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terça-feira, 12 de novembro de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Tem Dó

O que seria da canção popular sem os desamores e as dores de cotovelo? Na verdade, desde os primórdios, o amor é senhor: desde que a canção é canção é assim. Mesmo na solar bossa nova, com sua tentativa de negar a fossa (cantar o dia, o riso e a flor), há, vira e mexe, uma gota de sangue final.
Ideologias e gostos à parte, mesmo fora da realeza da era do rádio, a fossa (as histórias de amor romântico) ganhou as ruas, encheu os carnavais de dengo, graça e malícia (ancorados em pierrots e tais) e atravessa, ainda hoje, nossa história.
Os Cariocas é um dos grupos vocais mais antigos do Brasil, criado por Ismael Neto em 1942. A excelência dos arranjos vocais é o principal atrativo do grupo que, depois de várias reorganizações (de estilo, mas sempre tendo como alvo e matriz a canção popular brasileira, e de integrantes), além de algum recesso, ainda é uma referência aos bons cantores.
"Tem dó", de Baden Powell e Vinícios de Moraes, lançada pelo grupo no disco Mais bossa com Os cariocas, de 1963, é um belo registro e exemplo do alcance dos rapazes. A letra, com o sofisticado verso em eco - me diga agora, ora, ora - registra com pontual despudor as cobranças e os acertos de conta de uma relação amorosa.
Sim, há a ironia bossanovista contra o sofrimento, o gesto leve e desapegado do sujeito ardido de mar e sol. Mas isso não nega, ao contrário, deixa vazar, a insegurança de quem canta tal relação: cheio de si, o que ele mais quer é que o outro, ora, caia na rede de sedução. Ele gamou o outro exatamente pelo jeito (algo) cafajeste de ser, portanto, o outro não tem do que reclamar: senão ter dó (expressão carregada de cinismo erótico) e amar.
A melodia gostosa dá colorido às palavras de um sujeito que não aceita a separação e ainda afirma que o outro não achará "coisa melhor". Sem dúvidas, a interpretação d'Os Cariocas, com a sobreposição de vozes, amplia a intenção e a capacidade de alcance da mensagem, pois não se sabe quem fala, nem para quem se fala (não há nomes), tornando a canção universal: disparada contra o sol e atingindo muitos corações.


***

Tem dó
(Baden Powell / Vinicius De Moraes)

Ai, tem dó
Quem viveu junto não pode nunca viver só
Ai, tem dó
Mesmo porque você não vai ter coisa melhor

Não me venha achar ruim,
Porque você me conheceu assim
Me diga agora, ora, ora
Não foi assim que você gamou
Você sabe muito bem
Que mesmo louco assim gamei também
Me diga agora, ora, ora
Será que alguém não foi quem mudou






* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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