A Guerra de Canudos
Imortalizado no romance Os Sertões, do escritor Euclides da Cunha, o conflito de Canudos eclodiu no interior da Bahia e manchou de sangue a história da recém-proclamada República brasileira. Comandados por Antônio Conselheiro, líder messiânico cuja pregação unia a crítica social à salvação da alma, milhares de sertanejos se reuniram em Canudos para viver em terras comunitárias com leis e governo próprios. Com uma qualidade de vida revolucionária para a região, Canudos atraiu centenas de nordestinos pobres, despertando a ira dos grandes fazendeiros, da Igreja e das elites políticas. Em 1897, o governo do presidente Prudente de Morais mandou tropas do Exército para exterminar por completo o arraial. Morreram mais de 15 mil pessoas em uma tragédia sem precedentes no país. Um exemplo da memória de Canudos em nossa história é o samba-enredo da Em Cima da Hora, escola de samba do Rio de Janeiro, escrito por Edeor de Paulo 79 anos depois do fim da guerra, relembrando os bravos sertanejos e seus ideais de um mundo melhor, e muito cantado até hoje:
“Marcado pela própria natureza/ o Nordeste do meu Brasil/ Oh! solitário sertão/ de sofrimento e solidão/ A terra é seca/ mal se pode cultivar/ Morrem as plantas/ e foge o ar/ A vida é triste nesse lugar/ Sertanejo é forte/ supera misérias sem fim/ Sertanejo homem forte/ dizia o poeta assim/ Foi no século passado/ no interior da Bahia/ um homem revoltado com a sorte/ do mundo em que vivia/ ocultou-se no sertão/ espalhando a rebeldia/ se revoltando contra a lei/ que a sociedade oferecia/ Os jagunços lutaram/ até o final/ defendendo Canudos/ naquela guerra fatal.”
Tia Ciata e Mário de Andrade
Um dos papas do modernismo brasileiro, o escritor, musicólogo, folclorista e pianista Mário de Andrade retratou em seu principal romance, Macunaíma, o herói sem caráter, uma cerimônia de macumba na casa de Tia Ciata. Aliás, segundo o depoimento de um neto de Ciata, foi a habilidade da baiana com orixás que curou a perna do presidente Venceslau Brás. Ela era Iy á Kekerê, principal auxiliar do pai-de-santo em um dos terreiros de maior prestígio no Rio, o de João Alabá. Conta-nos Mário de Andrade: “Era junho e o tempo estava inteiramente frio. Amacumba se rezava lá no Mangue no zungu da Tia Ciata, feiticeira como não havia outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, toda essa gente e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga feita de cera da vespa tatucaba e raiz seca de assacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo pro chão de terra.”
Caninha
“Samba de morro não é samba é batucada, é batucada, oi...”
CANINHA E HORÁCIO DANTAS, “É batucada”
José Luiz de Moraes, o mais antigo dos sambistas da primeira leva, ficou conhecido no meio musical por Caninha. O apelido teve origem na infância, quando o menino negro vendia roletes de cana nos arredores da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil para sobreviver.
Ao estudar cavaquinho com o músico Adolfo Freire, passou a frequentar reuniões de samba nas casas das tias Dadá e Ciata. Tornou-se conhecido como compositor após a criação do maxixe “Gripe espanhola”, em 1918, no exato momento em que a gripe tornava-se epidemia, obrigando repartições públicas, cinemas, teatros e colégios a fecharem suas portas para evitar o contágio.
Apesar do caos social, com milhares de mortes causadas pela epidemia, a composição de Caninha foi muito bem divulgada na Festa da Penha, onde os sambistas lançavam suas músicas para aferir-lhes a popularidade. Aliás, a Festa da Penha era a principal festa popular carioca fora do carnaval. Originada no século XVIII para comemorar o dia da Natividade de Nossa Senhora, aos poucos foi deixando de ser uma festa branca e católica para ir assumindo uma feição mais afro-brasileira. Nos fins de semana de outubro, na Penha, as tias baianas vendiam os mais variados produtos. A festa, em que conviviam os tambores brutos do zé-pereira, os choros, o maxixe e o samba, transformou-se no principal palco de encontro das classes sociais no Rio de Janeiro.
Muitas músicas de boa aceitação eram ali pinçadas por gravadoras. Heitor dos Prazeres, sambista do qual falaremos mais adiante, frequentador assíduo da Festa da Penha, dizia que “naquele tempo não tinha rádio, a gente ia lançar música na Festa da Penha, a gente ficava tranqüilo quando a música era divulgada lá, que aí estava bem, que era o grande centro. Eu fiquei conhecido a partir da Festa da Penha”.
Em um dos concursos musicais da festa, Caninha derrotou o compositor Sinhô com a marcha “Me sinto mal”, gerando uma rivalidade entre ambos que permaneceu até a morte abrupta de Sinhô em 1930. Três anos depois da morte do “Rei do Samba”, Caninha ganhou o concurso oficial de músicas carnavalescas com “É batucada”, feita em parceria com o jornalista Horácio Dantas (cujo pseudônimo era Visconde de Bicoíba) e gravada por Moreira da Silva acompanhado pelo grupo Gente do Morro (liderado pelo flautista e compositor Benedito Lacerda).
Rancheiro tradicional, Caninha freqüentou os ranchos do Dois de Ouro, Reis de Ouro, Rosa Branca, União dos Amores, Balão de Rosa e Recreio das Flores, do qual acabou sendo o diretor de canto. Deixou-nos também as composições “Quem vem atrás fecha a porta”, “Ninguém escapa ao feitiço”, “Essa nega qué me dá” e “Rosinha”.
João da Baiana
“Batuque na cozinha
sinhá não quer
por causa do batuque
eu quebrei meu pé.
Não moro em casa de cômodo, não é por ter medo não,
na cozinha muita gente sempre dá em alteração”
JOÃO DA BAIANA, “Batuque na cozinha”
Carioca filho de migrantes baianos, João Machado Guedes fez parte do que o compositor Martinho da Vila chamou de “santíssima trindade da música brasileira”: João da Baiana, Pixinguinha e Donga. Filho de Tia Perciliana, uma das famosas baianas da Cidade Nova, onde foi criado, João notabilizou-se por popularizar o pandeiro no samba e por ser exímio ritmista no prato-e-faca, herança de sua formação na tradição baiana.
João foi um personagem da cidade do Rio de Janeiro. Funcionário da Estrada de Ferro, recusou o convite dos parceiros Pixinguinha e Donga para realizar a primeira turnê internacional de um grupo popular no Brasil – os renomados Oito Batutas. Preferiu a estabilidade do emprego, mas manteve intensa atividade musical. Fez parte dos grupos do Malaquias, do Louro, do Moles, do Alfredinho no Choro, dos Diabos do Céu e da Guarda Velha, este organizado por Almirante.
Atuou em diversas rádios como ritmista e compôs sua primeira música em 1923, “Pelo amor da mulata”, seguida dos sucessos “Cabide de molambo”, “Patrão, prenda seu gado” e “Batuque na cozinha”. Como o samba ainda estava procurando seu espaço na sociedade, era muito comum os músicos serem presos pelo simples fato de portarem um instrumento.
Certa noite, João da Baiana foi convidado para ir a uma festa no palácio do senador Pinheiro Machado, um dos mandachuvas da política na época. Acabou não comparecendo por ter sido preso pela polícia na Festa da Penha. Acusação: levava um pandeiro a tiracolo. Dias depois, o todo-poderoso senador quis saber por que João não aparecera em sua festa. Sabendo da história, Pinheiro Machado mandou fazer um pandeiro na loja Cavaquinho de Ouro, do seu Oscar, com a dedicatória “A minha admiração, João da Baiana – senador Pinheiro Machado”. Coincidência ou não, o fato é que João nunca mais foi importunado.
“Peganachaleira”
O político gaúcho Pinheiro Machado, eleito diversas vezes para o Senado, era um dos homens mais influentes nas primeiras décadas da República.
Habilidoso, Pinheiro Machado residia no morro da Graça, uma sombra constante das decisões do Palácio do Catete (onde ficava o presidente).
As reuniões na casa do senador ficaram famosas na época. Regadas a chimarrão, contavam com a presença de muitos políticos, empresários, juízes, candidatos a cargos públicos – enfim, uma turma de bajuladores que não se furtavam a pegar no bico da chaleira para sentir se a água ainda estava quente. O pega-na-chaleira ficou popular como sinônimo de bajulação, igual a “chaleirar”. Sintonizado com os acontecimentos da época, o cantor, ator e compositor Eduardo das Neves fez uma marcha que dizia: “Neste século de progresso/ nesta terra interesseira/ tem feito grande sucesso/o tal pega na chaleira.”
A polca de Juca Storoni, “No bico da chaleira”, também fez muito sucesso no carnaval de 1909, brincando com a bajulação: “Iaiá me deixe subir nessa ladeira/ eu sou do grupo que pega na chaleira”. Com o assassinato do senador, em 1915, deram o nome de Pinheiro Machado à antiga rua Guanabara, onde começava a subida para sua casa, na qual passou a funcionar o Colégio Sacré Coeur.
Esse episódio é um bom exemplo de como a repressão à cultura popular caminhava pari passu à sua aceitação. Reprimir – ação da polícia – e permitir – atitude protetora do senador da República – eram duas faces da mesma moeda na sociedade brasileira.
Iniciando uma tradição de ligação do samba com a pintura primitiva, João foi o precursor de uma dinastia que passa por Heitor dos Prazeres, Alcy r Pires Vermelho, Dorival Caymmi, Monsueto, Nelson Sargento e Guilherme de Brito, entre outros. Neto de escravos, macumbeiro reconhecido e temido na cidade, cultor da tradição afro, sempre elegante, com um cravo na lapela, João foi recolhido, aos 85 anos, à Casa dos Artistas em Jacarepaguá, onde faleceu no ano de 1974.
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