Rosa de Hiroshima
O grupo Secos e molhados revolucionou (e redefiniu) a performance dos intérpretes de canção no Brasil. Com uma atitude pós-tudo (desbundamento total) os integrantes colocaram a androginia no centro das discussões estéticas.
Além disso, chamaram à cena a hibridação brasileira e latino-americana. Causaram pane nas meias verdades que nos constituem. Já no nome do grupo - Secos e molhados - encontramos referência ao arcaico, tendo em vista que tal expressão servia (serve ainda hoje) para designar pequenas barracas (que vendem de um tudo) nas feiras livres.
Já a contraparte moderna fica por conta das letras com linguagem coloquial e nonsense e das situações (desconcertantes para muitos) que a presença física dos rapazes causavam nas certezas do "macho adulto branco sempre no comando".
Mas o desbunde, ao contrário do que se pensou (talvez ainda se pense) não representou alienação social e/ou artística. A gravação de "Rosa de Hiroshima", de Vinicius de Moraes e Gerson Conrad, aponta isso.
Gravada no primeiro (e antológico) disco - Secos e Molhados (1973) -, a canção, um poema musicado, estruturada por nove dísticos (estrofes com dois versos cada), é um libelo que estimula o ouvinte, para além do rebolado do corpo, ao pensamento, não menos libertário e libertador do que a proposta do grupo. No caso, sobre a barbárie da guerra. Fluida, mas com marcas imprevistas, a rosa se evapora: pega e mata.
Aqui, o uso do dístico como recurso poético, agrega exatamente a ideia de que juntos (em dois) é mais fácil pensar (a canção pede isso três vezes) e não esquecer as consequências da estupidez da "rosa radioativa".
A mensagem é direta e a beleza fica por conta da interpretação em ritmo de oração (súplica) de um Ney Matogrosso (sujeito e objeto não identificado) embriagado de vontade de potência. A voz que canta é a de um ser místico vindo dos rincões do Brasil, a fim alertar e despertar consciências. A voz que canta é a voz da liberdade do desejo de vida. E vida em abundância.
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Rosa de Hiroshima
(Vinícius de Moraes / Gerson Conrad)
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada
* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".
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