BACK IN BAHIA
Estar livre em Salvador, no verão, era muitíssimo agradável. Mas era mais do que isso. Eu tinha composto, em 68, uma marcha-frevo que era uma afirmação dos "trios elétricos", uma modalidade de conjunto musical carnavalesco inventado em Salvador no final dos anos 40 por Dodô e Osmar. Este último era um virtuose do bandolim e o outro, além de também músico (embora não um virtuose), mexia com eletrônica. As marchinhas de Carnaval cariocas sempre tiveram mais força no Carnaval de rua da Bahia do que os sambas. O frevo pernambucano é uma espécie de marcha carnavalesca acelerada, com um fraseado típico muito mais rico do que o das marchinhas do Rio. É música concebida para acompanhar uma dança acrobática e elegantíssima que os pernambucanos cultivam com técnica apurada. Suponho que, vizinhos dos nordestinos, os baianos sempre usaram as marchinhas cariocas como quase frevos. Apesar de nos considerarmos os inventores do samba - e de cultivarmos a tradição do samba-de-roda intacta até hoje -, nós, baianos, sempre preferimos, para o Carnaval, brincar pulando ao som de marchas rápidas. Quando, nas ruas ou em meio a um baile de Carnaval, a orquestra executava uma série de sambas, era a hora de descansar. Com a vinda a Salvador, em 48 ou 49, do grande bloco pernambucano de frevos Vassourinhas (cuja canção-tema, ou hino oficial, era um frevo de mesmo nome que se tornou sucesso nacional), Dodô e Osmar acharam que, se pudessem se fazer ouvir tocando frevo em seus instrumentos pelas ruas da cidade, arrastariam multidões. Dodô então imaginou um modo de amplificar o violão e o bandolim, fazendo modelos em madeira maciça eletrificados.
Ele conhecia o violão elétrico, mas não sabia que a guitarra maciça já era uma ideia desenvolvida por outros em outras partes do mundo. As multidões de Salvador se apaixonaram. E Osmar passou a compor frevos especiais para o trio (havia também um percussionista), que circulava em cima de um caminhão. Depois o grupo cresceu - e apareceram muitos outros semelhantes -, mas o nome de "trio" permaneceu. Quando eu era menino em Santo Amaro, um ou outro vinha de Salvador e, embora destoassem dos "ternos" tradicionais compostos de instrumentos de sopro e percussão (os Amantes da Moda e Amantes da Folia que, com suas roupas de cetim colorido e lantejoulas, executavam marchas cariocas) e das "batucadas" (blocos de samba exclusivamente de percussão que eram mais admirados do que seguidos), os trios elétricos nos encantavam. Pelo fim dos anos 60, as marchas (e mesmo os sambas) de Carnaval cariocas estavam desaparecendo, os bons compositores que surgiram com a (e depois da) bossa nova não encontrando o jeito de se adequar ao Carnaval. Houve várias tentativas de ressuscitar o gênero, todas abortadas. Há uma foto, tirada em 66, em que Chico Buarque, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Torquato Neto, Gil, Capinan, eu próprio e tantos outros de minha geração aparecemos ao lado de tom Jobim, Braguinha (o grande compositor João de Barro, então setuagenário) e velhos cantores da Rádio Nacional, num encontro promovido por não sei quem para reerguer a canção carnavalesca. Mas dali não saiu nenhum samba ou marcha memorável. O meu "Atrás do trio elétrico" quebrou o tabu. Composto em 68, esse quase-frevo foi um sucesso nas ruas de Salvador no Carnaval de 69 - e ficou conhecido no Brasil inteiro. Eu, no entanto, não tive a alegria de presenciar esse milagre: estava na cadeia. E nos dois outros Carnavais subsequentes, no exílio, de onde mandei frevos novos que também tiveram êxito.
Agora, de volta à Bahia, eu ia pela rua Joana Angélica, a caminho do centro, ao lado de meu pai. À medida que íamos nos aproximando do Relógio de São Pedro, a atmosfera do Carnaval se fazia evidente no número de pessoas na rua e em seu aspecto, e eu chorei emocionado: de repente eu percebia que, até aquele momento, não acreditara que iria ver aquilo tudo de novo. Curiosamente, lembro de ter apenas meu pai a meu lado nessa hora, o que não é muito provável. Pode ser que ele e eu nos tenhamos distanciado de minha mãe, de Dedé e dos outros sem perceber; pode ser que tenhamos saído separados por motivos de discrição e cuidado, não sei: o fato é que dei muita importância à alegria orgulhosa de meu pai chegando à cidade comigo e até imagino (fantasiosamente, suponho) que ele quis que estivéssemos somente os dois. Descemos a ladeira de São Bento e chegamos à praça Castro Alves, o núcleo do Carnaval de Salvador. Dali se vê o mar teimosamente mantendo a linha do horizonte contra a confusão de perspectivas provocada pelas ladeiras. A praça, ela própria enladeirada e triangular, e as ladeiras que lhe dão acesso, estavam repletas de gente fantasiada e mascarada. Caminhões de trios elétricos tocando, blocos de cordão espremendo a gente contra as paredes. Ao pé da estátua de Castro Alves, o poeta romântico baiano, um abolicionista retórico, estavam, como todos os anos, nossos amigos e familiares. Ficamos ali bebendo cerveja e brincando até anoitecer. Impressionou-me muito a combinação de hippies com foliões tradicionais e a quantidade de gay s ostensivos. Os hippies e os gay s se misturavam naturalmente com a massa de foliões: os hippies estavam em casa num mundo habitado por fantasiados, e os gay s se confundiam com o travestismo que no Carnaval é tradição. Muitos eram da terra e estavam na verdade no duplo papel de folião e hippie ou de travesti tradicional e gay moderno. Outros eram turistas do Rio, de São Paulo, de Minas, do Rio Grande do Sul ou mesmo do exterior. E é claro que havia muita indefinição entre hippies, gay s e foliões tradicionais - e isso tudo dava uma sensação de liberdade muito grande, uma impressão de pansexualismo triunfante.
Eu tinha gravado em Londres um frevo-de-trio-elétrico chamado "Chuva, suor e cerveja" que estava tendo - me diziam - mais sucesso do que "Atrás do trio elétrico" e do que "Um frevo novo", que eu fizera um ano antes. Depois que o sol se pôs atrás da ilha de Itaparica, algo começou a surgir no topo da ladeira da Montanha. Eu, aparentemente o primeiro a ver, perguntei aos amigos próximos o que seria aquela forma cônica branca que aparecia por trás do vértice da balaustrada, no ponto mais baixo da praça, que é onde ela se encontra com o ponto mais alto da ladeira da Montanha. Não imaginávamos que pudesse ser um trio elétrico - eles não entram na praça por ali e não o fazem em silêncio. Houve uma movimentação para identificar o objeto. Parecia um avião pondo o bico no ângulo da ladeira. Era o caminhão do trio elétrico Tapajós que se apresentava em forma de foguete espacial.
Tão logo se mostrou inteiro aos foliões na praça, acendendo suas luzes, os músicos começaram a tocar "Chuva, suor e cerveja". Imediatamente caiu uma chuva forte que durou toda a noite. A multidão começou a cantar e dançar sob a chuva e eu, chorando e rindo, vi, inscrita no flanco anterior do "foguete", a palavra inventada pelo pessoal do trio cujo caminhão agora passava bem perto de nós, subindo para a rua Chile: caetanave. O gosto tão tropicalista pelos trocadilhos, por causa da poesia concreta (Joy ce!) e dos filmes de Godard,
retomado assim pela graça ingênua de pessoas do povo da Bahia, me tocou.
Além disso, a imagem da espaçonave, que trazia a mitologia das viagens siderais tão típica daquela época; o renascimento da grande canção de Carnaval se dando por meu intermédio; o milagre da chuva; tudo compunha uma festa completa de recepção para mim por parte do Brasil que me falava direto ao fundo do imaginário. Quando, horas depois, o trio Tapajós voltava da praça da Sé, eu me aproximei e subi para agradecer. Roberto Pinho, o meu amigo ligado aos misticismos sebastianistas pessoanos, subiu comigo. Acho que Dedé, sempre mais farrista do que eu, preferiu ficar no chão para não se ver presa à exígua área da carroceria do caminhão, cheia de músicos e ainda diminuída pelas paredes da "nave". Dali eu via os pingos da chuva que brilhavam à luz da decoração das ruas: se olhássemos para cima, tínhamos a perfeita impressão de estar mergulhando aceleradamente, por entre as estrelas, no espaço sideral. Embaixo, na rua, eu via pela primeira vez a multidão do Carnaval de uma
distância que revelava sua força e seu mistério.
Depois de tocar "Atrás do trio elétrico", o Tapajós voltou a tocar "Chuva, suor e cerveja". Senti alguma coisa bater em meu rosto que não era uma gota de chuva. Aproximei a mão para descobrir o que era. A coisa voou para meu peito e só aí é que Roberto e eu percebemos que se tratava de uma esperança. Apesar da chuva grossa, essa esperança verde voou na direção das luzes do caminhão e veio pousar em mim.
Eu então disse para Roberto: "Quer dizer que há esperança?". Ele respondeu com a alegria tranqüila de quem não esperaria por nada menos: "Claro!". Seguimos em cima do caminhão até os limites do Carnaval de então (hoje a festa se espraia até Ondina; naquela época, o limite, para esse lado da cidade, era o Campo Grande). Depois dali, o trio parou de tocar e a Caetanave seguiu até o Rio Vermelho, onde tínhamos alugado uma casa, para me deixar. Gil, que não gostava de Carnaval mas acreditava em disco voador, estava dormindo quando o caminhão chegou à nossa porta. O som do gerador o fez acordar pensando em alguma cena de ficção científica, em alguma nave extraterrestre. Ele correu para a varanda da frente e viu suas expectativas confirmadas: no meio da noite, aquela gigantesca ogiva branca piscando luzes tomava conta da rua, parada em frente de casa. Ele demorou a se recompor para tentar entender o que é que estava se passando. Quando me viu descer do objeto estranho do qual o som trepidante provinha, entendeu antes de tudo que a magia e o ordinário se reafirmavam mutuamente, que o simbólico e o empírico não precisavam ser distinguidos um do outro - que, naquele momento forte, o mito vinha fecundar a realidade. A rejeição que o exílio significara não apenas se dissipava: dava lugar a uma carinhosa compensação. Nós, os tropicalistas, diferentemente de muitos amigos nossos da esquerda mais ingênua, que pareciam crer que os militares tinham vindo de Marte, sempre estivemos dispostos a encarar a ditadura como uma expressão do Brasil. Isso aumentava nosso sofrimento, mas hoje sustenta o que parece ser meu otimismo. É que penso e ajo como se soubesse na carne quais as potencialidades verdadeiras do Brasil, por ter entrado num diálogo com suas motivações profundas - e simplesmente não concluo que somos um mero fracasso fatal.
Aprendi então a reconhecer os indícios de formação de forças regeneradoras e, embora saiba que aposto com alto risco, sempre sou levado a dobrar minhas fichas.
A vontade de ter um filho, que surgira nos últimos meses em Londres, não só cresceu em mim como se insinuou também em Dedé. Essa vontade era, em si mesma, uma revolução, pois Dedé e eu sempre estivéramos certos de que nunca teríamos filhos. Pouco depois do Carnaval, ficamos sabendo que ela estava grávida. Nos mudamos para uma casinha no largo do Budião, bem em frente ao mar - e ao seu nível -, no bairro de Amaralina. Um lajedo carcomido pelas ondas e forrado pelo verde luminoso do limo se estendia para além da areia, exposto ao vento na maré baixa e recoberto pela água na preamar. Minha volta para o Brasil (Gil ficou ainda alguns meses em Londres) provocou um certo mal estar naquilo que hoje se chama - algo horrivelmente - de "a mídia". A opinião pública tinha uma vaga idéia a respeito da coincidência entre o AI5 e a evasão de artistas, intelectuais e cantores populares, mas, como a imprensa censurada nada podia relatar, ninguém fazia a menor idéia do que tinha acontecido a Gil e a mim. Uma simpatia espontânea, contudo, cercava nossa presença no país, e a imprensa, num primeiro movimento compensatório, nos saudava, já que nada pudera denunciar. Desse modo ela apenas reafirmava uma rotina de endeusamento dos tropicalistas que durou enquanto o exílio durou. Mas, no momento mesmo da chegada, já alguma publicação de pose mais exigente assumia o tom "desmistificador". Isso era em princípio saudável, pois cada órgão de imprensa - e mesmo cada jornalista tem que se defender das ondas de unanimidade que o acaso produz, à imagem e semelhança do que se pensa ser - e em grande parte é - o sonho das celebridades. O que não justifica que eles frequentemente apresentem, à guisa de resistência, uma mera alternância de louvação inautêntica e depreciação artificiosa. O jornal O Pasquim, com o qual, como já contei, eu vinha colaborando desde Londres, lançou um número especial para a minha chegada em que todos os seus articulistas eram convidados a escrever uma frase carinhosa a meu respeito. Lembro bem de Glauber dizendo que eu era "um gênio - e nós não podemos fazer nada", e Paulo Francis confessando que não acreditava em "iconoclastas que não sabem construir estátuas", mas que eu era um que sabia, e rememorando nossa troca de bilhetes na cadeia, mostrou-se antipático ao uso que eu, no bilhete, fizera da ênclise. Esse mesmo Pasquim estaria, em pouco tempo, mostrando hostilidade a nós, ao tropicalismo e ao fato de sermos baianos - sem deixar de usar uma hipócrita sugestão de decepção política conosco -, numa exibição de um preconceito longamente reprimido. Sendo que Millôr Fernandes aprofundou essa visão nos anos subsequentes e Paulo Francis esperou décadas para dar dela uma versão sofisticada e contundente. O Brasil que encontramos ao chegar já estava na ressaca da luta armada e vivia os últimos momentos antes de o "milagre brasileiro" do presidente Mediel e do ministro Antônio Delfim Netto desmoronar sob o golpe desferido na economia mundial pelos países árabes produtores de petróleo. O desbunde, porém, chegara ao auge. Esse nome que a contracultura ganhou entre nós - a bunda tornada ação com o prefixo desta indicar antes soltura e desgoverno do que ausência - deixava o hip - quadril - dos hippies na condição de metáfora leve demais. Desbundar significava deixar-se levar pela bunda, tomando-se aqui como sinédoque para "corpo" a palavra afro-brasileira que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo (mas que não se confunde totalmente com aquelas nem com este), sendo uma porção exuberante de carne que, não obstante, guarda apolínea limpeza formal. Salvador - com seu Carnaval elétrico e libertário, com suas praias desertas e suas praias citadinas, com sua arquitetura colonial e seus cultos afro-brasileiros - tornou-se a cidade preferida dos desbundados. Mas o Rio tinha feiras hippies e São Paulo bairros de roqueiros. "Todo o mundo" fumava maconha e tomava ácido. Luís Carlos Maciel escrevia sobre essa cena no Pasquim (e depois na edição brasileira da Rolling Stone), interpretando -a de um ponto de vista que migrava do existencialismo sartriano para as religiões orientais. As ruas - sobretudo as do Rio e de Salvador - estavam cheias de rapazes cabeludos e moças metidas em velhas camisolas rendadas. Os apresentadores dos telejornais mais respeitáveis - e muitos jornalistas que hoje exibem desprezo pelo período - ostentavam cabeleiras muito mais longas do que jamais tinham tido e que jamais voltaram a ter em toda a sua vida.
O grupo Novos Baianos - que a essa altura produzia não uma fusão mas uma sugestiva (e abrasiva) justaposição de chorinho e rock - vivia em uma comunidade, primeiro num amplo apartamento que eles encheram de tendas e cabanas no bairro de Botafogo, depois num sítio na área semi-rural de Jacarepaguá. Torquato, em sua coluna de jornal, polemizava com o Cinema Novo, numa campanha pelo "cinema marginal", inspirado na agressividade inicial de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. Mas os próprios cineastas do Cinema Novo tinham deixado seus cabelos crescerem, queimavam fumo e tomavam ácido. Gal era a musa desse universo. Um trecho da praia de Ipanema que ela frequentava - justamente onde tinha se amontoado areia dragacia do fundo do mar para a obra de construção de um "emissário submarino" de esgoto - ganhou o apelido de "dunas da Gal". Em Salvador os desbundados se
encontravam na praia do Porto da Barra, uma enseadinha perfeita entre dois fortes coloniais e disposta de frente para o pôr-do-sol como um anfiteatro. Era a tradicional praia popular da cidade. Eu agora voltava a freqüentá-la. Ali - como nas dunas da Gal - os rapazes não usavam sungas de praia mas as cuecas mínimas (e um tanto transparentes) que já traziam por baixo das calças. E alguns casais homossexuais (sobretudo femininos) não se esforçavam muito em esconder suas carícias. Mas os hippies propriamente ditos, os antitecnológicos e antiurbanos radicais, se refugiavam na distante praia de Arembepe. Lembro que Glauber, irritado com nossa identificação com essas turmas, disse numa entrevista (ecoando - mas com independência - os esboços de hostilidade do Pasquim ) que odiava essa "alienação baiana" em que todos iam "atrás do trio elétrico a Arembepe babar dendê". O fato é que só vim a conhecer Arembepe perto dos anos 80, e aí já era uma outra cena, embora os remanescentes dos hippies continuassem a viver numa aldeia próxima, entre lagoas cujas águas aparecem douradas nas fotografias - mas eu nunca fui a essa aldeia. Zé Agrippino e Maria Esther tinham voltado da África transfigurados em ultra hippies e viventes de uma "nova era" que, por causa do modo como eles se punham nela, combinando envolvimento profundo e distanciamento crítico, nada tinha do to enjoativo que a expressão conota - conotava já - para mim. Eu, que era visto como precursor de tudo isso - afinal deixara meu cabelo crescer bem antes da maioria, tinha tomado auasca muito cedo, tinha adotado o neo-rock'n'roll inglês quando toda essa gente ainda o repudiava, tinha sido preso e exilado e voltava decepcionando quem esperava rock'n'roll e política (mas reiterando a ambiguidade sexual notada em minha figura cênica desde antes da partida) -, sentia- me tão deslocado (ainda que também encantado) quanto me sentira nos festivais da ilha de Wight, de Glastonbury ou de Bath: sentia-me instalado no tempo, mas olhava à frente, em busca do caminho da música popular brasileira, do caminho do Brasil, do meu caminho nisso.
Eu não era um desbundado: não tomava drogas, mantinha algum conforto burguês para minha família com os proventos do meu trabalho na música, amava o essencial da cultura do Ocidente. Rogério tinha inventado um apelido para mim que me agradava: Caretano. Os músicos que eu conhecera ao chegar ao Rio em 64 usavam drogas como um exercício de alheamento do mundo prosaico dos homens sensatos, e de aproximação do numinoso, do transcendente oti da iluminação - e, naturalmente, da "musicalidade". Ser ou estar "louco" era considerado um privilégio. As pessoas que nunca "se enlouqueciam" eram merecedoras de desprezo. É curiosa a dubiedade do termo que esses músicos tomaram emprestado dos bandidos para designar os que não se drogavam: caretas. Aparentemente, essa palavra - que tradicionalmente significa "máscara" ou "mascarado" - surgiu entre os malandros como uma maneira jocosa de dizer "cara" (careta é um diminutivo de cara): de alguém que não tomou nada para mudar a mente diz-se que está "de cara limpa". Muitas vezes ouvi músicos dizerem que tiveram que enfrentar essa ou aquela situação "totalmente de cara". Algumas vezes ouvi quem dissesse: "Eu estava de cara limpa, de cara, de careta mesmo, caretinha". Assim, careta, na gíria bandida dos músicos, queria dizer, em princípio, o contrário de mascarado. Mas seu uso como um depreciativo dos não usuários de drogas terminou por trazer de volta algo do antigo valor semântico, já que drogar-se significava - com sua conotação de abrir-se para Deus e para a música - desmascarar-se. Os "caretas" são os burgueses sempre de cara limpa e sempre de máscara.
Em 72 quase tudo era anatemizado como careta. O trocadilho armado por Rogério com esse termo e o meu nome - Caretano - me parecia trazer uma saudável distensão, como se aí se iniciasse um processo de superação dos fanatismos revolucionários e do luto por suas derrotas, habilitando-nos assim a poder reconhecer suas vitórias parciais. Não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tampouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo; não tínhamos superado o Ocidente, não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. Mas as coisas nunca voltariam a ser como antes.
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