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sábado, 28 de setembro de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso


PARTE IV

BARRA 69

Quando penso no número de pessoas que morreram em prisões brasileiras a partir de 68 (e que foi pequeno se comparado ao número de vítimas argentinas ou chilenas da década seguinte); quando penso nos que sofreram tortura física, ou nos que foram expulsos do país em 64 e só puderam voltar na anistia em 79, concluo que minha prisão de dois meses foi um episódio que nem sequer mereceria referência. Muitos dos que sofreram maiores maus-tratos - ou que foram presos mais vezes e por mais tempo - passam rápido pelo assunto, muitas vezes em tom de descaso. O próprio Gil não tem dos dias de cela e xadrez uma lembrança tão amarga ou tão recorrente quanto a minha. Tendo percebido cedo que algo assim poderia acontecer, e em tudo mais adulto do que eu, em vez de simplesmente se sentir aniquilado, pôde ao menos tentar transformar a experiência em algo produtivo para sua formação. Na cadeia ele achou oportunidade para exercitar uma espécie de ascetismo, deixou de comer carne, adivinhou sabedorias orientais que o levaram a estudos posteriores e à alimentação macrobiótica. Esta última, literalmente, mudou sua vida: seu corpo, sua pele, seu temperamento mudaram para melhor e para sempre. Enquanto eu apenas descobria que o sofrimento não serve para absolutamente nada. As muitas páginas que aqui dediquei ao episódio da prisão se explicam por ser este um livro sobre a experiência tropicalista vista de um ângulo muito pessoal meu. E se justificam por revelar o quanto eu era psicológica e, sobretudo, politicamente imaturo.
Depois de passar quatro meses confinados em Salvador, Gil e eu fomos convidados a deixar o país. Essa decisão terrível foi resultado das conversas de Gil com o coronel Luís Artur, chefe da Polícia Federal na Bahia, a quem tínhamos tido deveras de nos apresentar diariamente durante o período de confinamento e cuja simpatia Gil conquistara por causa da aparente afinidade entre seus novos interesses religiosos e o espiritismo do coronel (os militares brasileiros, tradicionalmente de formação positivista, tornaram-se, em grande número, kardecistas - não poucos combinando Allan Kardec com Auguste Comte). Sem direito a aparições públicas, não ganhávamos dinheiro suficiente para sustentar as famílias. No fim do segundo mês, Gil começou a pedir ao coronel que intercedesse em nosso favor junto a seus superiores no Rio e em Brasília. O coronel, que desde nossa chegada externara desaprovação ao fato de lhe termos sido entregues sem nenhum papel que documentasse nosso "processo" ou mesmo nossa prisão, empenhou-se em nos ajudar. Seus reiterados pedidos de que nos deixassem trabalhar encontrou como resposta a sugestão de nossa saída do país. Tendo prendido dois emergentes astros da música popular a quem rasparam os cabelos famosos, temendo que eles se tornassem, depois da prisão injustificada, inimigos mais ferozes do que os tinham suposto - e inimigos com poderes sobre a opinião pública -, os militares ficaram sem saber o que fazer com eles. O exílio, imposto com a mesma grosseira informalidade da prisão, foi a solução que lhes pareceu inteligente. Não tínhamos dinheiro para comprar as passagens e financiar as estadias dos primeiros meses. O coronel convenceu as autoridades mais altas de que precisávamos fazer uma apresentação em Salvador para conseguir esse dinheiro, assegurando que não faríamos dela uma incitação à subversão. Gil e eu estávamos morando com Dedé e Sandra numa casinha alugada no desenxavido bairro praieiro da Pituba. Apareceu por lá um menino de lábios grossos que tocava guitarra muito bem. Todos o achavam parecido com Mick Jagger. Era Pepeu Gomes. Devia ter dezesseis anos e era um prodígio. Seus irmãos também eram bons músicos. Carlinhos, o mais velho, tocava contrabaixo. Jorginho, então uma criança de quinze anos de idade, já era um baterista que soava como um profissional. Juntamente com alguns amigos, esses membros de uma família humilde e numerosa do bairro do Garcia formavam um grupo de rock chamado Leifs, o que quer que isso queira dizer. Com ele ensaiamos os números que faríamos no Teatro Castro Alves antes de deixar o Brasil. Era uma época em que se alimentavam alucinações, fantasias de outras dimensões, misticismos vários. Gil estava interessado em religiões orientais e ouvia com interesse histórias sobre discos voadores. Além das drogas e da política, os assuntos ocultos e esotéricos atraíam quase todos os nossos conhecidos. Por toda parte se mesclava um medo das sombras com a alegria de livrar-se da cadeia da causalidade. Eu tinha verdadeiro ódio a essa perene fome de assombros e milagres. Como eu era muito vulnerável à tendência infantil a cair prisioneiro das minhas próprias fantasias, reagia com agressividade a essa moda-. "Vocês adoram o que não existe, pois bem, eu só gosto do que existe!", eu gritava em meio às conversas sobre astrologia, teosofia, macrobiótica e tarô. O sebastianismo pessoano de Roberto Pinho (que, de maneira fascinante, incluía atenção propriamente religiosa ao candomblé) se nutria também desse clima - e eu tendia a rejeitá-lo com temor. Na verdade eu achava que minha vida já tinha me levado longe demais da minha dimensão cotidiana. A viagem de auasca seguida da prisão, a própria pletora de significados atribuíveis à minha elevação à condição de celebridade, tudo me fazia temer a perda da razão. Nos anos 80, quando foi escolhido por Collor para o Ministério da Cultura, o diplomata e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet veio à minha casa no Rio para inteirar-me de suas intenções e pedir-me apoio. Eu tinha justo lido seu livro Razão cativa e, no fim da nossa conversa, disse-lhe: "Sou um irracionalista apaixonado pela razão". E ele me disse que com ele era o simétrico inverso. Em 69, no i. nascedouro do enjoativo clima new-age, eu esperneava contra o irracional. Dedé estava totalmente comigo nisso. Ela era, a rigor, muito mais genuinamente avessa a misticismos do que eu. Diferentemente de Gil, nós dois saíamos à noite. Íamos com amigos a um barzinho improvisado no pátio do Clube Cruz Vermelha, no Campo Grande, um boteco muito pobre chamado Brasa, sem qualquer conforto ou vantagem, nem mesmo higiene nos banheiros. Vale observar como achávamos natural que ambientes assim nos atraíssem. O fato é que nossos critérios eram realmente diferentes dos critérios burgueses. Esse bar, podendo servir a cerveja que queríamos beber, oferecia uma atmosfera semelhante à das barracas de rua no Carnaval, e por isso nos parecia muito mais inspirador do que as boates de corrimões dourados e os restaurantes de espaldares altos (em que Salvador, de resto, não era pródiga, e que nós não estávamos em condições financeiras de frequentar). De fato, nossas conversas nesse boteco se animavam e encontrávamos alguma felicidade irresponsável em meio à opressão. Muita gente interessante se aproximava desse tipo de ambiente - e fugia dos do outro tipo. No Brasa conhecemos Moraes e Galvão, uma dupla de compositores que depois veio a ser o núcleo do grupo Novos Baianos. Dedé adorava ouvir as músicas deles na voz de Moraes, que era quem fazia as melodias, tocava violão e cantava. Mais tarde, uma outra futura integrante dos Novos Baianos apareceria por ali - e em nossa casa da Pituba. Era uma menina muito branca e muito bonita, de cabelos longos e com os seios cobertos apenas por uma estreitíssima faixa de brim cortada da bainha da calça jeans. Ela se chamava Bernardete, mas Alvinho Guimarães (sempre ele) inventara o nome Baby Consuelo para a personagem de um filme que nunca foi feito, e o nome colou-se para sempre a essa menina que tinha sido escolhida para interpretá-la. Eu ia também ao estádio da Fonte Nova para ver futebol. Junto com Fred, Hermano Penna, Pedro Bira e outros amigos de Dedé, encontrava grande alegria nas tardes ensolaradas e festivas das grandes partidas. Foi o único período de minha vida em que o futebol teve presença considerável. A imprensa, sob censura cerrada, não podia sequer sugerir que Gil e eu estávamos nessa situação excepcional. O público mal notava nossa ausência nos palcos e na tv. Vagos rumores de que tínhamos sido presos não chegavam a se confirmar. A jornalista Marisa Alvarez Lima - que tinha me apresentado a Hélio Oiticica - veio a Salvador e fez uma reportagem em que eu aparecia fotografado por teleobjetiva e em cujo texto apenas se dizia misteriosamente que eu estava em Salvador e parecia triste. Gil e eu fizemos, cada um de nós, um disco nesse meio tempo.
Como não podíamos ir ao Rio ou a São Paulo, fizemos as gravações num estúdio pequeno de Salvador (acho que se chamava Estúdio J. S.), apenas com o violão. As fitas foram enviadas para São Paulo ou Rio para que Rogério Duprat adicionasse baixo, bateria e orquestra. Gil tocou violão em todas as faixas do meu disco. Não havia proibição de radiodifusão de nossas músicas. A atitude do poder repressivo brasileiro era algo errática, mas não o suficiente para torná- lo ineficaz. Lembro apenas da decisão tomada pela própria gravadora de não lançar um compacto com uma gravação minha feita logo antes de sermos presos. Era um lindo samba-R&B de Jorge Ben chamado "Charles, Anjo 45", uma saudação romântica a um herói marginal ("Robin Hood dos morros, rei da malandragem") de quem era dito que fora "tirar, sem querer, férias numa colônia penal". A canção louvava um tipo hoje fora de moda: o bandido de coração bom, cuja generosidade é apenas complemento de sua caracterização como protesto vivo contra as injustiças sociais.
Embora estas últimas não fossem uma preocupação de Jorge Ben, o seu Charles sendo antes um modelo benigno daquilo que hoje se descreveria como o traficante que se torna chefete de favela e toma para si as responsabilidades que deveriam estar nas mãos do poder público, ao preço de impedir que a lei chegue a seus territórios.
É inegável que essa caracterização do personagem fazia-o mais atraente aos meus olhos do que os heróis (ou vítimas) puros e justos das canções de protesto.
Ao final da canção, anunciava-se uma grande festa com "batucada, feijoada, uísque com cerveja, muitas queimas de fogos e saraivadas de balas pro ar": "Antes de acabar as férias o nosso Charles vai voltar/ E o morro inteiro feliz assim vai cantar". Todos acharam, com razão, que a coincidência com a minha própria prisão soaria como uma provocação. Mas os militares não estavam muito preocupados com nossas canções: o assombro diante da anarquia comportamental e a desconfiança de ligações com ativistas radicais - apesar da hostilidade ostensiva da esquerda convencional - é que os motivaram. De todo modo, quase não se vive de direitos autorais no Brasil. Ao contrário dos países ricos, aqui se gravam discos para possibilitar shows que, em longas temporadas nas grandes capitais e excursões pelo resto do país, garantirão as finanças das estrelas.
O show do Castro Alves em 69 foi um momento inesquecível para muitos. Eu, no entanto, não tenho dele uma lembrança muito precisa. Rogério, como já contei, tinha me feito a observação de que, quando a gente é preso, é preso para sempre, e eu me sentia sob uma pesada sombra. Roberto Santana - o mesmo que tinha nos produzido no Vila Velha - ficou encarregado de pôr o novo show no palco. Lembro apenas de Dedé fazendo um colete com espelhinho.s e de que alguém trouxe de São Paulo - e ofereceu graciosamente - uma máquina de projetar aquelas bolhas coloridas que são a marca do final dos anos 60 e do início dos 70. O momento em que cantei "Cinema Olímpia'', minha (única?) canção inédita nesse show, está gravado em minha lembrança como tendo sido consideravelmente emocionante, com muitas caras cheias de vida na plateia lotada. Penso hoje em como teve pouco significado para mim o fato de esse show coincidir exatamente com a chegada dos primeiros homens na Lua. De fato, tanto nós quanto o público que lotava o Teatro Castro Alves estávamos perdendo a transmissão pela televisão do grande acontecimento. Isso nunca pesou na decisão quanto à data do show. Mas Gil pelo menos quis cantar "Lunik 9" - uma sua canção já então velha de três anos em que ele fala da iminente morte do "romantismo" por causa da profanação da Lua pelas viagens espaciais. Ele na verdade estava exultante com a "conquista" da Lua, e cantava as palavras ingênuas e nostálgicas com doce ironia. Muito mais vivo em minha memória está o momento em que Gil me mostrou "Aquele abraço", canção que ele cantaria pela primeira vez em público naquele show. Estávamos na sala da casinha da Pituba e o samba me fez chorar. O brilho e a fluência das frases, a evidência de que se tratava de uma canção popular de sucesso inevitável, o sentimento de amor e perdão impondo-se sobre a mágoa, e sobretudo o dirigir-se diretamente ao Rio de Janeiro, cidade que sinto tão intimamente minha por causa da estada de um ano entre os treze e os catorze - e tão minha em outro nível também, por ser, como diz João Gilberto, "a cidade dos brasileiros" -, tudo isso me abalava fortemente e eu soluçava de modo convulsivo. No show, a platéia também foi tomada pela música, e cantou-a com Gil como se já a conhecesse de muito tempo. O lugar onde a ironia se punha nessa canção - que parecia ser um canto de despedida do Brasil (representado pelo Rio, como é tradição) sem sombra de rancor - fazia a gente se sentir à altura das dificuldades que enfrentava. "Aquele abraço" era, nesse sentido, o oposto do meu estado de espírito, e eu entendia comovido, do fundo do poço da depressão, que aquele era o único modo de assumir um tom de "bola pra frente" sem forçar nenhuma barra. Nunca esta canção deixará de ter, para mim, uma importância afetiva semelhante à de "Chega de saudade", à de La strada, à de Les mots.
A Polícia Federal se incumbiu de pôr em ordem nossos papéis o mais rápido possível para que viajássemos. Gil fez uma viagem preliminar ao Rio para acertar detalhes. Não seríamos exilados sem passaporte - como muitos brasileiros o foram naqueles anos. Nossa vinda de Salvador para o Rio foi marcada de acordo com determinações da Polícia Federal. Dois agentes estavam à nossa espera no aeroporto e estiveram conosco nos três dias subsequentes. Eles nos tratavam como se a qualquer momento pudéssemos mudar de ideia e fugir. Ficou marcado em minha memória o comentário feito por Gil, numa das salas da pf em que estivemos, sobre o valor que ele dava à aparição de Martinho da Vila como prenhe de futuro vital para o samba e a MPB em geral. Na conversa voltou o nome de Milton Nascimento, que Gil considerava, já havia um bom tempo, o maior talento surgido desde que nós começáramos. Gil dizia que Martinho era a segunda coisa mais importante depois de Milton - num outro nível e por razões muito diferentes. Em breve os policiais nos estavam conduzindo até o interior do avião que nos levaria para a Europa e um deles me disse: "Não volte nunca mais. Se pensar em voltar, venha se entregar logo que chegue para nos poupar trabalho!."
Saltamos em Lisboa na manhã seguinte sem que eu tivesse dormido um só segundo. Guilherme Araújo - que tinha ficado na Europa sem poder voltar ao Brasil desde o episódio do Midem - estava nos esperando no aeroporto em companhia de Roberto Pinho. Conversamos muito sobre que rumo tomar. Guilherme já tinha se decidido por Londres (já que nem cogitaríamos de ir para os Estados Unidos), mas queria que víssemos com nossos próprios olhos. Ficamos cerca de uma semana em Portugal. Tivemos tempo de passar um dia em Évora, de ir a Sesimbra (onde o suposto alquimista fez a interpretação sebastianista de "Tropicália") e de ouvir fado em várias casas de Lisboa.
Tudo nos era enternecedor mas deprimente. Portugal ainda estava sob Marcelo Caetano, que era o herdeiro político de Salazar, e a impressão que se tinha era a de um povo triste jogado fora da História em um belo lugar. Dali fomos para Paris, onde nos sentimos bastante intranqüilos. Estávamos em 69 e a cidade vivia a ressaca dos acontecimentos de maio do ano anterior. O proverbial mau humor dos parisienses estava à flor da pele e os policiais nos abordavam a cada esquina para pedir documentos.
Guilherme nos apresentou a Violeta Gervaiseau, irmã de Miguel Arraes, que estava exilada na França desde 64. Ela nos acolheu com um misto de carinho e firmeza que só se encontra nos verdadeiros nordestinos (os baianos não são nordestinos). Mas as adoráveis noitadas em sua casa. uma casa de gente franca, elegante e inteligente (Violeta sendo-o mais exuberantemente do que todos, antes ressaltando do que obscurecendo essas mesmas qualidades na discrição de seu marido Pierre), eram uma continuação - intensificada pela distância - dos embates ideológicos vividos no Rio de Janeiro. Assim, Lisboa era anacrônica e Paris, tensa. Londres apresentava o oposto desses dois cenários. Estável, tranquila e na última moda, a capital inglesa, com toda a sua estranheza nórdica e não latina, e com seu clima intragável, mostrou-se a solução mais racional. Seja como for, eu mais aceitei a decisão do que influí nela, embora fingisse discutir os pontos que apareciam nas conversas.



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