Páginas

sábado, 30 de novembro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


VEREDA

A maioria das canções por que sou reconhecido hoje em dia foi composta e gravada depois do Araçá azul. Com exceção do fenômeno de "Alegria, alegria", que no Brasil (mas só no Brasil) ainda ê mais conhecida do que quaisquer outras, hoje sou sobretudo o autor de algumas canções escritas de meados dos anos 70 em diante. Evidente, portanto, que há muita história para contar referente a esses tempos. E, de fato, a colaboração com Perinho Albuquerque em Jóia, Qualquer coisa e Bicho marca um período memorável. E com A Outra Banda da Terra (que tinha como núcleo Arnaldo Brandão, Vinícius Cantuária, Bolão, Zé Luís e Tomaz Improta) atravessei o que não temeria considerar a fase de maior felicidade de minha vida musical. Retomando uma conquista de Transa, eu só agora engrenava uma carreira propriamente profissional, com apuro e liberdade no canto.
Depois dos loucos 60, os anos 70 se me afiguravam desenxavidos: eu não gostava de David Bowie nem de rock progressivo nem de Woody Allen nem dos novos filmes alemães nem do Weather Report nem do Earth, Wind & Fire. Só Bob Marley, Stevie Wonder e algo do punk eram novidades animadoras vindas do mundo anglófono. Achava a moda (roupas, cabelos, estilos de dançar) feia e careta, em suas esquematizações das ousadias dos anos 60. Mas me sentia feliz e o Brasil me estimulava. Daqueles anos para cá, interessei-me pelo fenômeno de
modernização das telenovelas brasileiras (e, em geral, pelo papel da tv Globo na educação das grandes massas), pelo trabalho do grupo teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone (que, sem ambicionar a grandiosidade de Zé Celso ou Boal, trouxe uma vitalidade espontânea - e uma poesia - para o teatro, que o aproximava da força da música popular), pelas novas ondas de samba carioca no mercado ("pagode"), pelo surgimento dos blocos afro nas ruas de Salvador (a canção de Gil "Filhos de Gandhi" fez mais por isso do que o meu "Atrás do trio elétrico" tinha feito pelos trios elétricos), pelo estouro comercial do pop carnavalesco baiano, pela explosão das bandas brasileiras de rock nos anos 80, pelo repentino interesse do mercado litorâneo pela música sertaneja, por alguns filmes coloridos
feitos por diretores do Cinema Novo com um aspecto de bom entretenimento que os filmes da fase heróica desconheciam; aproximei-me do candomblé - a partir de conversas bonitas com a ialorixá Mãe Menininha do Gantois - e me mudei para o Rio para fazer psicanálise. Na metade da década de 80, meu casamento com Dedé teve que chegar ao fim e meu encontro com Paula Lavigne, uma menina de treze anos que atuava num grupo de teatro de adolescentes, terminou tendo conseqüências de grande porte: estamos vivendo juntos há dez anos e temos dois filhos: Zeca, nascido em 92, e tom, em 97. Por causa da atenção a coisas como a tv Globo, a axé music, o rock-Brasil - e mesmo o Asdrúbal Trouxe o Trombone - ouvi de amigos mais ou menos íntimos o comentário de que eu embarcava em muitas canoas furadas. Mas eu acreditava que podia andar sobre as águas.
Eu amava os discos experimentais de tom Zé ou de Walter Franco, os filmes de Júlio Bressane e de Rogério Sganzerla - mas sabia que meu lugar era lá no meio da corrente central da cultura de massas brasileira, muitas vezes nadando contra a maré ou apenas atrapalhando-lhe o fluxo, outras, tentando desimpedir-lhe o caminho. Haveria muito o que discutir sobre tudo isso, mas a história por trás das reflexões expostas neste livro acaba aqui.
Trinta anos transcorreram entre a deflagração do movimento tropicalista e os dias em que escrevo estas últimas páginas. Naturalmente muitos pensamentos que aqui aparecem desenvolvidos e conclusos eram ainda informes em mim durante a ação narrada. Mas também é verdade que muitos outros estiveram mais vividamente claros em minha mente no calor da hora do que puderam ser agora reconstruídos. E outros tantos se mantiveram imutáveis em seu ritmo e forma por todos esses anos. Outros, ainda, são simplesmente novos em mim. O que vale mesmo ressaltar é que o que me levou ao tropicalismo aqui me traz. Em O choque de civilizações, Samuel P. Huntington descreve o retorno das antigas forças civilizacionais que estiveram recalcadas pela guerra fria, a volta de um mundo mais velho e muito mais resistente do que a aventura ocidental que culminara com os Estados Unidos. Dogmas culturais particularistas e fundamentalismos religiosos comandam a cena. Ele então propõe que os Estados Unidos liderem o Ocidente num programa de | reafirmar -se como cultura particular com uma religião própria. "A Cristandade" ressurge como sinônimo para "Civilização Ocidental". O critério de classificação das "civilizações" que ele apresenta é duvidosíssimo. Há uma civilização islâmica, uma ortodoxa, uma sínica, uma africana, uma ocidental e uma latino-americana. Sobretudo não me parece convincente a interpretação dos EUA como guardiães da civilização européia. Vejo a América como um estágio radicalmente novo da história da cultura ocidental. Traumaticamente "lavada em sangue negro e sangue índio", toda ela é uma antítese agressiva da Europa. Sob certos aspectos, os EUA o são mais do que o conjunto dos países latinos do Novo Mundo. A violência de sua cultura de massas, a saúde com que, a partir dos anos 20, eles exportaram uma cultura "vira-lata" (Ann Douglas) definem uma realidade que mais aponta para uma superação do estágio europeu da História do que para uma sua cristalização.
Mas Huntington termina caracterizando como Ocidente apenas os países "brancos" ricos: sob a tutela dos Estados Unidos, estes deveriam organizar-se contra "o resto". O Brasil aparece como o possível "país-núcleo" da alegada civilização latino-americana.
Seria simplesmente desprezível para nós essa confusão deliberada de blocos geopolíticos com "civilizações" se ela não tocasse uma corda sensível da intuição que têm os brasileiros do que seja o Brasil. De fato, nosso país se nos mostra como uma eterna indefinição entre ser o aliado natural dos Estados Unidos em sua estratégia internacional e ser o esboço de uma nova civilização. Suas características de país gigantesco e linguisticamente solitário contribuem igualmente para as duas tendências. O caráter único de sua música popular - tanto em sua beleza quanto em sua precariedade - vem disso. O tropicalismo pôde tentar extrair energia original dessa tensão. Livros como o de Huntington (ou o Trustde Fukuy ama, que aparentemente se lhe opõe) me fazem sentir - e pensar o tropicalismo - posicionado mais nitidamente à esquerda do que me seria possível em 67.
Foi no Ocidente que se desencadeou um processo de secularização do conhecimento que resultou na ciência de eficácia universal tal como a conhecemos, e na moral individualista ateia em que se baseiam os "direitos humanos". Como recentemente observou Décio Pignatari, os ateus são a verdadeira minoria do nosso tempo. A "revanche de Dieu" é, pois, um fato estatístico - o que não deixa de ser irônico. Mas, se uma mente norte-americana vigorosa receita uma amedrontada submissão a essa "revanche", a mente musical brasileira não pode aceitar esse tipo de restauração. Thomas Mann dizia: "Não há nada pior do que o sonho de restauração. Uma época medrosa de si mesma procura restaurar fundamentos. Em vão: não há volta". Kapucinski conclui seu livro sobre a derrocada do Império Soviético com a constatação de que os países territorialmente grandes sempre encontram meios de se reerguer - e cita o Brasil junto com a China e a índia como exemplos: a Rússia também, diz ele, se reerguerá dos escombros do pós-socialismo. Vejo nessa observação um mero reconhecimento da auto -imagem ambiciosa que tais países fatalmente
têm. Sendo assim, que a ambição brasileira seja a de levar o ateísmo, filho do Ocidente, às suas últimas conseqüências. O fato de ser provável que a religiosidade seja reencontrada em outro estágio ao fim do processo não autoriza a regressão aos moldes pré-científicos, pré-filosóficos e pré-jurídicos de religião. É isso que me fascina em O mundo desde o fim, o livro de filosofia de Antônio Cícero, com sua retomada do cogito como "apócrise". E quando falo, a esse respeito, de "um Ocidente ao ocidente do Ocidente", penso não num fundamentalismo dessa cultura particular, mas no compromisso com alguns conseguimentos historicamente ocidentais irreversíveis, Takeshi Umehara (citado por Huntington) escreveu que "o completo fracasso do marxismo e o espetacular esfacelamento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa do marxismo e a ideologia dominante no final da História, o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair". Essa observação leva Huntington a sugerir a união estratégica dos Estados Unidos com os países europeus "cristãos".
A mesma afirmação do filósofo japonês me levaria a perguntas mais fundas sobre o que significa o que aconteceu no Ocidente. Huntington cita também Arthur Schlesinger Jr.: "A Europa é a fonte - a fonte singular- das idéias de liberdade individual, democracia política, império da lei, direitos humanos e liberdade cultural. Essas idéias são idéias europeias, não são asiáticas, nem africanas, nem do Oriente Médio, a não ser por adoção". Mas, como disse Ernest Gellner, que tais idéias tenham surgido no Ocidente (assim como a ciência moderna) não significa que os povos brancos europeus sejam seus donos ou mesmo que estejam mais capacitados para pô-las em prática ou desenvolvê-las. É óbvio que o liberalismo será a próxima pedra de dominó a cair, se os autointitulados amantes de tais conquistas ocidentais – os conservadores dos países ricos do Ocidente - fatalmente o desvalorizam quando festejam a falência do socialismo acenando com uma volta explícita à submissão à fé - e uma volta implícita a valores raciais - que o pensamento liberal não toleraria. E quando - desistindo momentaneamente do economicismo desbragado dos anos 80 - voltam a um culturalismo de disfarçado tom romântico, em que se desconfia de que as ideias racionais possam produzir algo real na vida das sociedades. 
O choque de civilizações lembra aquele texto de Wagner que tanto impressionou Nietzsche - em que cinicamente se propõe que as massas sejam conduzidas, por homens irreligiosos, na ilusão da religião. O que, por sua vez, me recorda o sargento que, quando eu estava preso, me confessava orgulhoso ter espancado atores de uma peça em que supostamente se desrespeitava a figura da Virgem Maria, apesar de afirmar grosseiramente não acreditar ele próprio nessas merdas. Aqui também, eu me sinto mais religioso do que os conservadores americanos que receitam o protestantismo como cura para o atraso da América Latina.
Huntington atribui a onda libertária dos anos 60 ao crescimento percentual de jovens no Ocidente depois da Segunda Guerra (baby boom). Eríc Hobsbawm, ao crescimento econômico mundial naquela década e na anterior. Perguntar sobre o tropicalismo é perguntar sobre o sentido da interseção da singularidade brasileira com a força dessa onda. O século XX foi chamado de "o século americano". Hobsbawm - que o caracterizou como "breve" - afirmou que, em matéria de cultura popular, pudemos ser, no denso espaço dessa brevidade, "ou americanos ou provincianos". Na periferia da economia mundial, o Brasil apresentou, com o tropicalismo, um modelo de enfrentamento dessa questão que só agora se torna mundialmente inteligível. Algo desse modelo mais ou menos reproduz-se (não por influência direta, na maioria dos casos) no desabuso do melhor pop&rock mexicano e argentino dos anos 80 para cá.
Em rápidas palavras, eu próprio poderia dizer que não vivencio o que me interessa em minha criação a partir da perspectiva do "século americano" e sim de uma sua possível superação. Mas isso sobretudo porque no século americano ainda sobra espaço para que se teime em fazer dos Estados Unidos da América o mastim de um grupo racial e religioso. O livro de Huntington tem algo de profundamente antiocidental: ele expõe o esforço dos conservadores em transformar a cultura de Camões, Lutero, Washington e Picasso numa cultura fechada. Simplesmente não dá. A grande movimentação que levou a chama civilizatória das áreas quentes para o frio Norte do hemisfério norte parece estar - depois de atingir o Japão e tigres asiáticos neocapitalistas e China neocomunista - madura para fazer um desvio de rota. Ter como horizonte um mito do Brasil gigante mestiço lusófono americano do hemisfério sul como desempenhando um papel sutil mas crucial nessa passagem é simplesmente uma fantasia inevitável. Antônio Cícero, no citado O mundo desde o fim, relembra a revolta de Nietzsche contra a tendência dos pensadores "moralistas" a depreciarem o homem tropical: em favor de quê, pergunta o filósofo alemão, "das zonas temperadas? Em benefício dos homens temperados? Daquilo que é moral? Do medíocre?". Com efeito, o economista brasileiro Eduardo Giannetti, em livro publicado mais ou menos à mesma época, relaciona as opiniões de alguns desses grandes moralistas, justamente para contrapô-las ao protesto nietzschiano.
A citação de Kant nos basta: "A excelência das criaturas pensantes, sua rapidez de apreensão, a clareza e vivacidade dos seus conceitos, e, em suma, toda a extensão de sua perfeição, torna-se mais alta e mais completa na proporção direta da distância do seu lugar de moradia em relação ao sol".
O nome de "tropicalismo", que rejeitei a princípio por considerar restritivo, hoje me parece adequado como nenhum outro o seria. Justamente por eu ter preferido enfatizar em primeiro lugar nossa aceitação do repertório do pop internacional - como oposição de choque ao nacionalismo -, o apelido hoje me soa como uma revelação involuntária da essência do movimento. Sua própria construção - por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luís Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica - tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade. Uma responsabilidade pelo destino do homem tropical, um dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche - eis a motivação íntima do que se chamou de tropicalismo em música popular brasileira. Não se trata aqui de atribuir intenções grandiosas a gestos banais: um grupo de garotos fazendo música de divertimento decide por fim reivindicar um sentido maior para o desenrolar de suas carreiras. Creio antes que tal sentido se impõe a despeito do que há de pequeno nessas carreiras. E termina até por se alimentar de seus aspectos mais mesquinhos. Sem necessariamente enaltecê-los. Menos do que uma visão mística da História, eu gostaria que estas palavras fossem tomadas como um esforço de lucidez diante do que se apresenta como a matéria mesma da nossa história sendo vivida.
Isso tem como lastro o som real produzido por João Gilberto. João assume a instância música popular como determinante de nossa verdade dada e criável.
Creio mesmo que eu teria agido mais responsavelmente se tivesse escrito, em vez destas memórias reflexivas, o livro que por tanto tempo sonhei escrever sobre ele. Nunca desisti de todo de fazê-lo. Mas acontece que tal projeto apresenta o duplo risco de, diferentemente deste aqui, substituir-se à minha música e de, afinal, não agradar ao próprio João. Que minha música canhestra e errática seja por enquanto o livro que posso escrever sobre ele - é assim que ele a ouve - (e que este livro aqui seja uma extensão de seu caráter algo disforme),
pois ela, sem encantá-lo (se bem que sua gravação de "Menino do Rio" me leve a duvidar), tampouco o aborrece com análises e interpretações de seu mistério tão genialmente protegido até (ou talvez sobretudo) dos que querem mistificá-lo.
Fique apenas claro aqui que a vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto como redentor da língua portuguesa, como violador da imobilidade social brasileira - da sua desumana e deselegante estratificação -, como desenhador das formas refinadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam essas formas. Por meu intermédio, o tropicalismo tomou a realidade da música popular no Brasil pela sua vocação
mais ambiciosa materializada no som de João.
Nos anos 50, uma marchinha de Carnaval carioca ridicularizava as fãs de cantores de rádio nos seguintes termos:
Ela é fã da Emilinha
Não sai do César de Alencar
Grita o nome do Cauby
E, depois de desmaiar,
Pega a Revista do Rádio e começa a se abanar.
Uma foto aqui, uma foto ali
O dia inteirinho ela não faz nada
Enquanto isso em minha casa
Eu não arranjo uma empregada.
A canção foi um grande sucesso. Eu, que, aos treze anos frequentava os auditórios da Rádio Nacional do Rio de Janeiro onde Emilinha e Cauby se apresentavam no Programa César de Alencar-, ria da sátira sem me sentir ofendido: supunha -me acima dos outros freqüentadores, mas mesmo assim não achava que eles tivessem muito do que se envergonhar. Eram pessoas ingênuas e um tanto inautênticas em seus arroubos, mas amavam o que a mim mesmo parecia amável.





* A presente obra é disponibilizada por nossa equipe, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário