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sábado, 25 de janeiro de 2020

ALMANAQUE DO SAMBA (ANDRÉ DINIZ)*

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O choro

Se no meio do samba há um intenso debate sobre sua origem, em relação ao choro não há dúvida: ele é carioca. Apareceu na cidade do Rio de Janeiro por volta de 1870, ligado ao crescente número de músicos nos segmentos da classe média baixa. Os chorões, nome que se dá aos músicos do gênero, eram um dos principais canais de divulgação da música do povo.

Esses grupos de instrumentistas populares executavam, ao sabor da cultura afro-carioca, os gêneros europeus mais em voga. O jeito de frasear foi cultuando, nos cavaquinhos, violões e flautas, a base do choro e os primeiros passos de nossa musicalidade. As constantes apresentações dos chorões – também conhecidos como grupos de pau e corda – nas casas medianas do Império e nos saraus da elite, sempre com improvisações e desafios entre os instrumentistas solistas e de acompanhamento, foram consolidando o estilo pela cidade.

O flautista Joaquim Antônio Callado, considerado o “pai dos chorões”, os pianistas Ernesto Nazaré e Chiquinha Gonzaga, e o maestro Anacleto de Medeiros, fundador da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, compuseram quadrilhas, polcas, tangos, maxixes, xotes e marchas, estabelecendo os pilares do choro e da música popular carioca da virada do
século XIX para o XX. Aos poucos, através das bandas de música e do rádio, o choro foi ganhando todo o território nacional.



Polca

A polca foi o mais eletrizante e revolucionário gênero surgido no século XIX. Originária de uma dança da Boêmia, região dos Países Baixos, de compasso binário e melodia saltitante, caiu no gosto de todos os segmentos da sociedade brasileira, pois, além de comunicativa, punha os corpos dos dançarinos tão juntinhos que chegava a dar calafrios. Executada por toda a cidade, a polca acabou por fundir-se com o lundu, de origem africana, influenciando o
surgimento de novas expressões musicais no Rio de Janeiro.


Alfredo da Rocha Vianna Filho, mais conhecido como Pixinguinha, foi herdeiro de toda essa tradição musical. E foi muito além. Consolidou o choro como gênero musical, levou o virtuosismo na flauta às últimas consequências, aperfeiçoou a linguagem do contraponto (melodia secundária que dialoga com a principal) com seu saxofone e organizou inúmeros grupos musicais. Como arranjador, deu identidade à música popular da primeira metade do século XX e foi, sem sombra de dúvida, o maior compositor de choro de todos os tempos. A se julgar pela opinião do poeta Vinicius de Moraes, parceiro do chorão em “Lamento”, ainda está para nascer alguém que fale mal de Pixinguinha: “Pixinguinha é o melhor ser humano que eu conheço. E olha que o que eu conheço de gente não é fácil.”

Do alto de seus mais de cem anos de vida, o choro constitui-se, segundo os pesquisadores, em um estilo altamente refinado. Os chorões sempre foram grandes instrumentistas da música brasileira: os 7 cordas Dino e Raphael Rabello, os bandolinistas Jacob do Bandolim (depois de Pixinguinha, o maior nome do choro) e Luperce Miranda, os violonistas Meira e Baden Powell, os clarinetistas Abel Ferreira e Paulo Moura, os flautistas Benedito Lacerda e Altamiro Carrilho e os cavaquinistas Waldir Azevedo e Garoto são alguns exemplos de músicos que ficarão para sempre em nossa história musical.

É muito difícil encontrar um grande compositor de samba que não tenha relação com o choro. Alguns são sambistas-chorões, como Nelson Cavaquinho, outros, chorões-sambistas, caso de Benedito Lacerda, e em menor número estão aqueles que conseguem navegar nos dois mundos com igual naturalidade. Entre estes destaca-se o nome de Paulo César Batista de Faria, ou Paulinho da Viola. Podemos considerar que uma parte considerável da produção musical dos compositores de samba dialogou com a linguagem do choro.


Alô regional, toca aí alguma coisa!

O avanço da urbanização, com o acelerado processo de desenvolvimento tecnológico e a diversidade social, levou os românticos músicos populares a uma maior profissionalização de suas atividades. Muitos deles, que antes tocavam nas festas da cidade, foram trabalhar nas principais rádios do país, como a Mayrink Veiga e a Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, a Record, em São Paulo, a Rádio Clube, em Pernambuco, e a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Nasciam então os regionais do rádio, assim denominados pela associação de sua instrumentação com as músicas de caráter regional.
Cavaquinho, violões, bandolim, percussão e um instrumento solista compunham a formação básica de um regional. Os regionais eram, de certa maneira, a forma orquestral que caracterizou o samba na Era do Rádio.
Houve uma safra extraordinária deles, como o de Rogério Guimarães, o de Dante Santoro e o de Antônio Rago. 
Mas devemos destacar, pela importância histórica de seus músicos, o do flautista e compositor Benedito Lacerda e o do cavaquinista Canhoto.
Por volta de 1966 o músico Jacob do Bandolim, instrumentista que chegava à perfeição, compositor melódico e harmônico e eterno nome do choro, resolveu formar um regional com características diferentes dos existentes: que contasse com a elaboração de arranjos mais sofisticados e que não pecasse pela falta de tempo para ensaios, representando apenas um tapa-buraco das rádios. Assim, deixaria de lado aquele clima informal em que os músicos, para segurar a audiência, deviam responder prontamente ao grito do locutor: “Ô regional, improvisa aí qualquer coisa!” Jacob formou então o grupo Época de Ouro, que entrou para a história pela busca de uma linguagem mais camerística e pelo controle rígido que o bandolinista exercia sobre os músicos.


O maxixe

Pioneira dança urbana surgida no Brasil, o maxixe é oriundo da Cidade Nova, bairro erguido por volta de 1860 com o aterro da região pantanosa em torno do Canal do Mangue, no Rio de Janeiro, cuja principal característica era a forte presença de afrodescendentes. A planta maxixe, versão antiga da atual comigo-ninguém-pode, batizou essa nova dança que, por assim dizer, também brotava nos quatro cantos da cidade.
Diferente da dança do lundu, mais ligada ao mundo rural e na qual todos participavam da roda cantando, dançando ou batendo palmas, no maxixe todos os pares dançam ao mesmo tempo, sendo a melodia e a voz externas ao universo dos dançarinos. Pelo seu caráter lúdico e sensual, o maxixe foi rotulado de indecente por grande parte da sociedade. Já nessa época, muito antes da adoção do termo, não poderia haver melhor marketing. A dança então ganhou força na sociedade através dos clubes carnavalescos e do teatro de revista, sendo divulgada por grupos de choro, bandas de música e pianistas populares.
Na Cidade Luz, a Paris do início do século XX, o maxixe chegou e ganhou notoriedade entre os franceses pelos pés do requintado dançarino Duque. Até o advento do samba, o maxixe representou o gênero dançante mais importante do Rio de Janeiro, e sua forma rítmica influenciou, por exemplo, as obras de Sinhô e Donga, pioneiros compositores de samba.



Teatro de Revista

A primeira peça de teatro musicado encenada no Brasil, As surpresas do sr. José da Piedade, apresentada no Teatro Ginástico, data do ano de 1859.

Espaço para o músico popular e para os maestros com formação europeia, as revistas tinham por intenção, de forma jocosa e irônica, retratar os acontecimentos políticos, culturais e sociais do ano anterior. Os argumentos eram escritos por revistógrafos do porte de Freire Júnior e Arthur de Azevedo. A música ficava a cargo de nomes como Chiquinha Gonzaga – que fez enorme sucesso com a revista Forrobodó, em que lançou o exitoso “Corta 
jaca” – e Sinhô, que aproximou o teatro de revista da música popular com a composição “Pé de anjo”, nome da revista que apresentou pela primeira vez a maior vedete do teatro de revista de todos os tempos, a paulista Margarida Max.

Passado algum tempo, as peças do teatro de revista, com montagens cada vez mais caprichadas e luxuosas, acabaram por incrementar a produção cultural no Rio de Janeiro, atraindo uma massa crescente de espectadores e abordando o cotidiano com força tal que refletiam nos palcos a auto-imagem do carioca: malandro, sensual e dono de uma dicção particular.



Cines

Inventado em 1895 pelos irmãos Lumière, franceses, o cinema apareceu entre nós em 8 de julho de 1896, no bojo das novidades tecnológicas, no Rio de Janeiro. Divulgados inicialmente pelos “ambulantes”, projecionistas que viajavam de cidade em cidade e de vila em vila levando a novidade às populações do interior, ou em pequenas salas das grandes cidades, chamadas de cinematógrafo, os filmes passaram a ser exibidos no começo do século
XX em grandes e luxuosos espaços conhecidos como cines, situados nas avenidas chiques das principais cidades do país. Como os filmes eram mudos, havia, dentro das salas de exibições, músicos populares que davam vida sonora às imagens. Nas salas de espera, entre uma sessão e outra, apresentavam-se músicos mais “refinados” – o que significava que eram de cor branca, emoldurando os preconceitos vigentes. Os cines Rio Branco, Odeon, Pathé, Palace, Moderno e Parisiense foram os mais importantes do Rio de Janeiro.
Ernesto Nazaré foi o mais famoso pianista dos cines brasileiros. Cronista da vida carioca, retratou a psicologia do homem da rua, os ambientes da época, os costumes populares, as “gírias” e os “ditos” de salão. Incorporou definitivamente ao seu teclado os batuques, os violões e os cavaquinhos dos primórdios de nossa música popular.


Samba no pé

Em meados do século XIX, 50% da população do Rio de Janeiro era formada por negros escravos. Para o leitor ter uma idéia da enormidade dessa proporção, basta dizer que São Paulo tinha, à época, 8% de escravos em seu território. 
A cidade do Rio de Janeiro constituiu-se, assim, em espaço de identidade da cultura afrodescendente. Esse foi um dos motivos que levaram os negros baianos do pós-Guerra de Canudos a nela buscarem costumes, valores e hábitos familiares à sua história.
Essa população de negros passou a residir na Gamboa, Saúde e Santo Cristo.
Com as reformas urbanísticas realizadas pelo prefeito Pereira Passos no Centro da cidade, sobretudo na zona portuária e imediações, os baianos tiveram que subir ao longo da atual avenida Presidente Vargas, transformando os antigos luxuosos casarões da burguesia em “modernos” cortiços. Nas imediações das ruas Visconde de Itaúna, Senador Eusébio, Marquês de Sapucaí e Barão de São Félix residiam os negros da Cidade Nova, local chamado pelo compositor Heitor dos Prazeres de “Pequena África”.
Os compositores pioneiros do samba, sobre os quais falaremos a seguir, vivenciaram e construíram todo um legado cultural que a Cidade Nova simbolizou no universo musical carioca. Freqüentaram, sem exceções, as casas das famosas baianas festeiras, espaços de acolhida material, espiritual e cultural importantíssimos para a história da cultura negra e do samba. Foi na casa da Tia Ciata que surgiu o lendário “Pelo telefone”; na casa de Tia Sadata, na Pedra do Sal, bairro da Saúde, surgiu o Rancho das Flores; Tia Perciliana era mãe do ritmista João da Baiana, e Tia Amélia, mãe do chorão e sambista Donga.
A baiana mais conhecida na história do samba foi mesmo Tia Ciata, ou Hilária Batista de Almeida, nascida em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Ela se tornou uma das principais lideranças dos negros da Cidade Nova. Morou na rua da Alfândega, perto do Campo de Santana, e na rua Visconde de Itaúna, na região da Praça Onze (rua na qual também morou o flautista Joaquim Callado). Sua casa era frequentada por negros, mestiços e brancos, pobres e ricos.
Ciata comandava uma pequena equipe de baianas que vendia deliciosos doces e quitutes, confeccionava trajes de baianas para os clubes carnavalescos oficiais e era muito respeitada por parte da elite carioca. Organizava festas que duravam dias; segundo João da Baiana – um dos nossos pioneiros personagens do samba – em sua casa os espaços eram divididos da seguinte forma: “Baile na sala de visita (choro), samba de partido-alto nos fundos da casa e batucada no terreiro (samba-de-umbigada).”
O samba urbano cresce no asfalto carioca com os genes da baianidade.





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