valorização do trabalhador brasileiro, fosse ele branco, negro ou mestiço, encontra em Getúlio o seu ardoroso defensor.
Ao lado do versátil Mário Lago, Ataulfo fez o seu maior sucesso, “Ai, que saudades da Amélia”: “Você só pensa em luxo e riqueza/ tudo o que você vê, você quer/ Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/ aquilo sim é que era mulher...” Segundo reza a história, Amélia era lavadeira de Araci de Almeida. O irmão da cantora, que foi um grande baterista, Almeidinha, brincava muito no Café Nice, dizendo: “Amélia, Amélia é que era mulher. Amélia lavava, cozinhava, passava e o dinheiro que ela ganhava a gente bebia. Aquilo é que era mulher.” “Ai, que saudades da Amélia” teve a letra um pouco modificada por Ataulfo, mas acabou por receber uma das melhores melodias de seu repertório.


Vargas, populismo e samba

O gaúcho Getúlio Vargas talvez seja a figura política mais discutida e complexa da história do Brasil. Chegou a presidente da República à frente da Revolução de 30, permanecendo no cargo durante 15 anos. Getúlio foi o “revolucionário de 30”, o constitucional de 34, o ditador de 37 e o democrata de 51. Com seu jeito macio e habilidoso de fazer política, inaugurou uma
nova era na história do Brasil, associando definitivamente seu nome ao processo de industrialização e de valorização do trabalho. Sua política populista pode ser caracterizada pelo ato de dar o peixe para o trabalhador, mas nunca ensiná-lo a pescar.
O grupo que chegou ao poder com Vargas formulou um novo projeto para o Estado brasileiro, que incluía a valorização do trabalhador e das “coisas nossas”. Assim, aumentaram os incentivos estatais às festas populares, com destaque para o carnaval. O samba passa a ser o principal ritmo nacional, e, ao contrário do que muitos pesquisadores relatam, Vargas gostava de ser retratado como malandro...


O sucesso de “Amélia” não parecia muito evidente para os cantores da época. Ninguém queria gravá-la. Ataulfo resolveu levá-la para o disco, mesmo sabendo que tinha poucos recursos vocais. Teve a ideia de formar um grupo de pastoras, coristas e dançarinas que ajudavam na sustentação das músicas, com as quais lançou grandes sucessos: “Todo mundo enlouqueceu”, “Boêmio sofre mais”, “Vá baixar em outro terreiro”, “Infelicidade”.
Ataulfo criou um caminho próprio no samba. Suas músicas tinham sentido filosófico e melodias inspiradas. As tristezas manifestadas em suas frases longas e lentas podem ser resumidas no saudoso retrato de sua pequena Miraí, em “Meus tempos de criança”: “Eu daria tudo que eu tivesse/ pra voltar aos tempos de criança/ Eu não sei pra que a gente cresce/ se não sai da gente essa lembrança/ Aos domingos missa na matriz/ da cidadezinha onde eu nasci/ Ai, meu Deus, eu era tão feliz/ no meu pequenino Miraí...”









* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário