Ele cantou a alma passional do brasileiro
Por José Teles
Nelson, cem anos
Nelson Gonçalves, que teria feito 100 anos neste dia 21 de junho de 2019, por pouco não nasceu no Uruguai. Seu Manoel Gonçalves e dona Libânia de Jesus, portugueses, ganhavam a vida como cantores ambulantes, com um repertório de canções populares portuguesas. Naquela noite de 21 de junho chegaram a Santana do Livramento, fronteira com o Uruguai. A intenção era ganhar algum dinheiro cantando na feira na fronteiriça Rivera, no país vizinho. Mas Dona Libânia sentiu as dores do parto e interromperam a viagem.
Naquele dia nasceu Antônio Gonçalves Sobral, um dos mais bem sucedidos nomes da música popular brasileira, recordista em vendas de disco, com uma trajetória atribulada, de bons e maus momentos. Muitas passagens na biografia de Nelson Gonçalves são controversas, incluindo o dia em que nasceu. No registro está como 25 de junho. Mas Nelson sempre disse que nascera no dia 21 (às vezes no dia 19). Provavelmente foi registrado dias depois do nascimento. No documento não consta o “Sobral”. Apenas Antonio Gonçalves.
Nada a estranhar. Seu Manuel chegou ao Brasil em 1902, e Dona Libânia em 1911. A obrigatoriedade de imigrantes se registraram na Delegacia Especial de Estrangeiros só foi instituída em 1938, durante o Estado Novo. Ainda assim, o casal só regularizou sua situação em 1942. Não sem ter certeza se o pai do cantor se chamava Manuel ou Manoel.
Um bom exemplo do difuso limite entre realidade e ficção na biografia de Nelson Gonçalves está num episódio acontecido na Lapa, bairro boêmio que costumava frequentar. O cantor se encontrava no balcão de um botequim diante de um traçado (mistura de vermute, ou conhaque, com cachaça) quando um sujeito deulhe um esbarrão e derramou a bebida. Nelson virou-se e acertou um jab no queixo do desastrado, pondo-o a nocaute.
Os fregueses apressaram-se em lhe revelar em quem ele batera: Miguelzinho Camisa Preta, malandro temido na Lapa. Porém, nunca existiu um Miguelzinho Camisa Preta. Miguelzinho foi, sim, um capoeirista. Houve um Camisa Preta que com a navalha na mão era um perigo. Mas morreu em 1912.
Aos cinco anos Antônio já cantava nas feiras com o pai e a mãe. Cantou até os nove, quando seu Manoel, decidiu deixar a música, e se estabelecer com emprego fixo em São Paulo. O filho foi jornaleiro, engraxate, trabalhou numa tamancaria carregando toros de madeira (com QUE se faziam os tamancos). Aos 14 anos, o pai conseguiu-lhe emprego na fábrica de metais Wolf. Antonio, no entanto, queria ser cantor. Embora tenha tentado por pouco tempo ser boxeador.
Em 1939, já casado, chegou a ser contratado pela rádio PRA-5, da capital paulista. Foi dispensado, e contratado pela Rádio Cruzeiro do Sul. O irmão mais velho, Quincas tornou-se profissional do rádio antes de Antonio, mas nunca escapou da sombra do irmão, quando este entrou no mundo da música como Nelson Gonçalves. Dispensado pela Cruzeiro do Sul por exigir aumento no salário, Nelson foi para o Rio, onde penaria durante três anos.
Fez amizades na boemia, mas demorou a agradar aos que comandavam o rádio carioca. Passou por pensões baratas no Catete e na Lapa, dormiu em bancos de praça, mas acabou sendo contratado pela Mayrink Veiga, grande emissora de então, onde estreou em 28 de agosto de 1941. Estreou em disco no mesmo ano, com um 78 rotações que trazia no lado A Se Eu Pudesse Um Dia (Osvaldo França/Orlando Monello) e, no B, Sinto-me Bem (Ataulfo Alves). O sucesso viria com Renúncia (Roberto Martins/Mário Rossi), lado B do bolachão com o samba Isso Aqui Tem Dono (Benedito Lacerda/Darci de Oliveira). Muita gente achou que se tratava de Orlando Silva. Soava realmente parecido para quem não sabia das sutilezas das interpretações do “Cantor das Multidões. Que fazia malabarismos harmônicos, brincava com o andamento das canções, feito João Gilberto anos mais tarde. Curiosamente o baiano João, em tempos quando se deixava ser entrevistado, revelou que sua maior influência foi Nelson Gonçalves:
“Eu era um menino ainda, lá em Juazeiro – pequena cidade do interior baiano onde nasci – tinha a cabeça povoada de sonhos, o coração repleto de esperanças, quando ouvi falar em Nelson Gonçalves. Desde o primeiro momento em que seu nome ficou gravado no meu cérebro procurei ouvi-lo... Ouvi-o e, a partir daquele instante, incorporei-me à legião do criador de Boemia. Confesso que, na minha inocência de garoto pobre, desejei ardentemente ser um Nelson Gonçalves quando crescesse” (à Revista do Rádio, em 1960). Talvez por isso, Nelson Gonçalves poupasse João Gilberto quando falava mal da bossa nova.
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