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terça-feira, 31 de março de 2020

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



O vento

A metáfora dos líquidos tem auxiliado no entendimento das relações afetivas contemporâneas. Pautadas em um tempo-espaço que escorrega entre os dedos (mutável e cambiante), as relações líquidas parecem ser a motivação mais sensível das canções do Los Hermanos.
Há sempre um sujeito desalentado e melancólico: saudoso de algo não vivido, mas que já se insinua como falta, ausência. Há sempre um sujeito diante da solidão humana e existencial. Mesmo quando há amor, e sempre há amor em algum nível, ele vem atravessado pelo interdito.
A canção "O vento", de Rodrigo Amarante, lançada no disco 4 (2005), não é diferente. Acompanhada por uma melodia triste, mas com respirações quentes, a letra parece dialogar com "Vento no litoral". O sujeito quer "descansar, chegar até a praia e ver se o vento ainda esta forte e vai ser bom subir nas pedras".
O vento na pele despoleta o pensar. Dito de outro modo, sentir o vento na carne é perceber o tempo: torná-lo presença material. Ora, na impossibilidade disso, só resta ao sujeito cantar a vida, pois só é possível estocar os sonhos e seus encantos, já que todo o jeito não se fixa.
"Sei que faço isso pra esquecer. Eu deixo a onda me acertar e o vento vai levando tudo embora". Para o sujeito de "O vento", o tempo traz e leva. Diante do reino das sereias - cantantes por excelência, o sujeito responde à voz que vem do mar.
O mar, que naturalmente estimula a reflexão, aqui é adensador do desassossego do sujeito da canção. Ou seja, diante da fartura das possibilidades (iconizada pelo infinito) o ser se recolhe, sem conseguir respostas para as inquietações interiores: por exemplo, por que o amor chega ao fim?
Ele deixa escapar um segredo: "se a gente já não sabe mais rir um do outro, meu bem, então o que resta é chorar. Perder a capacidade de "rir de si mesmo", algo imposto pelo malfadado, porque mal entendido e praticado, "politicamente correto", arrebenta (choque entre a água e a rocha) qualquer impulso mais positivo: reativo.
Sobra o desejo de que o amor possa renascer, depois, "bento de lágrimas", já que "a cada milágrimas sai um milagre", como Alice Ruiz e Itamar Assumpção entenderam.


***

O vento
(Rodrigo Amarante)

posso ouvir o vento passar
assistir à onda bater
mas o estrago que faz
a vida é curta pra ver
eu pensei que quando eu morrer
vou acordar para o tempo
e para o tempo parar
um século, um mês
três vidas e mais
um passo
pra trás?
por que
será?
vou pensar

como pode alguém sonhar
o que é impossível saber
não te dizer o que eu penso
já é pensar em dizer
e isso, eu vi, o vento leva
não sei mas sinto que é como sonhar
que o esforço pra lembrar
é a vontade de esquecer
e isso por quê?
(diz mais)

se a gente já não sabe mais
rir um do outro, meu bem
então o que resta é chorar
e talvez
se tem que durar
vem renascido o amor
bento de lágrimas
um século, três,
se as vidas atrás são parte de nós
e como será?

o vento vai dizer lento o que virá
e se chover demais a gente vai saber,
claro de um trovão,
se alguém depois sorrir em paz
(só de encontrar)


* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".




A MÚSICA E A DITADURA MILITAR: COMO TRABALHAR COM LETRAS DE MÚSICA ENQUANTO DOCUMENTO HISTÓRICO - PARTE 02

Por Bruno Paviani e Thaisa Lopes Ferreira



Resumo
Pretende-se neste artigo apresentar os resultados do trabalho realizado pelo PIBID História da Universidade Estadual de Londrina no Colégio Estadual Tsuro Oguido. Em nossa intervenção, que aconteceu na turma do 9º ano B, trabalhamos com a música enquanto fonte histórica. As músicas escolhidas foram dos compositores Raul Seixas e Zé Ramalho e a banda Legião Urbana. A partir da temática “Ditadura Militar”, a aula-oficina (BARCA, 2004) teve como prioridade trabalhar com as idéias históricas já apresentadas pelos próprios alunos. Para tanto aplicamos um questionário de conhecimentos prévios, uma vez que entendemos que nossos alunos já possuem um determinado conhecimento sobre o tema. Com esse material em mãos, preparamos nossa intervenção em sala de aula. Ao trabalhar com música como documento histórico, levamos em consideração a idade dos alunos, os gêneros musicais ao qual estavam acostumados e o nível de complexidade de discurso a que estão habituados. Ao estudarmos a música enquanto fonte histórica percebemos que essa não serve apenas para diversão direta ou indiretamente, as músicas retratam muito sobre a sociedade em que é produzida e são também instrumentos de crítica. Após essa intervenção, consideramos fundamental o uso de documentos durante as aulas de História. O documento torna a aula mais interativa e aproxima os alunos do trabalho do historiador.



Palavras-chave: Educação Histórica. Música. Ditadura militar. fonte histórica.



Música e a ditadura

Com o golpe de Estado de 1964, instalou-se no país, um Estado autoritário e ditatorial. A doutrina da Segurança Nacional traduzia as idéias do regime que se iniciava. A doutrina da Segurança Nacional resume-se basicamente segundo Germano, (1993) em “um estado permanente de guerra total, entre o mundo livre da civilização ocidental e cristã (capitalista) e o comunismo internacional e ateu”. Para Germano (1993) “guerra total’’ é a Guerra Fria, manter a ordem e se estabelecer de forma definitiva no poder eram os objetivos do governo militar, a tática de governar o país foram os atos institucionais. Os Atos Institucionais eram decretos do poder executivo e serviam como mecanismos de legitimação e legalização das ações políticas. A medida que os Atos Institucionais avançavam também avançava a severidade do regime, marcado por sua característica despótica, capaz de vetar os direitos que eram garantidos pela constituição brasileira, estabelecendo a opressão militar e policial e também o silêncio dos opositores. Com o ato institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968, instaurava-se no país a repressão e a censura aos meios de comunicações, música; movimentos oposicionistas ao regime passaram a ser caçados, inúmeros manifestantes foram perseguidos, muitos foram presos, outros pagaram com sua própria vida por estarem fazendo oposição ao regime A música foi um desses instrumentos de oposição, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Chico Buarque, Raul Seixas, foram alguns dos vários artistas brasileiros que compuseram suas canções fazendo crítica ao governo e principalmente contra a censura imposta através do AI- 5. As musicas que trabalhamos com nossos alunos foram músicas de protesto contra o contra a sociedade em que seus autores estavam inseridos, as musicas “Mosca na Sopa’’ (1973), “Metro linha 743’’ (1984) ambas de Raul Seixas;” Admirável Gado Novo” (1979), Zé Ramalho; “Que País é Esse” (1987) Legião Urbana.

Ele ia andando pela rua meio apressado Ele sabia que tava sendo vigiado Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro? Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá pro outro lado Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado! Disse: O prato mais caro do melhor banquete é O que se come cabeça de gente Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam Porque quem pensa, pensa melhor parado. Desculpe minha pressa, fingindo atrasado Trabalho em cartório mas sou escritor, Perdi minha pena nem sei qual foi o mês Metrô linha 743 O homem apressado me deixou e saiu voando Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando Três outros chegaram com pistolas na mão, Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz? Se é documento eu tenho aqui... Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí Eu quero é saber o que você estava pensando Eu avalio o preço me baseando no nível mental Que você anda por aí usando E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando Minha cabeça caída, solta no chão Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez Metrô linha 743 Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete Fui posto à mesa com mais dois E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado: Quem será este desgraçado dono desta zorra toda? Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais Mas o negócio aqui tá muito bandeira Dá bandeira demais meu Deus Cuidado brother, cuidado sábio senhor É um conselho sério pra vocês Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês Ah! Metrô linha 743 – Raul Seixas. – 1984

Raul Seixas quis fazer um disco lamentando a Ditadura e o atraso que ela causou no país, essa música foi lançada no final da ditadura ,toda a letra desta música versa sobre a censura em que os artistas estavam sujeitos, no qual o pensar era visto com preocupação, os cidadãos comuns também sofriam com o regime, grandes aglomerações logo eram dispersas, pois representavam grande perigo aos “ideais do Estado’’. 

Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele sabia que tava sendo vigiado
Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?
Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Disse: O prato mais caro do melhor banquete é
O que se come cabeça de gente que pensa
E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque quem pensa, pensa melhor parado
Desculpe minha pressa, fingindo atrasado
Trabalho em cartório mas sou escritor
Perdi minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743

O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três outros chegaram com pistolas na mão
Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneos
Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?
Se é documento eu tenho aqui
Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí
Eu quero é saber o que você estava pensando
Eu avalio o preço me baseando no nível mental
Que você anda por aí usando
E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Metrô linha 743

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha
E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete
Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete
Fui posto à mesa com mais dois
E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs
Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?
Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas o negócio aqui tá muito bandeira
Dá bandeira demais meu Deus
Cuidado brother, cuidado sábio senhor
É um conselho sério pra vocês
Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês
Ah! Metrô linha 743


Mosca na sopa – Raul Seixas. - 1973

Mosca na sopa, 1973, foi uma das primeiras músicas da carreira solo de Raul Seixas. A mosca nesta letra, embalado por sons de atabaques e berimbaus, deixa evidente que, já que sempre “há um obstáculo no meio do caminho’’ Seixas será aquele inseto indesejado que perturba os que estão no poder (militares). A letra mostra o jogo dialético contra os militares que são para ele o verdadeiro obstáculo, Raul Seixas deixa clara a sua insatisfação contra a censura, nos trechos” E não adianta vir me dedetizar [...] Porque você mata uma e vem outra em meu lugar’’[...] Eu to sempre junto de você/ água mole em pedra dura tanto bate até que fura’’


Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar

Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar

E não adianta
Vir me dedetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar

Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

-"Atenção, eu sou a mosca
A grande mosca
A mosca que perturba o seu sono
Eu sou a mosca no seu quarto
A zum-zum-zumbizar
Observando e abusando
Olha do outro lado agora
Eu tô sempre junto de você
Água mole em pedra dura
Tanto bate até que fura
Quem, quem é?
A mosca, meu irmão!"

Eu sou a mosca
Que posou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca
Que posou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

E não adianta
Vir me dedetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar

Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca
Que posou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar

Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar

Mas eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar


Admirável Gado Novo - Zé Ramalho. - 1979

Admirável Gado Novo, música de Zé Ramalho faz uma forte crítica social, tendo em vista que o Brasil passava por um dos períodos mais difíceis da sua história, a ditadura militar. Ramalho faz uma metáfora entre o gado e o povo, para ele vivemos em uma sociedade controlada, condicionada a viver em uma ordem estabelecida através do conformismo, fica claro na a letra da música que estamos sempre sendo guiados a caminhos já pré estabelecidos pelos que estão no poder, a ditadura com toda sua estrutura de poder nos faz isto muito bem seja pela força ou pelo seu discurso.

Ôôô, boi

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber

E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer

Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!
Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!

Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal
Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal

E correm através da madrugada
A única velhice que chegou
Demoram-se na beira da estrada
E passam a contar o que sobrou!

Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!
Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!

Ôôô, boi

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam essa vida numa cela

Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível
Não voam, nem se pode flutuar

Não voam, nem se pode flutuar
Não voam, nem se pode flutuar

Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!
Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!

Ôôô, boi


Que País é esse? – Legião Urbana – 1987

Ao compor está música Renato Russo, vocalista da banda Legião Urbana, faz uma canção de protesto mostrando os problemas políticos e sociais que envolvem nosso país, Russo faz um panorama geral sobre os problemas que envolviam o Brasil naquele período, cabe pensar que em 1987 estávamos saindo de uma ditadura militar, na qual enfrentamos perseguições políticas, as mortes de homens e mulheres que lutavam para a redemocratização do país, isto fica claro no trecho “Sangue anda solto Manchando os papéis e documentos fiéis’’ Outra questão que se pode trabalhar em sala de aula com esta música é mostrar aos alunos que a canção escrita em 1987 ainda pode retratar problemas sociais que enfrentamos como a corrupção algo que infelizmente vemos com freqüência nos meios de comunicação.

Nas favelas, no Senado
Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita a Constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

No Amazonas, no Araguaia-ia-ia
Na Baixada Fluminense
Mato Grosso, Minas Gerais
E no Nordeste tudo em paz

Na morte, eu descanso
Mas o sangue anda solto
Manchando os papéis
Documentos fiéis
Ao descanso do patrão

Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Terceiro mundo se for
Piada no exterior

Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendermos todas as almas
Dos nossos índios num leilão

Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?


Conhecimentos prévios e avaliação

Sobre o questionário de conhecimentos prévios e a avaliação, aplicados em sala de aula, o que fica nítido é que muitas vezes os alunos até entenderem o que foi proposto, o que foi visto em sala, a maior dificuldade encontrada é escrever, colocar no papel suas ideias. Eles têm uma enorme dificuldade de transcrever o que sabem, embora quando questionados dentro da sala de aula, participem e demonstrem que entenderam o conteúdo. Como já fora mencionado, o questionário de conhecimentos prévios fez-se necessário, uma vez que queríamos partir nossas aulas pelo que os alunos já tinham em mente sobre o tema. Responderam o questionário 29 alunos sendo 18 do sexo feminino e 11 do sexo masculino. Em resposta a pergunta sobre o que significava “Ditadura Militar”, a grande maioria não sabia explicar do que se tratava ditadura militar e se o Brasil já havia passado por uma. Alguns conseguiam estabelecer que se tratava de um governo militar, mencionaram sobre as torturas, mesmo que superficialmente. Na questão sobre a repressão, o que mais chamou atenção é que (apesar da maioria ter respondido que não sabia o que significava esse termo) alguns alunos relacionaram repressão à ordem, rigidez (essas respostas partiram mais do sexo masculino). Apenas uma aluna caracterizou como “Injustiça, eu acho”. Quando questionados sobre se já tinham ouvido dos pais, avós, enfim, de alguém, sobre o assunto, a maioria respondeu que não. Alguns alunos disseram que ouviram alguma coisa sobre o assunto, principalmente de seus avós. Quanto à atividade, foi proposto aos alunos que fizessem uma estrofe que descrevesse sobre como eles viam a sociedade atual, o espaço a qual estavam inseridos. Com essa atividade queríamos perceber se os alunos conseguiram entender a importância do documento para o trabalho do historiador e como ele é usado para o trabalho historiográfico, partindo do princípio que ao trabalhamos com documento estamos levando em conta a época em que foi produzido, ou seja, não é algo inocente, no qual não seja empregado algum juízo de valor. Ao produzirem suas próprias estrofes, colocando suas opiniões, os alunos entenderiam melhor quando se diz que um documento não é neutro. Embora alguns alunos tenham feito realmente uma estrofe, a grande maioria se ateve a descrever o Brasil como corrupto, uma sociedade sem respeito, violenta e que a tendência é sempre piorar. Foi perceptível pela analise das atividades que os alunos apresentam uma visão muito pessimista em relação ao espaço a qual estão inseridos, dentro e fora da escola. A crítica aos políticos também é bem perceptível. Apresentamos algumas das estrofes produzidas pelos alunos2 . Selecionamos algumas das narrativas dos alunos que consideramos mais pertinentes com a proposta que lhes fora dada3 . A visão negativa presente nas três narrativas que aqui transcrevemos, será percebida em quase todas as outras. Nenhum aluno fez uma consideração positiva relativa à sociedade atual:

“Nos dias passados havia muita guerra no Senado. No momento atual só há políticos roubando, muita corrupção.O mundo de hoje só há assassinato, mentiras, ninguém é bom o bastante (p/) serem pessoas de verdade.” (V.) 

Esta fala nos chamou muita atenção, uma vez que se trata de uma violência, da própria maneira como a polícia é vista por esta aluna e não sabemos ao certo se a aluna realmente foi uma testemunha ocular do fato ou apenas escreveu sobre algo que ouviu:

“O mundo que (nóis) vivemos é cheio de mentiras, falsidade, ninguém respeita ninguém, assaltos, assassinatos acontece toda hora e a polícia acha que tem que ficar de ‘fora’ agem quando quer, esse dias mesmo, mataram um ser humano, jogaram a viatura em cima do homem, que eles acham que roubaram a casa de um policial, fizeram e refém a mulher dele, na boa eu acho que eles deveriam prender o sujeito e (ñ) matar.” (G. R. A.)  
A aluna apresenta considerações da sociedade atual e do considera ruim hoje. Foi a única que citou drogas em seu texto:

“A sociedade está muito complicada, cheia de coisas ruins, como (álcool), (farinha), maconha, cigarro, e estão se perdendo no mundo, em (invez) de ir para a igreja rezar.” (G. S.) 

Considerações finais

Após essas análises, consideramos que é fundamental o uso de documentos durante as aulas de História. O documento torna a aula mais interativa, há nos alunos um maior interesse. E principalmente, o aproxima do trabalho do historiador. Com o uso da música, foi possível mostrar aos alunos um olhar sobre a sociedade em que estávamos estudando (“Ditadura Militar 1964-1985”). A partir desse tipo de documento é que possível se traçar um panorama do período que é estudado. Com as aulas, percebemos que os alunos se sentem mais estimulados a participar e interagir quando se sentem capazes de construir o próprio conhecimento. O professor, enquanto mediador deve estimular seus alunos a pensar, questionar o documento, tornando a aula mais dinâmica do que apenas se o professor expuser um documento e fizer seus próprios questionamentos a cerca do mesmo. Dessa maneira, entendemos nossa intervenção como positiva, pois tivemos receptividade por parte dos alunos. Eles participaram das aulas, se mostraram interessados, mesmo que minimamente. Apesar disso, percebemos ainda muitas dificuldades por parte dos alunos em entender como se trabalha com um documento e principalmente em tornar escritas as ideias que eles mesmos formam a cerca do assunto. Entendemos que este não é um trabalho apenas para três aulas, mas que deve ser agregada à prática do professor, como mais um instrumento para se trabalhar em sala de aula.


Referências Bibliográficas: 
ABUD, K. M. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de História. Caderno Cedes. Campinas, v. 25, n. 67, p. 309-317, set/dez. 2005.
BITTENCOURT, C. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. FRANCO, M. L. P. B.; NOVAES, G. T. F. Os jovens do Ensino Médio e suas representações sociais. Cadernos de Pesquisa, n. 112, p. 167-183, 2001
FREIRE, P. Ensinar é uma especificidade humana. In: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 29 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 91-146. NAPOLITANO. M. História e Música. História cultural da música popular brasileira. Belo Horizonte. Ed. Autêntica, 2001.
MORAES, J. G. V. de. História e Música: canção popular e conhecimento histórico. Revista Brasileira de História. São Paulo: Humanitas Produções. v. 20. n.39. 2000.
PEREZ, I. C. G. Estado Novo através da música: uma experiência em sala de aula. Curitiba: SEED- PR, 2008.
SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar história. São Paulo: Scipione, 2004.pag. 111-136 SIMAN, L. M. de C. O papel dos mediadores culturais e da ação mediadora do professor no processo de construção do conhecimento histórico pelos alunos. In: ZARTH, P. A. (Org.). Ensino de História e Educação. Ijuí: Ed. UNIJUÍ: 2004. Pag. 88


Letras Utilizadas:
SEIXAS, Raul. Metro linha 743. Disponível: http://www.vagalume.com.br/raul-seixas/metro-linha-743.html. Acesso 12/10/2011. SEIXAS, Raul. Mosca na Sopa. Disponível http://www.vagalume.com.br/raul-seixas/mosca-na-sopa.html. Acesso 12/10/2011. RAMALHO, Zé. Admirável Gado Novo. Disponível: http://www.vagalume.com.br/ze-ramalho/admiravel-gado-novo.html. Acesso 18/10/2011.
RUSSO, Renato. Que país é esse? Disponível. http://www.vagalume.com.br/legiao-urbana/que-pais-e-esse.html. Acesso 18/10/2011.

segunda-feira, 30 de março de 2020

PAUTA MUSICAL: MÁRIO REIS E DICK FARNEY – MODERNISTAS DE CARTEIRINHA - PARTE 02

O Dick Farney selecionado é o do samba-canção pós-guerra, transição para as harmonias inovadoras da bossa, em gravações de 1946 a 1952.

Abre o CD megaclássico ‘Copacabana’ [João de Barro/Alberto Ribeiro] de 1946, um divisor de águas com Radamés Gnattali arquitetando um arranjo de cordas [sob o comando do maestro Eduardo Patané], que incluía violinos, viola, violão, baixo e bateria, uma formação inusitada em relação ao tratamento dado então ao samba pelos regionais e mesmo orquestras de estúdio. No primeiro plano, uma percussão leve [prato-e-faca?] sustente o ritmo numa discrição que só era ouvida adiante, nos discos de João Gilberto. Outro ícone do cantor ronronante é a sussurrada [e lânguida] ‘Marina’[Dorival Caymmi].

“Copacabana” (João de Barro/Alberto Ribeiro) # Dick Farney e Orquestra de Cordas Eduardo Patané. Disco Continental (15.663-A) / Matriz (1509). Gravação (0206/1946) / Lançamento (agosto/1946).

Sem querer, Farney, exímio também ao piano, como demonstra nas faixas em que se acompanha, desvela o ritmo de passagem do Brasil caboclo interiorano [‘Barqueiro do São Francisco’ / ‘A saudade mata a gente’ / ‘Um cantinho e você’ / ‘Nick Bar’ / ‘Uma loura’ / ‘Somos dois’] que forjaria a Bossa Nova consequente.


Oscar Belandi / José Maria de Abreu / Braguinha / Alberto Ribeiro / Luis Antônio / Alcyr Pires Vermelho


Outra boa ação da coletânea é reunir alguns dos principais autores dessa transcrição musical, alguns já esquecidos, como Oscar Belandi e José Maria de Abreu, além do próprio João de Barro, o Braguinha, seu parceiro Alberto Ribeiro e mais Luís Antonio, Alcyr Pires Vermelho.


Mário Reis / Braguinha / Alberto Ribeiro / Lamartine Babo / João Gilberto / Sinhô


Voz pequena e sorridente, divisão impecável e um prenúncio do canto falado decupando as sílabas que balizaria a era do intimismo, Mário Reis deu a partida num projeto de MPB com cânones bem definidos. Sua estratégia de abordagem íntima dos temas funcionou tanto nas marchinhas sapeca: [‘Cadê Mimi?’/ Braguinha/Alberto Ribeiro] /‘Rasguei minha fantasia’ / ‘Joujoux et balangandãs’[ambas de Lamartine Babo, esta última regravada por João Gilberto], quanto em samba como ‘Cansei’/ ‘Gosto que me enrosco’ [ambas de Sinhô] e ‘Voltei a cantar’ [Lamartine Babo].


Em suas várias voltas [e retiradas], em 1939, 1960, 1965 e 1971, Mário Reis não se limitava a regravar o material antigo com orquestrações mais atualizadas. Em 1960, com a Bossa saindo da casca, mandou um Tom Jobim inédito que ficaria conhecido praticamente apenas na sua interpretação [Isso eu não faço]. Onze anos depois, o eleito do rigoroso estilista seria Chico Buarque. Dele registraria uma noviça ‘Bolsa de amores’, proibida pela censura [e não incluída no CD], que ele faria questão de não substituir no LP, deixando-o com uma faixa a menos. E uma surpreendente releitura do sucesso ‘A Banda’.

Em meio à fanfarra de parada militar [condizente, aliás, com o regime da época], Mário, num desempenho coloquial contrastando com o acompanhamento, recupera o lirismo da letra surrada por tantas regravações. Ao contrário da maioria dos astros, em seu último disco ele não estava em declínio, mas no auge do seu poder de recriar as composições alheias, tornando-se um parceiro de seus fornecedores contemporâneos ou posteriores.



*************


Fontes:
– Dicionário Cravo Albin / Verbetes: Mário Reis / Dick Farney.
– Fotomontagem: Laura Macedo.
– Site YouTube / Canais: “Adilson Flávio Santos”, “Gilberto Inácio Gonçalves”, “luciano hortencio”, “Eduardo Michels”, “Zemedela”, “George Kaplan”, “Alfredo Pessoa”, “1000amigovelho”, “Marcelo Maldonato”, “Luiz Gilberto de Barros Filho”.
-Tem mais samba: das raízes à eletrônica / Tárik de Souza – São Paulo: Editora 34, 2003 [Transcrição do texto do Jornal do Brasil, em 25/05/2001].

A MÚSICA E A DITADURA MILITAR: COMO TRABALHAR COM LETRAS DE MÚSICA ENQUANTO DOCUMENTO HISTÓRICO - PARTE 01

Por Bruno Paviani e Thaisa Lopes Ferreira




Resumo
Pretende-se neste artigo apresentar os resultados do trabalho realizado pelo PIBID História da Universidade Estadual de Londrina no Colégio Estadual Tsuro Oguido. Em nossa intervenção, que aconteceu na turma do 9º ano B, trabalhamos com a música enquanto fonte histórica. As músicas escolhidas foram dos compositores Raul Seixas e Zé Ramalho e a banda Legião Urbana. A partir da temática “Ditadura Militar”, a aula-oficina (BARCA, 2004) teve como prioridade trabalhar com as idéias históricas já apresentadas pelos próprios alunos. Para tanto aplicamos um questionário de conhecimentos prévios, uma vez que entendemos que nossos alunos já possuem um determinado conhecimento sobre o tema. Com esse material em mãos, preparamos nossa intervenção em sala de aula. Ao trabalhar com música como documento histórico, levamos em consideração a idade dos alunos, os gêneros musicais ao qual estavam acostumados e o nível de complexidade de discurso a que estão habituados. Ao estudarmos a música enquanto fonte histórica percebemos que essa não serve apenas para diversão direta ou indiretamente, as músicas retratam muito sobre a sociedade em que é produzida e são também instrumentos de crítica. Após essa intervenção, consideramos fundamental o uso de documentos durante as aulas de História. O documento torna a aula mais interativa e aproxima os alunos do trabalho do historiador.


Palavras-chave: Educação Histórica. Música. Ditadura militar. fonte histórica.




Introdução

Sobre o ensino de História, é preciso pensar em que conteúdos devem ser ensinados, o que será priorizado, de que maneira serão ensinados e com que finalidade. Ao definir isso, define-se o papel do professor em sala de aula e o papel que o ensino terá para os educandos. Os próprios questionamentos sobre o que ensinar e a maneira como isso será feito, remetem sempre a perguntas como o porquê ensinar História e sua importância para a formação do aluno. O ensino de História está relacionado à formação do cidadão e da construção de sua identidade. E por esta razão, tem se uma preocupação ao que será ensinado. É preciso entender a educação enquanto uma forma de intervenção no mundo. O que professor deve ter em mente é que seu curso não é transformador do mundo, mas o que acontece na escola é um momento em que se começa essa transformação. Em contrapartida, além de se pensar o papel do ensino, é preciso entender o papel do docente nesse processo. Para Paulo Freire (2004) em “Ensinar é um especificidade humana” a principal característica que um docente tem que ter é segurança quanto a sua atuação, sem que haja de maneira autoritária. O professor não deve contar com os conhecimentos prévios de seus alunos. É preciso dar liberdade ao aluno para que pense por si próprio, que construa seu conhecimento a partir de suas próprias ideias. O professor deve cuidar de suas atitudes dentro de sala de aula, uma vez que isso pode ajudar ou atrapalhar seu trabalho. Suas atitudes podem aproximar ou afastar o aluno. Por outro lado, o professor também deve estar atento de que maneira seus alunos o interpretam. As releituras que os próprios alunos fazem das atitudes do educador.
(...) se o professor estiver empenhado em participar numa educação para o desenvolvimento, terá de assumir-se como investigador social: aprender a interpretar o mundo conceitual dos seus alunos, não para de imediato o classificar em certo/errado completo/incompleto, mas para que esta sua compreensão o ajude a modificar positivamente a conceitualização dos alunos, tal como o construtivismo social propõe. Neste modelo, o aluno é efetivamente visto como um dos agentes do seu próprio conhecimento, as atividades das aulas, diversificadas e intelectualmente desafiadoras, são realizadas por estes e os produtos daí resultantes são integrados na avaliação (BARCA, 2004, p. 133).
Ensinar conteúdos é apenas um dos momentos da prática pedagógica. As ações do professor devem condizer com o que este fala em sala de aula. O professor deve cuidar para que sua autoridade não ultrapasse limites, que ele próprio não se perca em sua autoridade. Ao ouvir o aluno, o professor estabelece respeito a concepção de mundo do educando e facilita até o seu próprio trabalho. Para Paulo Freire (2004), priorizar as relações humanas é fundamental para o trabalho em sala de aula. Com todas essas cobranças, o professor ainda deve cuidar para que sua fala em sala de aula não soe aos alunos como uma doutrinação. É preciso sempre ter em mente que o professor não está em sala de aula com a função de ser o detentor supremo do conhecimento, que não deve agir como só suas ideias fossem válidas naquele espaço. Maria Laura P. Barbosa Franco e Gláucia Torres Franco Novaes (2001) farão um panorama de como se desenvolve as representações acerca da escola em “Os jovens do Ensino Médio e suas representações sociais”. Para tanto, as autoras partem de como está organizado o ensino, a formação dos professores. Uma deficiência a maneira como Novaes e Franco estruturam sua pesquisa, faz-se pensar no que deve ser levado em conta ao se estender não só o ensino de História, mas o papel que a educação deve exercer em uma sociedade. Embora as autoras partam do ensino médio, o trabalho também pode ser utilizado para outros níveis de ensino. As condições de trabalho dos professores também não são das mais fáceis. O professor tem que lidar com as más condições do espaço físico da escola, a falta de recursos e seu baixo salário. As autoras propõem que ao menos durante seu horário de trabalho, o professor tenha tempo para planejamento das aulas, interação com os alunos. Hoje em dia, as escolas já estão mais bem equipadas e o professor já tem um tempo destinado em sua carga horária para a preparação de aula. Mas isso ainda acontece de forma tímida, uma vez que a “hora atividade” ainda é pouca comparada a carga horária que o professor tem que cumprir. 

Para os alunos, a educação, a escola, está ligada a ascensão social, a uma vida melhor, a melhores salários. Esse tipo de pensamento vem dos próprios pais e é muito perceptível principalmente nos alunos que já trabalham. A escola é uma promotora de crescimento econômico e social para esses alunos. Diante de todas essas perspectivas, fica claro que uma das funções da escola ao final do ciclo escolar é preparar o aluno para o mercado de trabalho. E essa ideia acompanha os alunos desde seu primeiro momento escolar. A dinâmica escolar, muitas vezes, se compara a dinâmica do mercado financeiro. Infelizmente, enquanto a escola não assumir seu real papel, que é formação de jovens conscientes, capazes de refletir sobre a sociedade a qual estão inseridos. A escola deve encarar seus problemas, afim de que crie propostas coerentes com a sua realidade. O ensino ainda se mantém muito mecânico, apenas voltado para a memorização. As inquietações por parte dos alunos têm seu sentido, uma vez que as aulas são mais voltadas a decorar o conteúdo, proposto pelo livro didático. Não há uma apropriação do que eles já sabem de sua realidade, de seus conhecimentos para a aula, o professor deve considerar é que a criança é capaz de formular seus próprios conceitos, são capazes de entendê-los. Mais uma vez, para isso, o professor deve ter total compreensão da disciplina que está lecionando, de seus pressupostos metodológicos, teóricos e no caso da História, historiográficos. Para tanto, é preciso cuidar para a formação do professor, para que esta não seja tão rasa a ponto de não dar suporte ao profissional. São muitas as questões que permeiam o pensamento sobre a educação, e todas devem ser consideradas. Não se deve pensar a educação individualmente. A educação não deve ser fechada, mas se expandir para todas as discussões que possam ser realizadas a seu respeito. Tanto seu papel, quanto o papel do professor e do aluno devem sempre ser revistos, uma vez que isso vai se modificando com o tempo. Novas realidades criam novas necessidades e a escola, o professor e seus alunos devem estar preparados para essas possibilidades. Não somente a isso, mas se a educação deve exercer mesmo o seu papel de formadora de cidadãos conscientes, capazes de refletir a cerca de sua realidade, alunos transformadores, ela não pode ficar relegada a dominação de pensamento de determinadas camadas da sociedade, não se pode deixar levar pela doutrinação, função essa do professor, que deve estar consciente de que seu papel é de mediador do conhecimento e não “dono do conhecimento”. É deixar que o aluno por si só perceba que é capaz de entender conceitos, pelo menos a começar entender o mundo a partir se sua própria realidade.


A experiência do uso da música em sala de aula

Ao trabalhamos música como fonte devemos levar em consideração a maneira em que está sendo proposto em sala de aula, para que para os alunos não fiquem com um conhecimento vago, sem se realizar de fato uma reflexão sobre o que está sendo ensinado, ou seja, uso da música como fonte. Ao pensar a música como fonte histórica devemos considerá-la como um documento histórico, um fragmento de seu tempo, passível de ser explorada pelo historiador. De acordo com Circe Bittencourt (2004) o uso de documentos nas aulas de história justifica-se pelas contribuições que esse pode oferece ao educando:

(...) uma delas é facilitar a compreensão do processo do conhecimento histórico pelo entendimento que os vestígios do passado se encontram em diferentes lugares e fazem parte da memória oficial e precisam ser preservados como patrimônio da sociedade. Outra exigência para o uso das fontes históricas é o cuidado para com as diferentes linguagens. Os documentos como foi anteriormente apresentado, são produzidos sem intenção didática e criados por diferentes linguagens que expressam formas diversas de comunicação. Como recursos didáticos, distinguem-se três tipos de documentos: escritos; materiais ( objetos de arte ou do cotidiano, construções); visuais ou audiovisuais (imagens fixas ou em movimento, gráficas, musicais). (BITTENCOURT, 2004, p. 333)

Com a renovação historiográfica ocorrida no século XX com a Escola dos Analles, esta irá romper com a ideia que documentos históricos eram somente escritos e de cunho oficial, documento passar a ser todo e qualquer vestígio deixado pelo homem voluntaria ou involuntariamente (fontes iconográficas, orais, arqueológicas, escritas, música entre outros) cabe ao historiador narrar e dar “dar vida’’ ao documento, a partir das perguntas que este faz a fonte, sem desprezar a crítica ao documento e a preocupação em conhecer sua origem e o contexto em que foi produzido. “O documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder’’ (LE GOFF, 1996, p.545). Mas como podemos trabalhar com documento em sala de aula? Schmidt e Cainelli falam que o uso do documento em sala de aula parte do pressuposto que o trabalho com as “fontes históricas facilitam a familiarização com as formas de representação do passado e do presente habituando-o a associar conceitos históricos à analise que o origina e fortalecendo sua capacidade em raciocinar sobre a situação dada’’ os documentos não podem ser “tratados com um fim em si mesmo cabe nesta proposta de ensino professores e alunos estabelecerem um dialogo entre o passado e o presente, tendo como referência o conteúdo a ser ensinado’’ (SCHMIDT; CAINELLI, 2010, p. 94). Nesta proposta de acordo com as autoras o processo ensinoaprendizagem está pautado na mediação entre aluno e professor é preciso deixar claro que o uso de documento em sala de aula não pretende transformar o aluno em historiador mais sim motivá-los para o conhecimento histórico,de estimular suas lembranças sobre o passado. O uso do documento passou a ser instrumento didático porque ajudaria a tirar o aluno da passividade estabelecendo este contato com as fontes isto suscitaria a discussão deixando as aulas mais agradáveis tanto para alunos quanto para professores. 

A presença de outros mediadores culturais, como os objetos da cultura, material, visual ou simbólica, que ancorados nos procedimentos de produção do conhecimento histórico possibilitarão a construção do conhecimento pelos alunos, tornando possível “imaginar”, reconstruir o não vivido diretamente, por meio de variadas fontes documentais. (SIMAN, 2004, p. 88).

Para Napolitano as músicas têm sido muito utilizadas nas aulas de história, pois aponta para os problemas da sociedade em que seu autor está inserido. Além disso, para ele além da analise da letra da música que é de suma importância, o historiador “nunca deve separar a melodia da letra, pois apesar de a letra ser privilegiada nesses estudos sua melodia, a harmonia, o ritmo da canção influencia e muito na sua compreensão facilitando o entendimento do mesmo” (NAPOLITANO, 2001, p. 08). Segundo Moraes (2000) a música sempre fez parte da nossa vida, ela atinge a todos, os gostos musicais entre as pessoas são variados, ela segundo o autor pode ser utilizada como fonte para o ensino de diversas disciplinas escolares, no caso da história o autor nos chama a atenção no que tange ao entendimento de determinadas realidades da cultura popular. Para Perez (2008), mais do que entender a canção como documento, há que se considerar o trabalho com musica também como construção do conhecimento e conceitos levando o aluno a pensar, interpretar, determinado acontecimento histórico entendendo-o como parte de um processo de ensino – aprendizagem, não apenas como algo a ser memorizado. Para Kátia Abud: 

As letras de música se constituem em evidências, registros de acontecimentos a serem compreendidos pelos alunos em sua abrangência mais ampla, ou seja, em sua compreensão cronológica, na elaboração e re-significação de conceitos próprios da disciplina. Mais ainda, a utilização de tais registros colabora na formação dos conceitos espontâneos dos alunos e na aproximação entre eles e os conceitos científicos. Permite que o aluno se aproxime das pessoas que viveram no passado, elaborando a compreensão histórica, que vem da forma como sabemos como é que as pessoas viram as coisas, sabendo o que tentaram fazer, sabendo o que sentiram em relação a determinada situação (ABUD, 2005, p. 316) 

Com todas essas questões em mente, preparamos um projeto de aula – oficina para os alunos da 8ª série (9º ano) do Colégio Estadual Tsuro Oguido. O tema a ser trabalhado seria “A música e a ditadura militar: Como trabalhar com letras de música enquanto documento histórico”. Escolhermos estudar as letras das músicas “Metro 743”, (1984) “Mosca na sopa”, (1973) de Raul Seixas “Admirável gado novo” de Zé Ramalho (1979) e “Que país é esse?” Legião Urbana (1987). A maioria dos alunos já conhecia as músicas, mas nunca haviam pensado nelas como um instrumento de estudo para o historiador. Tomaremos como conceito de aula – oficina o utilizado por Isabel Barca (2004), no qual os alunos são os agentes de sua formação com ideias prévias e experiências diversas, cabendo ao professor ser o investigar social e o organizador de atividade que problematizam o tema que está estudando. Em um primeiro momento foi realizado um questionário de conhecimentos prévios como objetivo de investigar o que eles entendiam ou sabiam sobre a “Ditadura Militar no Brasil’, nossas ideias a cerca de como iríamos trabalhar dependiam do que esses responderiam. Como já estávamos no final do ano (novembro 2011), muitos alunos já se sentiam desmotivados e cansados de irem as aulas, fato que nos preocupou no início, bem como o fato de ser a primeira vez que estaríamos com a turma. Foram apenas três aulas de trabalho, mas já nos ajudou a traçar um perfil da turma e principalmente, situações que poderiam ser melhoradas para as próximas atividades, questões que deveriam ser aprofundadas. Basicamente, entramos na sala de aula com as dicas que a professora regente nos havia passado. Era uma turma tranquila, na medida do possível, não tivemos grandes problemas em trabalha o conteúdo, Os alunos eram participativos e foram receptivos a nossa presença. Conseguimos estabelecer um diálogo com a turma que nos possibilitou trabalhar algumas das questões mais pertinentes a cerca de documento e principalmente, no papel da música enquanto parte constitutiva do contexto histórico de sua as letras não são cópias fiéis do momento histórico ao qual foram escritas. Levando em consideração a idade e os possíveis gostos musicais, nosso recorte foi a Ditadura Militar, conteúdo que eles já haviam estudado com a professora regente da sala. Para tratar desse tema de uma maneira mais descontraída, e também mostrando aos alunos como trabalhar a música como documento histórico, e o que seria este tal documento; levamos três músicas do período da ditadura e uma música do período posterior da Ditadura, todas elas têm uma postura crítica a sociedade em que estão inseridas, a nossa intenção em levá-las foi mostrar o documento como algo palpável aos alunos de como as letras nos ajudam a traçar algumas características da época em que foi escrita. Já com a turma deste ano (abril de 2012) 9º B tivemos como dificuldade o fato desses alunos ainda não terem tido aula sobre a ditadura militar no Brasil por esse motivo foi necessário intervir com um rápido panorama sobre o que levou o país a ditadura, o que foi propriamente a ditadura, falamos a eles também sobre a repressão no regime militar, tudo isto de maneira geral usando as letras das músicas como tema principal das aulas. Antes mesmo de fazer esse panorama, realizamos um questionário de conhecimentos prévios uma vez que entendemos que os alunos, em algum momento, possam ter ouvido falar sobre o tema e até ter algum tipo de juízo de valor sobre o mesmo e a partir desse material, poderíamos estruturar nossa intervenção. De maneira geral, o que se percebe é que a maioria não sabia ao certo do que se tratava, alguns identificaram sobre a repressão, outros citaram uma novela do SBT, “Amor e Revolução” (2012), como o único lugar onde ouviram sobre o tema. Acreditamos, principalmente a partir dos questionários, que se fez necessário ter o conteúdo para se discutir do que as músicas falavam uma vez que sem esse suporte, nossa intervenção poderia ficar sem sentido para os alunos. A turma de maneira geral é bem participativa e agitada, no entanto, mostrou interesse pelo tema, principalmente nas letras das músicas, de maneira geral esses conseguiram perceber na letra da música uma crítica a sociedade seja ela atual ou não.

sábado, 28 de março de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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Geraldo Pereira

Baiana que entra na roda
só fica parada
não canta, não samba,
não bole nem nada
não sabe deixar a mocidade louca...
GERALDO PEREIRA, “Falsa baiana”

O mineiro Geraldo Theodoro Pereira, tal qual Wilson Batista, viveu da boemia, dos amores intensos e da busca desenfreada pelo reconhecimento de sua arte.
Corria o ano de 1955. O compositor, ambientado em Mangueira – onde foi aluno de violão de Cartola –, já sofria havia algum tempo de cólicas intestinais, evacuando sangue e com crises sistemáticas de vômito. Ainda assim não parava de percorrer o circuito etílico das noites cariocas. Em uma dessas noitadas boas, resolveu sair para conversar com o cantor Nelson Gonçalves, no bar Capela, situado na sua querida Lapa.
A noite parecia calma quando Geraldo e Madame Satã, famoso malandro da área, começaram um bate-boca. A discussão descambou para briga; o corpulento Geraldo levou um soco no rosto, tropeçou, caiu e bateu com a cabeça no meio-fio. Apesar de socorrido por amigos, não sairia com vida do Hospital dos Servidores da Prefeitura.
Antes desse dia fatídico para a música popular, a biografia de Geraldo Pereira registrava composições que consolidaram seu prestígio de atilado criador no âmbito popular. Em 15 anos de atividade, Geraldo revigorou o samba, com soluções harmônicas sofisticadas e originalidade melódica. Foi um dos mestres do que os pesquisadores chamam de samba sincopado. Segundo o estudioso da cultura negra e compositor Nei Lopes, o samba sincopado é “variante do samba-choro, de fraseado sinuoso, rico em notas”, estilo que, após as composições de Geraldo, teve vida nas obras de “Jota Cascata, Padeirinho, Luiz Grande e João Nogueira”.
Cantado por muitas vozes, Geraldo teve no intérprete Ciro Monteiro seu principal divulgador. Relevando as estripulias do compositor, Ciro foi sempre seu ombro amigo e chamado por ele de “padrinho.” Começou a gravá-lo em 1940, com “Acabou a sopa”, e foi o responsável pelo lançamento de dois dos seus maiores sambas, “Falsa baiana” e “Escurinho”, respectivamente primeiro e último sucessos da carreira de Geraldo Pereira.
Corroborando a sabedoria popular de que “filho bonito tem muitos pais”, existem diversas versões sobre a criação de “Falsa baiana”. A mais provável é a de que a música tenha sido inspirada no episódio em que Roberto Martins, compositor amigo de Geraldo, chegando horas atrasado a um baile, encontrou sua mulher sentada, vestida de baiana, na entrada. Para aliviar o clima, ele teria comentado: “Mas o que é isso? Você está parecendo uma falsa baiana.” Geraldo, que estava ao lado, memorizou o mote e dias depois compôs o maior sucesso de sua carreira.


Cabritada mal sucedida

O tema do cabrito sempre foi muito utilizado nos sambas cariocas. Além de cobiçado por sua apetitosa carne, o cabrito era capturado, pelos morros da cidade, para que seu couro fosse usado em pandeiros, surdos, cuícas... Monsueto e Jorge de Castro escreveram sobre “O couro do falecido”: “Um minuto de silêncio/ para o cabrito que morreu/ se hoje a gente samba/ é que o couro ele nos deu...” Gallotti, Magrinho e Fábio Barreto compuseram nos últimos anos “Cabrito dá bode”: “...Sou madeira de lei/ não tenho o rei na barriga/ onde tem cabritada/ convida o dono que é pra não ter briga/ corta bem os miúdos/ pra rechear a buchada/ não esqueça de esticar o couro/ pra incrementar a nossa batucada...” O popular Zeca Pagodinho fez sucesso com “Ai que conflito/ roubaram o cabrito do seu Benedito...”. Geraldo Pereira não passou incólume pela temática do cabrito saboroso e sonoro. Logo após
uma confusão na casa de seu amigo Bento, no morro da Mangueira, com a chegada da polícia – que acabou com a festa alegando que o cabrito havia sido roubado –, Geraldo compôs com Wilton Wanderley “Cabritada malsucedida”: “Bento fez anos/ e para almoçar me convidou/ me disse que ia matar um cabrito/ onde tem cabrito eu tou/ e quando o comes e bebes começou/ no melhor da cabritada/ a polícia e o dono do bicho chegou...”
“Escurinho” foi gravada em 1955, ano da morte de Geraldo Pereira, e é mais um exemplo de discórdia que acaba em samba. A letra conta a trajetória de um escurinho comportado, bom-moço, que sai pelos morros comprando brigas – à semelhança de certos “desafetos” de Geraldo: “O escurinho era um escuro direitinho/ agora está com a mania de brigão/ parece praga de madrinha/ ou macumba de alguma escurinha/ que lhe fez ingratidão.”
Cuidado, amigo leitor, para não confundir “Escurinho” com “Escurinha”, que o próprio Geraldo gravou em 1952. O sucesso desta última foi um fato raro na cultura musical da época, visto que ela praticamente não teve divulgação. A música se impôs pela qualidade. “Escurinha/ tu tem que ser minha/ de qualquer maneira/ te dou meu boteco/ te dou meu barraco/ que tenho no morro de Mangueira...”
Apesar de frequentar o Café Nice, o Capela e o Serrador com os amigos, Geraldo gostava mesmo era de beber sozinho em “pés-sujos” da Mangueira e da Lapa e nas quitandas do Engenho de Dentro. Na Mangueira tinha vários amigos e frequentou muito os sambas na casa de Alfredo Português, figura importante em sua vida e na própria comunidade. Com os amigos sambistas, circulava pelas gafieiras cantando suas próprias músicas. Ia do tradicional Elite Clube, na praça da República, até o charmoso Mimoso Manacá, no Centro da cidade de Niterói. 
O imbróglio da compra e venda de sambas também aparece nas relações profissionais de Geraldo Pereira. A começar pelo sucesso, ainda no início da carreira, de uma parceria com Wilson Batista, o samba de breque “Acertei no milhar”. A parceria duvidosa – para muitos a música é só de Wilson – teve enorme êxito na voz de Moreira da Silva e depois na de Jorge Veiga: “Etelvina (minha nêga)/ acertei no milhar/ ganhei 500 contos, não vou mais trabalhar/ Você dê toda roupa velha aos pobres/ e a mobília podemos quebrar/ Etelvina vai ter outra lua-de-mel/ você vai ser madame/ vai morar num grande hotel...”


Café Nice: “O maior mercado de música popular do mundo”

Na década de 1930, havia um lugar no Rio de Janeiro onde os compositores, cantores e músicos de rádio batiam ponto diariamente: o Café Nice. Situado na avenida Rio Branco, 174, tinha dois ambientes. Um mais requintado, onde se serviam lanches, chás e bebidas finas, e outro onde eram vendidos cafezinhos e médias com pão com manteiga, local preferido pela turma do rádio. Até fechar suas portas, em 1956, o Café Nice representou o ponto de encontro mais importante da música popular brasileira. Lá vendiam-se músicas, formavam-se parcerias, fechavam-se contratos. Cantor que não comparecesse ao Nice tinha dificuldade de renovar seu repertório. O mesmo ocorria com compositores, que sem frequentar o local não vendiam suas composições. No Nice imperava a já citada máxima de Sinhô de que “samba é igual a passarinho: é de quem pegar”. Veja o episódio relatado pelo jornalista e assíduo frequentador do café Nestor de Hollanda. Ao oferecer um motivo carnavalesco, “Quem tem culpa tem medo”, para Haroldo Lobo, este o alertou: – Não fale. A ideia é ótima! Se alguém ouvir, vai roubá-la. Parece até que você não conhece o Nice! Nestor olhou em volta e não achou nenhum compositor. Havia, adiante, em outra mesa, apenas um velhinho, inteiramente desconhecido, estranho ao meio. E comentou:
– Calma, Haroldo. Ninguém me ouviu.
– Até as paredes do Nice têm ouvidos para roubar ideias...
Tomaram o cafezinho, conversaram mais um pouco e decidiram ir para um lugar mais tranqüilo, a fim de terminar a parceria. Chegando à Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, rumaram para uma sala vazia. Logo à entrada, o compositor Zé da Zilda chamou-os:
– Vejam o tema que estou para o carnaval.
Cantou:
– “Quem tem culpa, tem medo...”
Haroldo perguntou, surpreso:
– Quem te deu essa ideia?
– Foi o pobre de um velhinho, que veio agora do Nice. Até larguei 20 cruzeiros de gorjeta...
Em entrevista ao Pasquim, Kid Morengueira (alcunha de Moreira da Silva) reconheceu que comprou de Geraldo Pereira outro samba de breque, o famosíssimo “Na subida do morro”, acrescentando seu chapeleiro Ribeiro Cunha na parceria:
“O PASQUIM: Ele vendeu pra você?
MOREIRA: Isso mesmo. Um conto e trezentos era dinheiro!
O PASQUIM: Você assinava contrato, como é que é?
MOREIRA: Era verbal. Geraldo Pereira era de briga, né? Se fizesse uma sujeira com ele, ele arrebentava o cara todo.
O PASQUIM: Não havia a hipótese de você dar o dinheiro e depois o sujeito engrossar?
MOREIRA: Não. O sambista real, quando ele dá a palavra, acabou. Não tem problema.”
A exemplo desta, muitas parcerias das músicas de Geraldo foram fictícias.
As letras de Geraldo Pereira contam boa parte de sua vida e os inúmeros amores que viveu, e lembram muitos dos principais cenários que frequentava: os trens de subúrbio, as gafieiras, as rodas de malandragem, as subidas sinuosas dos morros. Ouvir seus sambas, seja nas contemporâneas vozes de João Nogueira e Luiz Melodia – seus fãs incondicionais – ou mesmo nos redutos de samba da cidade que adotou como sua, nos remete ao alto-astral do festivo “Oh! Que samba bom/ Oh! que coisa louca/ Eu também tô aí, tô aí/ que é que há/ também tô nessa boca/ Eu neste samba/ vou me acabar/ num samba desses/ vale a pena a 
gente entrar”. Vale a pena entrar ouvindo Geraldo Pereira!


Samba de breque

O samba de breque surgiu na voz de Moreira da Silva, em 1936, com a música “Jogo proibido”, de Tancredo Silva. Caracterizado por paradas repentinas (breque) e pela introdução de comentários falados referentes ao tema cantado, o samba de breque teve também no cantor Jorge Veiga um dos seus grandes representantes.


Ary Barroso

Brasil, meu Brasil brasileiro
meu mulato inzoneiro,
vou cantar-te nos meus versos
ARY BARROSO, “Aquarela do Brasil”


“O menino iluminado hoje atravessa o mar/ com a minha Ilha, nessa Aquarilha do Brasil/ Marcou gerações, ligou corações”, cantam os versos da escola de samba da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, em homenagem a Ary Evangelista Barroso, um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos.
Nascido em Ubá, Minas Gerais, Ary Barroso ficou órfão muito cedo e aos 18 anos migrou para o Rio de Janeiro, trazendo na bagagem o rigoroso aprendizado musical que teve com sua tia Ritinha.
Tia Ritinha tocava piano nas sessões dos filmes mudos do cinema Ideal e ensinou as técnicas e teorias que sabia para o sobrinho, obrigando-o a fazer a escala musical no teclado com um pires no dorso da mão. Se o pires caísse, era castigado com vara de marmelo. Aos poucos os exercícios foram permitindo que o agitado Ary executasse Wagner, Chopin e Beethoven.
Vivendo nos frenéticos anos 1920 da cidade carioca, Ary deixou de lado a recém-iniciada faculdade de direito (só iria se formar em 1930, na turma de Mário Reis) e mergulhou no rico, complexo e diversificado universo cultural do Rio. Trabalhou no teatro de revista, nos cines e na radiodifusão. O múltiplo Ary foi pianista, compositor, radialista, comentarista, humorista e político. Tornou-se, no decorrer de sua história, devido à sua fortíssima personalidade, um polemista contumaz e crítico acirrado da vida pública brasileira.
Tocando em cines como o Odeon e o Palais, apresentando-se em orquestras ao estilo big band, escrevendo para o teatro musicado, Ary aprimorou sua musicalidade e passou a compor sambas bem batucados, com melodias grandiosas, orquestrais.
A música “Aquarela do Brasil”, composta no início de 1939 numa noite de chuva torrencial que obrigou o boêmio compositor a ficar em casa, foi seu maior sucesso, tendo sido registrada nas vozes de Francisco Alves, Tom Jobim, Elis Regina, Caetano Veloso, Bing Crosby e Frank Sinatra, entre outras dezenas de nomes. “Aquarela” virou praticamente o segundo hino nacional e acabou por levar seu autor para as trilhas sonoras dos filmes de Walt Disney que falam sobre o Brasil.
Foi nesse estilo de samba, classificado como de exaltação – com final apoteótico e versos que enaltecem nosso povo, nossas tradições e nossas riquezas naturais de modo ufanista, afinado com o período estado-novista de Vargas –, que Ary encontrou sua melhor performance. Logo vieram outras composições com a mesma temática: “Onde o céu é mais azul”, “Canta Brasil”, “Brasil moreno”. 
Vale registrar que foi Ary o compositor não baiano que mais cantou a terra de Caymmi e Jorge Amado. “No tabuleiro da baiana”, gravado em disco pela amiga Carmen Miranda, “Na Baixa do Sapateiro”, samba que fez parte do filme Você já foi à Bahia?, de Walt Disney, interpretada por Bing Crosby, e “Faixa de cetim”, gravada por Orlando Silva em 1942, fecham o ciclo das obras-primas de Ary sobre a terra de todos os santos.


A Pequena Notável

A portuguesa Maria do Carmo chegou ao Brasil com 18 meses de vida, em 1910. Em apenas 30 anos passou a simbolizar a exuberância tropical e ficou mundialmente conhecida como Carmen Miranda. Estreou em disco no ano de 1929 com o Trio Barros, cantando “Não vá simbora” e “Se o samba é moda”, ambas do compositor e violonista baiano Josué de Barros (seu padrinho musical). Em 1930, o compositor e doutor Joubert de Carvalho, encantado com a voz da “pequena notável”, como ficaria também conhecida, entrega-lhe a marcha-canção “Pra você gostar de mim”. O sucesso foi espantoso, e a marcha, que acabou conhecida como “Taí”, alcançou o montante de 35 mil cópias vendidas. Carmen foi acumulando sucessos, lançando músicas de Ary Barroso, Lamartine Babo, Cartola, Noel Rosa, Synval Silva e, sobretudo, Assis Valente, baiano que compôs músicas alegóricas próximas ao gosto da intérprete. O repertório de Carmen é tão forte na música popular brasileira que ainda pode ser apreciado nas vozes de Gal Costa (“Balancê”), Maria Alcina (“Alô, alô”), Marisa Monte (“South American Way ”) e Elis Regina (“Na batucada da vida”).
Na interpretação de “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi, Carmen lançou o figurino mundialmente famoso como símbolo do Brasil.
Fantasiada de baiana, usando um chapéu decorado com frutas tropicais, saltos altíssimos e cheia de maneirismos, embarcou com seu talento e com o Bando da Lua, em 1939, para os Estados Unidos, onde se tornou em pouco tempo uma atriz pop, recebendo um dos maiores cachês de Hollywood. Participou dos filmes Serenata tropical, Uma noite no Rio, Aconteceu em Havana, Copacabana e Romance carioca, entre outros.
Sua viagem representou, no plano político, maior aproximação dos norte-americanos com países ao sul do golfo do México. A pretensão dos EUA de dominar todo o continente já havia sido sugerida pela Doutrina Monroe, em 1823, com o lema “A América para os americanos”. No decorrer do século XX, sinônimos para essa doutrina não faltaram: Doutrina da Boa Parceria, Doutrina das Novas Fronteiras, Política da Boa Vizinhança.
Uma faceta pouco mencionada do Ary compositor é a de suas letras românticas, que tratam de desamores e desencantos, com imagens fortes e versos ágeis. As antológicas “Camisa amarela”, “Folha morta”, “As três lágrimas”, “Caco velho” e “No Rancho Fundo” – esta em parceria com Lamartine Babo – ilustram bem esse seu lado.
O locutor paulista Celso Guimarães foi o precursor, em 1933, na Rádio Cruzeiro do Sul, dos programas de calouros. O termo “calouro” tem origem nos trotes a que os veteranos do Grêmio xi submetiam os alunos novatos da Faculdade de Direito de São Paulo, e foi proposto a Celso Guimarães pelo compositor e humorista Capitão Furtado.
No Rio de Janeiro, o programa de calouros atinge seu ápice com Calouros em desfile de Ary Barroso. Ary criou o temível gongo, manejado a um sinal seu para desclassificar o candidato. Aumentando o clima de humilhação, os calouros passaram a ter que se fantasiar no período pré-carnavalesco. A audiência era espetacular, o que fez com que os novatos cantores de rádio obrigatoriamente passassem pelos concursos (a partir da década de 1960, os programas de calouros migrariam para a televisão).
Outra faceta importante de Ary foi sua atuação como locutor esportivo no rádio. A convite de Paulo Roberto, locutor de renome na época, Ary iniciou sua carreira substituindo Afonso Scola, que adoecera na véspera de um Fla-Flu, em 1935.
Torcedor do Fluminense até ser barrado um dia na porta do clube, Ary virou a casaca e se tornou um dos rubro-negros mais fanáticos da história do clube. Chegou, certa vez, a largar o microfone seis minutos antes do término da partida entre Vasco e Flamengo para comemorar o tricampeonato do seu Mengão. Outra característica inusitada era que, em meio ao barulho da torcida, Ary informava o exato momento em que a bola balançava a rede tocando uma gaitinha!


Pérolas dos calouros de Ary
Ary : Seu nome?
Calouro: Sebastião da Silva, sim senhor...
Ary : Que vai cantar?
Calouro: Não vou cantar, não senhor. Vou executar, em solo de pistão, o chorinho “Pára-quedista”. É preciso pandeirista...
Ary : Que venha o pandeirista...
Calouro (para o pandeirista): Atenção: sol maior...
Ary : Vai cantar o quê, meu filho?
Calouro: Um sambinha de autor desconhecido: “Aquarela do Brasil”.

A inauguração do Maracanã, para a fatídica Copa do Mundo de 1950, deveu-se muito ao combativo político Ary, que usou de toda a sua influência para que o projeto de um grande estádio de futebol virasse realidade na cidade do Rio de Janeiro.
Ary nos deixou cerca de 260 composições – mais da metade, sambas. Sua contribuição ao gênero é inquestionável, como bem sabe a escola de samba União da Ilha do Governador, aquela mesma que no ano de 1988 evoluiu no seu desfile cantando: “A gaitinha tocando... é gol/ a galera vibrando... Mengô/ Na homenagem veio a paz, a emoção/ Minha Ilha, risque agora/ a saudade nesse chão.”






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MANUSCRITO DE VILLA-LOBOS ESTÁ ENTRE RARIDADES ACHADAS POR VIOLONISTA

Uma peça foi localizada em Portugal e outra no Rio de Janeiro

Por Luciana Medeiros


Pesquisador localizou as obras " O Guitarrista Moderno" e "Canção do Poeta do Século 18"Divulgação / Ver Descrição


O violonista e professor Humberto Amorim, que também atende pelo apelido Indiana Amorim, localizou na biblioteca da Unirio a partitura manuscrita da Canção do Poeta do Século 18, de Heitor Villa-Lobos - dada como extraviada nos dois catálogos do Museu Villa-Lobos - e descobriu um periódico brasileiro sobre violão de 1857, O Guitarrista Moderno, numa aventura rocambolesca em Portugal para resgatar os únicos exemplares de que se tem notícia.

São achados que coroam a verdadeira obsessão do pesquisador, que abandonou o curso de Direito aos 19 anos para estudar violão no Rio de Janeiro e, junto com a paixão pela música, viu surgir um interesse cada vez maior pela pesquisa em acervos brasileiros atrás de raridades. 

— É um material raríssimo, do qual tive notícias quando fui pesquisador-residente da Biblioteca Nacional, entre 2015 e 2017 — conta. — Pensava-se que o primeiro periódico brasileiro sobre o violão datasse de 1928, mas, nos jornais, descobri anúncios de partituras desde 1810. São 80 anos de uma história submersa, quando o violão era protagonista nos saraus com transcrições operísticas e danças de salão burguesas — explica.

O periódico foi publicado pela Imprensa Imperial, a Felippone & Tornaghi, tamanha a força do material à época.

A "submersão" do instrumento como personagem da burguesia e a consolidação da imagem do violão como marca da malandragem se deve, segundo Amorim, a uma "guerra de narrativas". No olhar que prevaleceu, o violão de concerto brasileiro só surge nas primeiras décadas do século 19. 

— A partitura mais antiga que a gente conhecia até três anos atrás é de 1904, a inacabada Valsa de Concerto n° 2, de Villa-Lobos — afirma Amorim. 


Ele aplica o termo "reconstrução da musicologia" do instrumento no contexto dessa descoberta, que contradiz a noção tão bem representada pelo personagem Policarpo Quaresma de Lima Barreto ("a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!") e pelas histórias de prisões "só pelo sujeito ter calos nos dedos", lembra o pesquisador.

Trajetória da pesquisa


Os exemplares do Guitarrista foram encontrados em Portugal. 


— Nas dezenas de acervos aqui, não havia nada — lembra. — Quando me dei conta de que houvera edições portuguesas reproduzindo o periódico brasileiro, decidi percorrer os sebos de lá. 

Encontrou no Porto um método oitocentista, de Dionísio Aguado, encadernado com 11 edições da revista brasileira, "exemplares únicos no mundo", afirma. O preço era de EUR 3.000. Impossível: 

— Eu estava falido, com duas malas cheias de preciosidades. Abri meu contracheque e chorei. O colecionador acabou deixando por EUR 1.200, que peguei emprestados. Chorei de novo no aeroporto, já que não tinha mais um tostão para a bagagem, que acabou indo na cabine por generosidade da companhia aérea.

Amorim calcula ter encontrado provavelmente mais 20 mil títulos de 1950 para trás, de peças inéditas ou esquecidas. Já a descoberta da partitura para canto e violão de Canção do Poeta do Século 18, de 1953, saiu de graça, mas exigiu um mergulho nos arquivos da Fonoteca Pernambuco de Oliveira, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, herdeira do acervo do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico de Villa-Lobos, constituído em 1942 com a finalidade de produzir material para os programas de formação e apresentações na época do Estado Novo. 

— Chegaram partituras impressas e também manuscritos — explica Bárbara Ribeiro, a bibliotecária da instituição. — Ficamos, em julho, 10 horas por dia catalogando o material passivo, ainda guardado; e lá estava.

O extravio da peça envolve a entrega do único manuscrito por Villa-Lobos à cantora Cristina Maristany, à qual é dedicada, e a perda do original e da cópia feita pelo violonista Jodacil Damaceno. Restou a gravação, de 1967, de Damaceno com a cantora Ludna Biesek. 

— Cheguei a tirar a peça de ouvido, fiz uma partitura que circulou por aí — lembra Amorim, mas o original só agora apareceu.

Quero montar um centro cultural no Rio para abrigar meu acervo e promover concertos de violão.


HUMBERTO AMORIM

A Canção permanece na biblioteca da Unirio. Já os 11 números do periódico estão no estúdio de Amorim no Rio de Janeiro, que tem um sonho: 

— Assim que me recuperar financeiramente, quero montar um centro cultural no Rio para abrigar meu acervo e promover concertos de violão. O Guitarrista é talvez o material mais raro da coleção, mas tenho centenas de raridades da primeira metade do século 19 — diz Amorim. 

Com dois livros publicados, entre eles Heitor Villa-Lobos e o Violão,publicado pela Academia Brasileira de Música, o sonho tem data de validade: se não conseguir o espaço em três anos, vai doar tudo para uma das principais bibliotecas musicais do Rio, as da UFRJ, a da Biblioteca Nacional ou a Fonoteca, na Unirio.