Seria preciso aqui falar de sexo. Mas justamente o que se pode dizer é que não há nada mais difícil do que falar de sexo. Jean-Paul Sartre declarou, numa entrevista comemorativa dos seus setenta anos, que sempre creu deverem todos os homens se dizerem tudo: no "reino da liberdade" os homens não necessitarão esconder dos seus semelhantes o que quer que seja. Mostrava-se ele ali muito feliz com sua franqueza, e dizia lamentar apenas ter omitido suas experiências eróticas. Sabedor dos males que os subterfúgios a respeito do sexo podem causar às pessoas que estão ingressando na vida, julguei estar em perfeito acordo com essas idéias. No entanto, nada pode me desagradar mais do que o tipo de exposição de intimidades sexuais que se tornou rotineiro tanto na vida quanto na ficção a partir dos anos 60 - e como um desdobramento nefasto da chamada revolução sexual. Há cenas de sexo em filmes, anúncios livros e canções, e há entrevistas "reveladoras" de preferências e minúcias sexuais em revistas as mais variadas e mesmo em jornais que me enchem de uma revolta muito específica e, não obstante, também de tédio: evito-as na medida do possível, para minha própria economia afetiva. O que temos hoje é a predominância, nesses filmes e livros e reportagens, de um estilo em que nada do que era mesquinho e vulgar na maneira de encarar o erotismo mudou: apenas as grosserias que eram partilhadas por grupos de cafajestes em botequins passaram a ser exibidas no horário nobre. Além disso, tive provas do que já suspeitava: as pessoas "famosas" que resolvem "dizer tudo" aos entrevistadores mais invasivos mentem mais do que as senhoras de engenho e os cavalheiros vitorianos. Há uma flagrante má-fé no uso das liberdades: os talk shows da tv americana (que já começam a ganhar imitadores brasileiros) em que desfilam "viciados em sexo", vítimas de estupro e adúlteros incestuosos alimentam um exibicionismo, um voy eurismo e um escândalo em tudo dependentes dos tabus que aparentemente foram derrubados para que entrevistas assim pudessem ir ao ar. Nesses momentos, a impressão que fica é de que, com a revolução sexual, nada se perdeu exceto os bons modos. Mas quando leio lamentações como a de Vargas Llosa pelo que ele chama de "trivialização do ato sexual", a que contrapõe uma nostalgia do bordel como templo de celebração do sexo como "mistério central da vida" - ele deplora que o amor físico tenha se tornado "um entretenimento passageiro, algo muito diferente desse aproximar-se das portas do céu e do inferno que o sexo ainda foi para a minha geração" -, tendo antes a reforçar meus laços com os libertários. Llosa atribui aos "tabus, proibições e preconceitos" que cercavam o sexo o fato de, para ele, uma mulher nua sobre uma cama ser uma experiência inquietante e perturbadora, enquanto "para o comum dos mortais o sexo se tornou a coisa mais natural do mundo".
Eu, que considero o sexo a coisa mais natural e também a mais misteriosa e transcendente de todas as coisas deste mundo, não aceito com facilidade esses argumentos que submetem a intensidade da experiência sexual às proibições vigentes no tempo de formação pessoal de quem os formula. Sempre ri com desprezo da famosa tirada de Nelson Rodrigues sobre o assunto: esse personalíssimo dramaturgo brasileiro, um grande escritor escandaloso e moralista, dizia que, em sua mocidade, um homem tremia à visão de um tornozelo de mulher, ao passo que hoje (e aqui é que entra a marca do estilo rodriguiano) "nem o vendedor de chica-bon na praia se vira para olhar a moça de biquíni". Quer me parecer que, por essa lógica, todos os ginecologistas seriam impotentes. Não. Nada me autoriza a endossar a tese de que para os filhos da revolução sexual o sexo seja "um entretenimento passageiro". Ele não o é mais do que o foi para Llosa e seus amigos nas escapadas prostibulárias. Se o sexo é - e eu não tenho dúvidas de que ele de fato é - "o mistério central da vida", não deveria ser necessário que precisássemos fingir isso para nós mesmos.
A descoberta do orgasmo através da masturbação - intuída diretamente no corpo, deduzida de pedaços de conversas alheias, de gestos sugestivos - foi o acontecimento -chave da minha vida. Simone de Beauvoir (cujos Memórias de uma moça bem-comportada e O segundo sexo prefiguraram a revolução sexual dos anos 60 e me foram cruciais na adolescência), no livro que escreveu sobre a velhice, diz que a sexualidade representou para Lou Andreas-Salomé - que, no entanto, só a tinha descoberto aos 35 anos - "uma realização magnífica e exaltante do indivíduo". É pouco. Eu, aos dez, onze anos, senti-me - e o disse entusiasmado a mim mesmo - não apenas justificado em minha existência mas também no direito de justificar plenamente a existência do mundo. O caráter de iluminação da experiência sexual proibia a intromissão da noção de pecado na seara da minha intimidade. Era uma evidência muito grande do bem e do belo como verdadeiro para que pudesse representar um aspecto censurável da vida. Na verdade, não era um aspecto, um fato entre outros, mas algo que se abria como um absoluto. Eu me segredei o nome de Deus e me perguntei maravilhado como era possível que em nosso próprio corpo em meu próprio corpo - estivesse inscrita essa graça. A causa da superação da hipocrisia sexual não podia deixar de ocupar posição privilegiada para mim entre os temas da onda libertária dos anos 60. E a instância da homossexualidade não pode deixar de desempenhar aí um papel central.
Oferecendo o modelo ideal do conflito entre autenticidade e dissimulação, sem poder ser enquadrada entre as perversões que implicam crime ou negação da liberdade alheia, desenhando com clareza a interrogação fundamental sobre a sexualidade humana, a homossexualidade provou ser o ponto crucial da questão referente à liberdade do indivíduo. Não por acaso ela está na mira de fogo dos Estados totalitários, mesmo dos esboços de futuros Estados totalitários - e das nostalgias de um passado de controle social absoluto. Mas não é por eu ter chegado à consciência disso que o tema da homossexualidade esteve, está e estará sempre comigo. Eu diria antes que é por ele ter estado sempre comigo que me foi tão luminosa a captação dessa consciência.
A dubiedade que já intrigava os garotos no ginásio e que eu próprio tematizei em minha figura pública a partir dos anos 60 expressa conteúdos profundos relativos tanto à natureza dos meus desejos quanto à escolha de papéis. Em Praticamente normal Andrew Sullivan narra como, aos dez anos, ao ouvir de uma menina a pergunta "Você tem certeza de que não é uma garota?", ele se deu conta do significado de sua diferença. Assim como ele, muitos amigos que fiz. desde a infância sentiam-se arrebatados pela presença de pessoas do seu sexo. De modo tão definido que, neles, a polaridade macho/fêmea mais se reafirma do que se esvanece. Não assim comigo.
Por um lado, apesar de ter tido desde a pré-adolescência paixões intensamente sexualizadas por meninas (e a princípio exclusivamente por meninas), sei que nem a mulher nem o homem são, em princípio, anti-eróticos para mim; por outro, estou seguro de que não me teria negado a entregar-me de corpo e alma a uma história de amor com um rapaz por quem também me apaixonei aos dezenove anos, caso ele estivesse igualmente aberto afetivamente para mim - e não tenho sombra de dúvida de que tal decisão, se tomada com limpidez, teria recebido apoio carinhoso de meus pais, velhos interioranos católicos de vida conjugai sem mácula que impuseram fundo senso de integridade mas nenhum papel obrigatório (de qualquer ordem: profissional, social, sexual) a seus filhos. Sei que o impulso amoroso pode revelar-se orientado tanto para homens quanto para mulheres, mas não indiferentemente. Porque essas inclinações são, a rigor, excludentes. E não há como pôr na balança esses dois pesos. Às vezes os homossexuais são acusados de não admitir a veracidade do desejo heterossexual. Mas no fundo todos sabem que há uma diferença abissal entre alguém sentir o que todos esperam que sinta e alguém não poder deixar de sentir o que lhe é em princípio vedado. Freud, único esboço de filósofo do sexo. usou a expressão de Stendhal para cunhar a frase-chave sobre o assunto: "A perversão é, aos olhos dos outros, uma promessa de felicidade". Nessa ótica, todos os homens que se gabam de desejar as mulheres que passam são suspeitos, enquanto aqueles que têm de sucumbir à força de um desejo que eles mesmos não aprovariam só podem causar fascinação e inveja.
Antônio Cícero chamou minha atenção para o fato de que, quando, no filme Victor/Victoria, Julie Andrews e Robert Palmer (ela fazendo um falso travesti e ele, um homossexual autêntico) cantam os versos "We're the kind of people other people would like to be", eles, por meio da canção singela de Henry Mancini, tocam esse ponto com graça. Uma mulher que para mim é uma deusa do amor disse, surpreendendo- me mais uma vez com seu estilo ligação-direta: "Sexo oposto é o que está na minha frente", não querendo dizer com isso que ela traçava o que aparecesse diante de si, mas que quem quer que chegasse a estar com ela num frente-a-frente sexual genuíno quem quer que tivesse chegado a ser objeto do seu desejo e motor do seu prazer - era um exemplar do sexo oposto ao seu. Não se pode imaginar um modo mais vivido de se confirmar a frase de choque lacaniana que reza que "relação homossexual não existe". A ideia de bissexualidade é muito freqüentemente usada para mascarar tanto homossexuais pouco corajosos quanto homófobos envergonhados. Tendo a rejeitar o conceito. Muitos conservadores censuram a ideia de "opção" sexual, como se os que têm de discutir o assunto (os "normais" não precisam) julgassem tratar-se de um problema simples de liberdade de escolha. Não conheço nenhum homossexual que diga que "escolheu" ser assim. Até aqui, todos tiveram que passar por uma profunda rejeição de sua própria inclinação. Quer se a explique pelo Édipo ou pelo hipotálamo, pela genética ou pela reencarnação, a homossexualidade se apresenta como um dado. Os chamados bissexuais, no
entanto, parecem estar diante de uma situação que permite escolha livre. Na verdade, não o estão mais do que ninguém. O que eles estão na posição de poder ver é que a heterossexualidade precisaria justificar-se tanto quanto o homoerotismo.
Quando eu tinha 23 anos me aplicaram o teste Rorschach, e o resultado, quanto a isso, foi "homossexualismo latente; identificação feminina; idealização da figura da mulher". O teste foi feito amadoristicamente por uma amiga estudante de psicologia. Ela própria era homossexual (não sem conflito), mas me disse que meu teste havia sido interpretado por uma sua professora que desconhecia a identidade do testando. Acreditei. De todo modo, achei que o diagnóstico fazia sentido. Angustiou-me um pouco - e por pouco tempo - pensar que talvez isso significasse que minha vida amorosa se sustentava numa espécie de auto-engano. Esse pensamento não resistiu à força espontânea do meu laço sexual com Dedé.
Mas o que realmente me surpreendeu no resultado desse teste foi a ênfase dada ao talento para a música. Se eu não desconfiava da isenção de minha amiga psicóloga por causa do diagnóstico quanto à sexualidade, considerava francamente suspeito que o teste privilegiasse meu pendor musical. Desde pequeno tive certeza de que meus talentos plástico e verbal eram superiores à minha musicalidade: desanimei-me da pintura, mas sempre cri que daria um grande cineasta. Sem estar tão seguro quanto à minha inclinação sexual, penso
igualmente que eu daria um grande veado. Convivo com pessoas que são fenômenos de musicalidade e que, no entanto, não conseguem extrair da música um quinto do que eu consigo; por outro lado, inúmeros heterossexuais indubitáveis têm muito menor rendimento com as mulheres do que eu. O teste Rorschach coincidiu com o destino no caso da música, embora os dois desmentissem minha intuição; no caso da sexualidade, o teste disse o oposto do destino - e minha intuição nunca chegou a decidir com qual concorda. Nos dois casos, considero-me mais bem-sucedido do que mereço.
Assim, aproximei-me, como figura pública, do que Andrew Sullivan chamou de clima "ubíquo, vagamente homoerótico" dos "grupos pop masculinos comuns naquele tempo", e hoje pondero que as sugestões de androginia, polimorfismo, indefinição, que coloriam a atmosfera da música popular pós-Beatles (pós-Elvis?), seguem sendo uma ameaça à estabilidade das convenções que sustentam muitos atos opressivos. A nova compartimentalização que se seguiu a essa orgia dos sinais era inevitável. Todos os que eram "vagamente homoeróticos" e não se declararam homossexuais foram sendo assimilados como heterossexuais de uma nova era. Inclino-me a rejeitar tal simplificação.
Tendo tido uma freqüência muitíssimo mais alta de práticas heterossexuais do que homossexuais (inclusive dois casamentos vividos com sincera tendência monogâmica), poderia dizer, a esta altura da vida, que me defini como heterossexual. Mas que nada. De todo modo, não há por que obstinar-se na busca de uma nitidez na orientação sexual se ela não se apresenta como evidência espontânea. O que importa é ter os caminhos para o sexo rico e intenso abertos dentro de si.
No final dos anos 60, era considerado mais progressista dificultar a definição do que dizer-se homossexual: Mick Jagger sobre o palco negava a pertinência daquilo que hoje se chama outing, pois sugeria a liberação do potencial homoerótico latente em todos e em cada um. Natural que, à medida que esse tipo de comportamento foi passando a ser interpretado socialmente como tranquilizador sinal de heterossexualidade, os que queriam dizer-se abertamente homossexuais adotassem sinais exteriores cada vez mais distantes dessa receita, não raro apelando para os modelos tradicionais de masculinidade. É claro que muitos conteúdos essenciais a certos grupos e indivíduos (sadomasoquismo, culto narcisico do Macho - pelo lado dos homo; assimilação da afirmação social das mulheres, distensão dos limites do modelo viril, nostalgia do macho bárbaro europeu - por parte dos hetero) entraram em jogo como fatores relevantes. De todo modo, tornou-se possível - e apesar de David Bowie, com sua estilização calculada da androginia (e sua confissão de "bissexualismo", logo negada), ter se tornado uma figura dominante por bom período - ouvir-se com naturalidade que alguém como Axl Rose, com esse nome, aqueles cabelos e aquela saia escocesa, tenha dito não sei que palavras agressivas contra os homossexuais (o que é simétrico à hostilidade aos negros exibida por garotos brancos que, no fim das contas, refazem indefinidamente o rhy thm&blues).
Em Retrato do Brasil (1928) Paulo Prado atribui a "tristeza" do nosso povo (que ele vê confundida com nossa incapacidade de organização social e progresso econômico) à luxúria que dominou a vontade dos primeiros europeus aqui chegados: os poucos portugueses deixados sem mulheres brancas "numa terra radiosa" sucumbiram à complacência das nativas e geraram a prole brasileira inaugural sob o signo da mestiçagem e da permissividade. Das insinuações eróticas legíveis por trás das estilizações de Carmen Miranda às promessas orgiásticas do Carnaval carioca, tudo o que caracteriza aos olhos do mundo uma alegada alegria brasileira não passa de sintoma da causa de nossa tristeza. Ao conhecer São Paulo (a cidade de Paulo Prado), aos 22 anos, surpreendi-me com a ausência de casais beijando-se na boca ou trocando carícias inflamadas em público: na Santo Amaro dos anos 50, como no Rio ou em Salvador, essas cenas eram tão costumeiras quanto em Paris. Pode-se pensar que a distensão dos hábitos sexuais cresce na razão direta do desenvolvimento urbano, e que numa cidade pequena do interior da Bahia haveria mais moralismo público do que numa grande metrópole como São Paulo. Mas o fato é que nesta última cidade chegamos - Dedé e eu - a ser repreendidos mais de uma vez por nos beijarmos
em público: é que, se Paris era mais urbana, Santo Amaro era mais "brasileira" do que São Paulo - ali os imigrantes europeus tinham formado uma coletividade operosa e atada a claros princípios morais. Quando eu era menino, a tradicional escolha da palavra veado para designar um homossexual masculino era popularmente interpretada, na Bahia, como explicando-se pela condição de caça do animal. Assim, à menor desconfiança quanto à virilidade de alguém, gritava-se: "Ti-bi!" (essa era a onomatopeia baiana para os tiros de revólver), e em geral acrescentava-se: "Pode matar que é bicho". (Essa interpretação popular não deve ser de todo impertinente, pois agora usa-se a palavra paca, nome de outro típico animal de caça, para o mesmo fim.) Mas nunca havia casos de tiros reais dados em homens por causa de sua conduta anômala. Esses tiros simbólicos eram humilhantes para as vítimas e hilariantes para os agressores. Na verdade, estes os endereçavam exclusivamente aos "passivos" efeminados, os "ativos" merecendo lhes até o aplauso tácito. E tais agressões estavam entre as demonstrações de falta de educação e grosseria: as mães de família e os homens de respeito deveriam repreender seus filhos que agissem com tamanha vulgaridade. Os garotos que hoje matam homens com quem vão para a cama a pretexto de conseguir dinheiro para comprar cocaína são o exemplo do desequilíbrio entre a violência urbana moderna e essa nossa antiga tolerância mal escondida para com as práticas homossexuais: pode-se dizer que eles são a imagem deformada (mas também, num certo sentido, invertida) dos caçadores simbólicos da minha infância.
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