Chico mudou? Nem tanto. Mas o Brasil, sim. Vencedor do Prêmio Camões suscita sentimentos opostos como nunca antes em sua carreira
Por Alexandre Luchesse
Há artistas que consolidam a carreira com bruscas mudanças de direção. Prêmio Nobel em 2017, Bob Dylan é um deles: depois de ser alçado a arauto da música de protesto norte-americana, deixou o violão de lado e abraçou a guitarra elétrica; mais tarde converteu-se ao cristianismo e o celebrou em discos e shows, para anos depois abandoná-lo em um álbum intitulado Infidels (1983). Já o mestre da canção brasileira Chico Buarque não é conhecido por guinadas radicais em seu trabalho. Ao contrário, amadureceu sua poesia e musicalidade a cada novo disco sem jamais negar o anterior ou tratá-lo como página virada.
Apesar da regularidade como artista, Chico foi capaz de gerar reações diversas nos ouvintes e na opinião pública ao longo do tempo. Praticamente uma unanimidade nacional no fim dos anos 1970, brilhando no rádio e na televisão, ele hoje divide opiniões: ao mesmo tempo em que é incensado por fãs e pelo mundo letrado, provoca reações de ódio e repulsa nas redes sociais – e também na rua.
O mesmo autor que, aos 75 anos, ganhou recentemente o Prêmio Camões, láurea que consagra seu trabalho em toda a comunidade de língua portuguesa no planeta, recebe xingamentos por conta de seu posicionamento político em caixas de comentário da web e até ao atravessar a rua em seu bairro, o Leblon, no Rio.
– Chico já causou diferentes reações em fases diferentes da carreira, mas nunca de maneira tão extremada como hoje – assegura a jornalista Regina Zappa.
Autora de livro biográfico sobre o músico, dramaturgo e escritor carioca, Regina concorda que Chico não empreendeu nenhuma mudança radical no seu trabalho que justifique as alterações de reação do público. O que mudou, na verdade, foi o Brasil.
– As críticas de hoje ao Chico não são voltadas ao seu trabalho, e sim aos seus posicionamentos políticos. Mas é importante observar que ele não mudou. Ele sempre se posicionou politicamente. Sempre manteve a coerência colocando-se à esquerda. No entanto, parte da sociedade desenvolveu um ódio tão grande ao PT e ao Lula que o estende a qualquer um que apoie o ex-presidente, ou até mesmo seja neutro – diz Regina.
O autor de A Banda e Cara a Cara, perseguido pela censura durante a ditadura militar, de fato foi um dos apoiadores mais constantes de Lula ao longo de sua carreira. Mesmo em momentos de menor adesão da classe artística, a exemplo das eleições de 2006, logo após o escândalo do Mensalão, Chico manteve publicamente seu voto a favor do petista. Em 2008, gravou um vídeo de apoio a Maria do Rosário, que disputava a prefeitura de Porto Alegre, perdendo para José Fogaça.
Com Boulos e Lula, Chico reafirmou posicionamento político em 2016Ricardo Stuckert / Instituto Lula
Esse apoio a duas personalidades muito criticadas pela fatia de militantes da direita mais radical, contudo, ainda não gerava ataques tão incisivos como os de hoje em dia. A crescente polarização política, que ganhou espaço no país a partir de 2013, tornou o artista um alvo.
Um dos ataques mais conhecidos ocorreu em dezembro de 2015, quando saía de um restaurante e foi abordado por transeuntes que questionaram seu apoio ao PT. Entre eles, estavam o então rapper Tulio Deck, hoje artista visual, e o estudante Álvaro Garneiro Filho, herdeiro de um megaempresário. A confusão foi gravada em vídeo e se espalhou via internet. No canal Glamurama, do YouTube, mais de 600 mil pessoas viram os rapazes gritando frases como "petista, vá morar em Paris" e "o PT é bandido" para o septuagenário compositor.
Pouco mais de um ano antes do bate-boca, o colunista Rodrigo Constantino havia incluído o nome de Chico Buarque em seu livro Esquerda Caviar, no qual critica o fato de o compositor manter um apartamento na França e ao mesmo tempo "adorar o socialismo". "A marca registrada dessa esquerda caviar, que adora o socialismo do conforto de Paris, que prega uma radical mudança no estilo de vida dos outros para mitigar o aquecimento global, é a antiga máxima 'faça o que eu digo, mas não o que faço'", escreveu Constantino, fornecendo combustível à rejeição.
Depois que o caso ganhou as redes, Álvaro Garneiro, então com 19 anos, pediu desculpas pelos impropérios.
– Acho que o sr. Chico é uma pessoa mais velha e merece respeito – declarou à Folha de S.Paulo.
O herdeiro também afirmou que entrou na discussão depois de o tumulto ter se formado, e que precisou perguntar a um garçom quem era o "senhor envolvido na discussão".
Mudanças na própria esquerda
Abalos na carreira de Chico Buarque já haviam ocorrido antes. Um dos primeiros se deu com a peça Roda Viva, escrita por ele e encenada por José Celso Martinez Corrêa em 1968. Naquela época, Chico era conhecido como o simpático cantor do sucesso A Banda, canção vencedora do Festival de Música Popular Brasileira de 1966. Muita gente que foi ao teatro para ver o trabalho do menino de voz suave e olhos claros saiu escandalizada com a performance criada por Zé Celso, que combinava erotismo com imagens sacras e até um fígado cru sendo dilacerado em cena, espirrando sangue sobre os vestidos das madames que costumavam se sentar às primeiras filas.
Em São Paulo e em Porto Alegre, o espetáculo foi vítima de repressão organizada por grupos paramilitares. Houve destruição de cenário, espancamentos e sequestro de atores.
Nos anos 1970, canções de protesto como Apesar de Você e Cálice também causaram problemas ao cantor e compositor. A censura fazia com que ele precisasse reescrever letras e criar malabarismos poéticos para expressar opiniões que não podiam ser ditas diretamente.
Para Regina Zappa, os dois momentos de perseguição são muito diferentes do que é vivido atualmente por Chico:
– No caso do Roda Viva, foram ações por parte de milícias, de comandos, não da população. É claro que ele foi perseguido, mas era uma perseguição oficial, por parte da autoridade policial, da ditadura. Sobre as canções de protesto, era esperado dos artistas que se comportassem contra a censura e a favor da liberdade. O que ocorre agora é bem diferente: a ação não parte da polícia, dos comandos ou da censura; é uma fatia da sociedade que começou a destilar um ódio insensato.
Músico e professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Ri Grande do Sul (UFRGS), Guto Leite lembra que Chico não é questionado só por quem opta por uma postura política mais conservadora:
– A direita, de certa forma, faz uma divisão entre o Chico artista, e talvez até reconheça sua grandiosidade nesse campo, e o ativista. “Como artista ele é ótimo, o problema é quando se mete em política” é uma frase que já ouvi. Mas acho que ele tem apanhado da esquerda também, principalmente da esquerda mais ligada a pautas identitárias.
Letras do autor já levantaram discussões sobre machismo e lugar de fala, lembra Leite:
– Ele recebeu acusações de machismo. E também tem músicas como Gente Humilde e Sinhá, em que o “eu lírico” é negro ou negra ou comenta a escravidão. Há sempre uma espécie de ressalva na recepção desse tipo de canções dele: “Ah, mas ele é um sambista branco. Não é o Paulinho da Viola”. Ao mesmo tempo, com a polarização, a esquerda parou um pouco de pegar no pé dele nesse sentido.
Também em relação à crítica da esquerda identitária, não foi Chico Buarque que mudou, mas o Brasil e seu novo cenário musical que propiciaram uma nova leitura de seus trabalhos.
– Em certa medida, são o rap e as canções que vieram depois dos anos 1990 que deixaram o Chico em outro lugar em relação à esquerda. No entanto, é importante lembrar que, antes disso, ele deu voz a muita gente por meio da voz dele – pontua Guto Leite.
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