Páginas

segunda-feira, 30 de março de 2020

PAUTA MUSICAL: MÁRIO REIS E DICK FARNEY – MODERNISTAS DE CARTEIRINHA - PARTE 02

O Dick Farney selecionado é o do samba-canção pós-guerra, transição para as harmonias inovadoras da bossa, em gravações de 1946 a 1952.

Abre o CD megaclássico ‘Copacabana’ [João de Barro/Alberto Ribeiro] de 1946, um divisor de águas com Radamés Gnattali arquitetando um arranjo de cordas [sob o comando do maestro Eduardo Patané], que incluía violinos, viola, violão, baixo e bateria, uma formação inusitada em relação ao tratamento dado então ao samba pelos regionais e mesmo orquestras de estúdio. No primeiro plano, uma percussão leve [prato-e-faca?] sustente o ritmo numa discrição que só era ouvida adiante, nos discos de João Gilberto. Outro ícone do cantor ronronante é a sussurrada [e lânguida] ‘Marina’[Dorival Caymmi].

“Copacabana” (João de Barro/Alberto Ribeiro) # Dick Farney e Orquestra de Cordas Eduardo Patané. Disco Continental (15.663-A) / Matriz (1509). Gravação (0206/1946) / Lançamento (agosto/1946).

Sem querer, Farney, exímio também ao piano, como demonstra nas faixas em que se acompanha, desvela o ritmo de passagem do Brasil caboclo interiorano [‘Barqueiro do São Francisco’ / ‘A saudade mata a gente’ / ‘Um cantinho e você’ / ‘Nick Bar’ / ‘Uma loura’ / ‘Somos dois’] que forjaria a Bossa Nova consequente.


Oscar Belandi / José Maria de Abreu / Braguinha / Alberto Ribeiro / Luis Antônio / Alcyr Pires Vermelho


Outra boa ação da coletânea é reunir alguns dos principais autores dessa transcrição musical, alguns já esquecidos, como Oscar Belandi e José Maria de Abreu, além do próprio João de Barro, o Braguinha, seu parceiro Alberto Ribeiro e mais Luís Antonio, Alcyr Pires Vermelho.


Mário Reis / Braguinha / Alberto Ribeiro / Lamartine Babo / João Gilberto / Sinhô


Voz pequena e sorridente, divisão impecável e um prenúncio do canto falado decupando as sílabas que balizaria a era do intimismo, Mário Reis deu a partida num projeto de MPB com cânones bem definidos. Sua estratégia de abordagem íntima dos temas funcionou tanto nas marchinhas sapeca: [‘Cadê Mimi?’/ Braguinha/Alberto Ribeiro] /‘Rasguei minha fantasia’ / ‘Joujoux et balangandãs’[ambas de Lamartine Babo, esta última regravada por João Gilberto], quanto em samba como ‘Cansei’/ ‘Gosto que me enrosco’ [ambas de Sinhô] e ‘Voltei a cantar’ [Lamartine Babo].


Em suas várias voltas [e retiradas], em 1939, 1960, 1965 e 1971, Mário Reis não se limitava a regravar o material antigo com orquestrações mais atualizadas. Em 1960, com a Bossa saindo da casca, mandou um Tom Jobim inédito que ficaria conhecido praticamente apenas na sua interpretação [Isso eu não faço]. Onze anos depois, o eleito do rigoroso estilista seria Chico Buarque. Dele registraria uma noviça ‘Bolsa de amores’, proibida pela censura [e não incluída no CD], que ele faria questão de não substituir no LP, deixando-o com uma faixa a menos. E uma surpreendente releitura do sucesso ‘A Banda’.

Em meio à fanfarra de parada militar [condizente, aliás, com o regime da época], Mário, num desempenho coloquial contrastando com o acompanhamento, recupera o lirismo da letra surrada por tantas regravações. Ao contrário da maioria dos astros, em seu último disco ele não estava em declínio, mas no auge do seu poder de recriar as composições alheias, tornando-se um parceiro de seus fornecedores contemporâneos ou posteriores.



*************


Fontes:
– Dicionário Cravo Albin / Verbetes: Mário Reis / Dick Farney.
– Fotomontagem: Laura Macedo.
– Site YouTube / Canais: “Adilson Flávio Santos”, “Gilberto Inácio Gonçalves”, “luciano hortencio”, “Eduardo Michels”, “Zemedela”, “George Kaplan”, “Alfredo Pessoa”, “1000amigovelho”, “Marcelo Maldonato”, “Luiz Gilberto de Barros Filho”.
-Tem mais samba: das raízes à eletrônica / Tárik de Souza – São Paulo: Editora 34, 2003 [Transcrição do texto do Jornal do Brasil, em 25/05/2001].

Nenhum comentário:

Postar um comentário