De volta ao nosso espaço, a cantora, instrumentista e compositora mineira hoje, em um excelente bate-papo, vai além de "maryákoré", seu sétimo registro fonográfico lançado recentemente.
Por Bruno Negromonte
Consuelo de Paula é uma daquelas artistas que consolidaram a sua carreira longe dos grandes canais midiáticos. Dona de um trabalho genuíno, sua arte não se ajoelhou à Indústria Cultural e toda a moenda que a constitui. Profunda, faz-se necessário imergir nas entranhas do Brasil para apreender e traduzir aquilo que o seu canto e sua musicalidade é capaz de nos traduzir como tivemos a oportunidade de mostrar a partir da pauta "EM NOVO PROJETO, CONSUELO DE PAULA APRESENTA-SE VISCERAL", publicada recentemente em nosso espaço. Hoje a artista volta ao Musicaria Brasil para falar sobre reminiscências relacionadas à música e ao instrumento ao qual se dedicou, sua trajetória artística, aquilo que permeia a sua inspiração entre outras informações. Boa leitura!
Qual
a lembrança mais remota que você tem com a música? Vem de sua infância ou ela
veio chegando sorrateiramente depois?
Consuelo de Paula - Respondo com a
primeira imagem que chegou assim que eu li a sua pergunta. Eu, ainda muito
menina, ouvindo música com algumas amigas que iam até a minha casa (minha
família ainda morava na casa de minha avó paterna) para verem a expressão que
eu fazia ao escutar canções, pois assim diziam perceber melhor a beleza da
música. Como se através da minha admiração, que se traduzia em expressão, elas
vissem a arte que morava ali naquele disco de vinil. É uma lembrança que me
deixa impactada. Uma imagem que me diz muito, que conta para mim quem eu sou:
uma encantada pela arte musical e que talvez seja isso mesmo o que eu vim fazer
por estas bandas do universo.
E o instrumento?
Como você o descobriu e se deixou envolver pelo violão?
CdeP - Certa vez um parente distante que morava em São Paulo nos visitou - e ele
tinha um violão. Ele me ensinou duas músicas e em quinze minutos eu já tocava e
cantava Luar do Sertão e João de Barro – acho que eram estas. Meu pai e minha
mãe resolveram então me presentear com um violão: eu tinha treze anos de idade.
Vou lhe contar uma coisa que nunca contei até agora. Eu achava que meu
instrumento seria o piano e só recentemente, em Maryákoré, eu me casei
definitivamente com meu violão. Só agora ele se tornou parte de mim, a extensão
do meu corpo, de verdade. Em Maryákoré ele é a minha arma, o meu remo, o meu
barco, o meu tambor, o meu guia, o meu movimento de amor e de luta.
Como
se deu a sua caminhada artística até a culminância do seu primeiro álbum “Samba, Seresta e Baião”, de 1998?
CdeP - Na cidadezinha mineira, Pratápolis, eu participava de tudo que tinha
relação com a música, poesia e teatro. E eram coisas muito simples: serenatas,
peças teatrais no colégio, fanfarra, festivais, danças, poesias, bailes e
carnaval. Ainda aos treze anos eu fundei um bloco carnavalesco só de mulheres.
E bem antes disso, já me vestia de rainha na época das festas do congado.
Depois fui estudar em Ouro Preto e eu me lembro de ter ficado assustada com a
reação da plateia quando cantei no Theatro Municipal de Ouro Preto, durante uma
“calourada”. Senti medo do que meu canto havia provocado nas pessoas. Muitos
disseram: ainda vai ter muito palco em sua vida. Depois de formada, em 1988, eu
vim para São Paulo e aqui comecei a montar um show por ano. Até que eu criei o
show “samba e baião” em 1996 e vi que aquilo já era a primeira obra e que deveria
ser registrada em CD e que a partir dali eu começaria a me dedicar somente à
música. Demorei a me apresentar às pessoas como cantora, só depois de gravar o
primeiro cd (lançado em 1998) e demorei mais ainda a me apresentar como artista
(só depois de terminar a minha trilogia: samba, seresta e baião; tambor e flor;
dança das rosas).
São
duas décadas de carreira fonográfica com trabalhos que apesar de distintos em
diversos aspectos confluem de modo bastante coerente. Como você procura
“costurar” esses projetos de modo que não destoem?
CdeP -Que maravilha
a sua pergunta! E que bom que você ouviu desta maneira. Sim, cada um é bem
distinto e todos estão imensamente ligados, como uma obra só. A costura vem
naturalmente porque uma obra aponta a outra e conversa com a anterior. Acho que
mantenho o essencial e a partir desta essência vou criando. E, claro, o
pensamento artístico é meu guia, sempre.
Outra
característica dos seus projetos é essa espécie de auto delegação. Percebe-se o
seu compromisso para além do canto ao assumir para si também a concepção, direção
e a produção. Por qual razão você opta por ser desse modo?
CdeP - Aconteceu naturalmente também. Como ao criar as canções que fariam parte
de cada cd, eu já percebia a cor, as imagens, o cheiro rs, a textura, o som,
tudo que fazia parte da estética daquele álbum, eu precisava produzi-lo. Sim, o
canto é apenas um dos elementos. E a voz, os instrumentos, arranjos etc., estão
ali para que a canção e o roteiro expressem o que precisam expressar, como num
filme, como na sétima arte.
Sua
música está intrinsecamente relacionada com as letras, percebe-se isso em
projetos como “O tempo e o branco”,
projeto inspirado no universo poético de Cecília Meireles. Além disso você é
autora do livro “A Poesia dos
Descuidos” (em parceria com Lúcia Arrais Morales). Há pretensões de
dar continuidade a esse contexto no campo literário também e o desejo de lançar
mais algum livro? Sim, sempre tentei que as letras das canções
sobrevivessem sem as melodias e vice versa, para que ao se unirem pudessem
parecer um milagre. Tenho sim a intenção de lançar outro livro, mais livre no
sentido da poesia escrita sem imagem ou melodia, pois em A Poesia dos
Descuidos, a palavra está ligada a imagem.
Em
relação ao mercado, a sua arte não busca fazer em concessão, e isso acaba por ter
um preço como, por exemplo, a falta de espaço em determinados espaços
midiáticos. Como você vê essa lógica de mercado onde, como diz Caetano em “Sampa”, a força da grana acaba por
destruir (ou ocultar) coisas belas e comprometidas com o cerne de nossa
cultura?
CdeP - O mundo da grande mídia, ligado ao mundo do grande
mercado, foi se aprofundando na direção do avanço do capitalismo selvagem
(atualmente indo em direção a total barbárie). Essa mídia, além de praticar o
jabá (a propina), só mostra, só toca o que as três gravadoras que dominam o
mundo do disco querem. Quando eu estava começando, logo após lançar o meu
primeiro cd, um produtor de uma destas três grandes gravadoras me procurou. E a
proposta incluía mudar a forma de cantar, a respiração tinha que ser
obrigatoriamente ligada à pop music dos Estados Unidos da América e os
compositores eram todos ligados ao ramo do que chamam de entretenimento (Sullivam
e Massadas, outros ligados ao mundo sertanejo music, etc.). Enfim, eu não era
na verdade a pessoa que ele queria e jamais poderia ou saberia fazer daquela
maneira. Os motivos da arte são outros. Não tenho nada contra estes outros
ramos, mas não é o que sei fazer. Não tenho nada contra o pop (aliás, adoro e
ouço muitos artistas pops do mundo independente), mas o que tenho a expressar
pede outra respiração. Afinal, o mundo é diverso. E precisamos disso tudo. Mas,
seria um desastre se fôssemos os poderosos do mundo do capital e impuséssemos o
samba para o mundo inteiro. Já pensou? Não haveria blues, nem jazz, nem nada
que não fosse a célula rítmica do samba tocando no mundo. Seria um assassinato
da mesma forma que exterminaram milhares de expressões artísticas do mundo. O
louco é que as pessoas não esquecem facilmente quem são e não perdem a
capacidade de entrar em contato com diversos estilos de arte musical. Quando a
gente faz projetos como o Pixinguinha percebemos a grandeza da ligação imediata
que se estabelece entre a gente e o público nas praças. De qualquer forma
seguiremos fazendo, eu e muitos colegas, de vários mundos, ritmos, vozes e
poesias diversas, a música que tem que ser feita. Acredito que sem a arte, o
principal da gente morre, acaba nossa possibilidade de ampliar o voo e sem
movimento não tem voo, não tem vida.
“Maryákoré” é um álbum imbuído de muitas
particularidades, dentre elas, a sua assinatura em todas as faixas, embora haja
a produção à quatro mãos em três delas. Como se deu essas parcerias?
CdeP - Sim, Maryákoré é resultado desta solidão maior, do mergulho neste modo de
respirar, cantar, tocar, escrever que é só nosso, de cada um. A primeira
parceria se deu quando li uma postagem da Déa Trancoso nas redes e já li cantando.
A letra dela fazia parte do que eu estava fazendo (acontece muito disso na
arte, nossas antenas captam coisas que se entrelaçam)! E a segunda se deu
quando o Rafael Altério me enviou uma melodia e escrevi a canção Remando Contra
a Maré. A melodia dele me levou para aquela menina vestida de rainha na festa
do congo. E é justamente “remando contra a maré” que liga fortemente a
Maryákoré à Consuelo de Paula das outras obras.
Ao
ouvir “Maryákoré” a primeira ideia
que me veio à cabeça foi a possibilidade de adentrar em uma espécie de portal
rumo a possíveis regressões sonoras e nessa “transcensão” há a possibilidade de
experiências sensoriais para além da audição. Foi essa a intenção quando você
começou a concepção do álbum? Como você o define?
CdeP - Ave! Não acredito que estou lendo isso. Você existe? Deixei fluir um
diálogo entre meu canto e o violão. Como o violão estava grudado em meu corpo,
veio algo que me deu essa sensação que você descreve também, mas ao mesmo tempo
a sensação de algo que eu nunca havia escutado. A conversa com algo de muito
antes com o presente e com a surpresa, o espanto. Isso me enlouqueceu (no bom
sentido). Parecia tão simples e tão estranho ao mesmo tempo. Acho que como a ideia
e o conceito eram os movimentos de amor e de luta misturados, resultou nisso...
Difícil explicar a criação, pois vem tudo rápido e junto: intuição, pensamento,
estética, necessidade de expressão, correnteza, razão, loucura, entrega,
melodia, letra, canto, arranjo, voz, violão, atitude, movimento, dança, corpo,
coração e alma. A gente faz, o artista faz, o resto não cabe mais a ele.
Quais
os projetos em vista para este ano que, como muitos costumam dizer, só começa
após o carnaval?
CdeP - Além de continuar realizando concertos sobre
maryákoré (adorei o show de lançamento que fizemos no SESC Belenzinho em janeiro
deste ano - e quero muito realizar outros – achei que a apresentação ao vivo
completou muito o que eu queria “dizer”), gravarei um CD com o João Arruda, o
Beira de Folha. E estou com saudades da intérprete, quero preparar algo neste
sentido (cantando outros autores) e enfim eu quero ser dirigida neste cd da
intérprete, não seria exatamente a continuação da minha obra (pelo menos é o
que sinto agora, mas vamos aguardar o que a inspiração irá ditar – eu
obedecerei rs). Continuamos também realizando o show em homenagem à Inezita
Barroso- eu, Maria Alcina, As Irmãs Galvão e Cláudio Lacerda (produção do
Thiago Marques Luiz e direção de Paulo Serau). Farei novamente o show Mamelucas
(eu, Cátia de França e Déa Trancoso). E quanto a continuação da minha obra
central, não sei dizer, às vezes acho sete um bom número para talvez encerrar
mesmo um imenso ciclo, mas já senti isso antes e estava errada, vieram ainda o
CD Casa, o DVD e CD Negra, o CD O Tempo E O Branco e Maryákoré. Maryákoré que
me deu um novo nome. Agora sou Maryákoré, Consuelo de Paula.
o sol
vai sumindo na curva do dia / ele cai do outro lado, na casa de lia / vou
saudar a gira do tempo ...vou cantar despedida ... até que o sol retorne da
casa de lia / com o cheiro da terra que os nossos olhos não alcançam / com
aromas de um novo dia / com aromas de um novo dia.
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