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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

QUANDO O MENOS É MAIS

A soma de dois talentos e a arte de transformar a sutileza

Por Bruno Negromonte


Resultado de imagem para Márcia Tauil E Melissa Mundim

Há uma frase bastante interessante que diz: "Ela procurava flores sem saber que a primavera morava dentro dela". Analogamente esses dizeres caem como uma luva para a abordagem de hoje. Sem firulas sonoras ou qualquer coisa do gênero, a simplicidade é palavra de ordem neste projeto encabeçado por Márcia Tauil e Melissa Mundim. Se na frase é preciso imergir em si para perceber a primavera, no álbum "Melhor Agora" não é diferente... para tomar conhecimento da riqueza sonora em nosso país basta mergulhar em nossas entranhas e perceber que a nossa identidade cultural é composta de modo muito singular e singelo. Uma riqueza que advém da sutileza, substantivo tão em desuso nos dias de hoje, mas que nunca saiu de moda. O álbum inicia-se com os dois pés nos rincões do Brasil. O xote "Bagunça no balaio" (que conta com a participação de Kiko Klaus) não apenas proporciona essa imersão como também possibilita apresentar de modo claro a proposta do álbum. O álbum segue e com ele um passeio por aquilo que há de mais genuíno em nossa cultura como é possível perceber em canções como "Coração de árvore" e "Sabiá de laranjeira" e "Coração caipira". Não menos relevante no projeto, canções como "Aqui eu fico" e poema "Falópia" entrelaçam-se ao projeto corroborando para a unidade do álbum. O álbum segue com canções como "Primeiro verão", "Cardamomo", "Abre casa", "Gato de lua", "Corpo morada", "Hoje tenho 3 anos" entre as demais que completam "Melhor Agora" e atestam em definitivo que o menos pode ser muito mais.



Numa produção independente que passou pelo tripé Minas-Brasília-São Paulo (mais especificamente Mococa, onde Márcia tem raízes familiares e é Cidadã Mocoquense), o álbum arranjado por Eric Furlan, conta com a honrosa contribuição do violeiro Ivan Vilela e do percussionista Fred Selva – duas gerações distintas de instrumentistas brasileiros que marcam o tempo por onde passam. Assim, na contramão mercadológica, a parceria cantou sua aldeia e investiu na produção de uma MPB particular e, em tempos imediatistas impulsionados pelo mínimo esforço de tendências virtuais, traz, cuidadosamente, no arremate do produto, a sensação tátil do folheio de um encarte cifrado e adicionado de poemas bônus que envernizam o conceito da obra. Definitivamente, um disco-livro que proporciona ao público uma audição com sabor de sarau: Reproduzindo o clima de um encontro com boas lembranças, a poetisa, que também assina a produção do trabalho, sempre simpatizada por artesanias, interpreta dois de seus textos e lança mão de pequenos áudios do acervo de família para registrar no álbum um rastro de afeto.


Márcia Tauil é natural de Guaxupé (cidade mineira localizada a pouco mais de 470 km da capital Belo Horizonte) como já registrado aqui mesmo em nosso espaço é uma artista que vem em corpo, alma e verdade ao longo de duas décadas de carreira construindo um sólido caminho pautado na qualidade de repertório e interpretações marcantes. Cantora, compositora e professora de canto, Tauil traz em sua trajetória artística além deste álbum aqui abordado mais alguns a exemplos do "Águas da Cidade" (1999), "Sementes no Vento" (2002), "Elas cantam Menescal" (com Roberto Menescal, Cely Curado, Nathália Lima e Sandra Duailibe), "Música Verde" (com Jane Duboc, Vânia Bastos, Milton Guedes e outros) e "Reginaldo Mil e parceiros na voz de Márcia Tauilde 2018. Em todos estes projetos há diversas manifestações de reconhecimento por parte da imprensa especializada, além de uma plena demostração de habilidade em tecer habilmente vigorosos adjetivos que adornos a uma arte genuína, regida por uma tônica maior onde destaca-se a elegância e a suavidade de uma voz a serviço de uma técnica impecável que sem dúvida alguma a alavanca para um papel de destaque dentro do atual cenário musical brasileiro.

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Já Melissa Mundim é uma mineira nascida na capital Belo Horizonte e autora dos livros "Banzo Branco" (2012) e "P’Rosa gallica" (2014). A música surgiu em sua vida antes mesmo do lançamento destes dois livros já citados quando a poetisa teve a sua primeira letra tornada samba pelo compositor mineiro Mestre Jonas por volta do ano de 2010. Esse primeiro passo dado acabou fazendo-a trazer a música para a sua vida em definitivo. Vale o registro de que a poetisa e compositora começou a dar os seus primeiros passos no universo das letras sob forte influência do seu avô materno, um poeta amador e "caseiro" e que, por causa da "pouca vista", tinha por hábito passar os dias aposentados junto a um gravador portátil registrando seus versos para apresentar às visitas - seu passatempo favorito. Entregue às influências da poesia afromineira publica seu primeiro livro intitulado "Banzo Branco", em 2012. É neste registro literário que ao render homenagens ao Mestre Jonas acaba por ter o empurrão necessário para que seus papéis saiam das gavetas e encontre novos compositores que trariam melodia à sua obra como é o caso desse encontro e dessa perfeita sincronia agora registrada e eternizada em disco com Tauil.

"Melhor agora" é uma colcha de retalhos brasileiros. Um cartão-postal onde nele há registros de coisas simplórias, mas de fundamental importância para se conhecer o âmago da canção feita no Brasil. "Melhor agora" é vasto, rico e singular dentro de suas especificidades... múltiplo, mostra-se canção de chita nordestina com remendos de brim chamamé gaúcho; é jazz, chorinho e maxixe; É a simplicidade de Manoel de Barros somada a poesia cosmopolita de Joaquim Cardozo ou são os rústicos tambores em sintonia com a floresta. É tanta coisa dentro de uma simplicidade absurdamente encantadora que sintetizar de modo prático é coisa praticamente impossível. Suas raízes não o impediram de expandir-se, de abarcar um universo sonoro peculiar, onde a máxima de Leon Tolstoi de cantar a própria aldeia para tornar-se universal vigora. Liberta de amarras, Márcia Tauil Melissa Mundim navegam de modo uníssono e definitivo pelos distintos gêneros o qual se aventuraram ao longo das dezoito faixas que compõem álbum. Sabem coser cada fio que compõem os gêneros presentes sem perder a coerência, a unidade.
Mais do que recomendado, "Melhor agora" não é apenas uma boa pedida, mas uma ode de amor a um país que traz consigo muito mais além daquilo que é apresentado diariamente nos grandes canais midiáticos. Ouvir tal projeto e canções como "Coração Caipira" nos faz aguçar a sensibilidade e perceber o quão é rico a nossa cultura e o quanto se faz necessário a resistência em preservar a memória cultural. Em tempos de cultura monocromática, vale conhecer, ouvir e reouvir álbuns como este onde não apenas a nossa identidade faz-se presente, mas acima de tudo reascende a chama do nosso orgulho ao nos proporcionar pepitas sonoras que só no Brasil é possível encontrar. 


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