Fui jogado numa solitária mínima onde só havia um cobertor velho no chão, uma latrina e um chuveiro que lhe ficava quase exatamente por cima. Tenho uma lembrança imprecisa da porta ou grade que separava a cela do pequeno corredor. Às vezes parece-me que era uma porta toda maciça com apenas uma portinhola gradeada no alto e uma outra portinhola, esta compacta, perto do chão, por onde os carcereiros punham a comida intragável sem se deixarem ver. Outras vezes, parece-me que a parte com grades começava à altura do meu peito e ia até o teto. O fato é que lembro de uma porta maciça de metal pintado de tinta a óleo creme encardida e da portinhola baixa pela qual se botava o prato de alumínio com a comida ou a caneca de café. E lembro também de poder ver o soldado de guarda no corredor. Mas não com facilidade. Algum tipo de esforço era necessário para que eu visse um pouco do que havia fora da cela. Esse esforço podia ser o de pedir permissão - ou seja, o carcereiro é que abria a portinhola com grades a um pedido meu que o justificasse -, como também podia ser de natureza meramente física: sendo muito alta a parte gradeada, só de pé e esticando o pescoço eu podia olhar para fora. A sensação geral era de estar num espaço mínimo e todo fechado, exceto pelo único respiradouro de que me lembro sem dúvida: uma janela quadrada com grades, no fundo da cela, bem no alto da parede oposta à porta. Talvez minha confusão se explique pelo fato de eu ficar a maior parte do tempo deitado no chão, de onde via quase unicamente a parte maciça da porta. Pois são bem nítidas minhas lembranças dos raros diálogos que tive com soldados (eralhes proibido falar conosco) através das grades, e, sobretudo, a amizade que cresceu entre mim e um velho comunista cuja cara só vim a ver logo antes de mudar para outra prisão, amizade que se baseava principalmente no fato de ele ter descoberto que eu sabia cantar "Súplica", a estranha valsa em versos brancos que fora sucesso na voz de Orlando Silva antes de eu nascer. Essa comunicação sonora se dava através do corredor. Elas também eram proibidas, mas isso dependia da boa vontade do soldado de plantão. Gil ficava na outra cela contígua à do velho. Com esta entre a minha e a dele, e com nosso medo e cuidado, quase não nos dissemos nada durante toda a semana que permanecemos na rua Barão de Mesquita. Logo na primeira noite, depois da sala do general e do camburão, dormi imediatamente.
Fui acordado bem cedo de manhã, pela voz dura de um sargento que me ordenou que ficasse de pé. Alguém enfiou uma caneca de café preto pela portinhola perto do chão. Acho que eles faziam uma espécie de chamada - ou passavam os presos em revista - todas as manhãs. Estou certo de que o faziam todas as noites. Um resquício de esperança de que estivessem me chamando para o interrogatório emergiu comigo do sono sem sonhos em que descobria que estivera mergulhado a noite toda.
Mas o sargento ou quem quer que fosse que me acordou - seria um homem só? - apenas me olhou rapidamente e seguiu seu ritual de inspeção, deixando-me sozinho com aquela caneca metálica com café até a metade e um pedaço de pão um tanto duro e sem manteiga. Sempre me pareceu ilógico ter esquecido ou confundido detalhes de uma realidade tão drasticamente limitada. Passei uma semana numa cela mínima onde se repetiam todos os dias atos iguais e regulares, e, no entanto, não consigo lembrar com clareza como era a porta dessa cela ou o que exatamente faziam os carcereiros à hora da revista. Mas acredito que a própria pobreza de acontecimentos e sua regularidade, que terminam por eliminar a percepção ordinária da passagem do tempo, levem a mente de quem sofra tal experiência a precisar defender-se disso quando lhe é dado voltar ao espaço aberto e ao tempo rico em diversidade de eventos menos previsíveis. Tenho ouvido de pessoas que foram ou estão presas a observação de que, em algum momento, dentro da cela, duvida-se da realidade da vida livre que a memória diz ter existido lá fora.
Recentemente li na entrevista de um criminoso brutal a afirmação: "Às vezes eu acho que nasci aqui, que sempre vivi aqui, que o mundo lá fora, tudo o que eu vivi, só existe na minha cabeça". Essa leitura me fez estremecer porque eu próprio tinha pensado exatamente a mesma coisa e nos mesmos termos enquanto estava na solitária da rua Barão de Mesquita. O apartamento de São Paulo, meu casamento com Dedé, a Bahia, os estúdios de gravação, os palcos dos auditórios - tudo parecia remoto e desprovido de realidade. A perspectiva em que todas essas imagens se fariam reconhecíveis tinha se rompido bruscamente e minha mente se esforçava para não sucumbir de todo à impossibilidade de compatibilizar as lembranças com a situação que era vivida então.
Mas da mesma maneira que, enquanto estamos presos, não cremos na vida livre que não podemos esquecer, uma vez soltos, esquecemos a coerência interna da vida na prisão de cuja realidade, no entanto, não duvidamos. Hoje sei que sai (venho saindo) da prisão como quem sai de um sonho, ao passo que, enquanto preso, eu julgava que Santo Amaro, o Solar da Fossa e a TV Record é que tinham sido um sonho do qual não era possível sair.
Os dias daquela semana na solitária da Polícia do Exército às vezes são lembrados por mim como um só dia que pareceu durar uma eternidade. Depois de muito tempo - mas o que era "muito tempo"? -, comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia - nunca houvera - outros lugares. Se nunca ver ninguém era um fato que contribuía decisivamente para criar essa impressão, uma outra limitação - que se perpetuou por todo o período da prisão – a intensificava: não ter acesso a espelhos. Com efeito, por dois meses não vi meu próprio rosto. Não sei depois de quantos dias teve inicio meu diálogo com o velho comunista; ou o estranho tráfico de livros que relatarei: ou os passeios ao sol (destes sei com certeza que foram no máximo dois); ou a esparsa comunicação com os soldados. Só sei que todos esses pequenos estímulos iam pouco a pouco me encorajando a acreditar que o mundo de fora e de antes da prisão existia de fato, e, o que é mais importante, que eu – a pessoa que pensava "eu" - era parte desse mundo. O primeiro esforço no sentido de me reconhecer em mim mesmo se deu na forma de uma tentativa de chorar: se eu estava em tão má situação, se me tinham afastado bruscamente da mulher com quem me casara havia apenas um ano, se não podia ver o apartamento que mal começáramos a arrumar, se me jogaram sobre um cobertor áspero e jornais velhos, se ninguém ouvia minhas perguntas, certamente seria suficiente que me concentrasse em tais constatações para que lágrimas começassem a correr, soluços e espasmos me sacudissem. Mas não. Essa intimidade do espírito com o corpo que o pranto propicia era-me negada. Vista em retrospecto, é absolutamente inacreditável quão completa era então minha incapacidade para o sentimentalismo. O velho comunista, com a força de seu sotaque nordestino, me pedia para cantar "Súplica", e logo minha voz ia levar a esquisita valsa até ele, pelo mesmo corredor que trouxera sua mensagem:
Aço frio de um punhal foi seu adeus pra mim
Não crendo na verdade, implorei, pedi
As súplicas morreram sem eco, em vão
Batendo nas paredes frias do apartamento...
E essa palavra apartamento, aqui sublinhada e supervalorizada pela surpreendente ausência de rima, ressaltava, desencadeando toda uma associação de ideias (o apartamento de São Paulo - o primeiro de minha vida - onde eu ouvira e cantara exatamente essa valsa nas noites imediatamente anteriores à prisão), mas esses pensamentos não me levavam à emoção correspondente. Eu continuava frio e remoto.
O próprio fato de aquele velho me pedir que cantasse não me enternecia. Nem o modo aplicado e doce como eu lhe apresentava a canção. Muitas vezes, de volta à liberdade, me comovi - e ainda hoje me comovo - com a lembrança dessa cena. Na cela, apenas sabia com frieza que ela era uma cena comovente. É que Narciso estava morto. Sentia algo bom pelo velho: O desejo sincero e imediato de atender o melhor e o mais prontamente seu singelo desejo. Mas não conseguia empatia comigo mesmo: não via graça em ser capaz de trazer um pouco de beleza aos dias daquele velho comunista talvez calejado em prisões. Sentia uma seca amizade por ele, mas não gostava de mim. Minha voz ecoava no pequeno corredor:
Torpor tomou-me todo e eu fiquei sem ver mais nada
Adormecido tenha talvez, quem sabe?
Pela janela aberta a fria madrugada
Amortalhou-me a dor com o manto da garoa...
A garoa é um dos símbolos de São Paulo, a mera menção dessa palavra traz à mente de qualquer brasileiro a imagem da nossa maior cidade. Assim, "garoa" e "apartamento", na mesma valsa cantada a pedidos de um homem que não imaginava que eu a soubesse e muito menos que a estivera cantando recentemente com frequência, faziam de "Súplica" a primeira das canções temas desse período da minha vida. Mas, se eu era capaz de constatar isso com clareza, não me sentia tocado por tal constatação. Era antes levado a iniciar uma teia de superstições poderosas que me acompanharam até o exílio e mesmo depois. A valsa seguia:
Esperança, morreste muito cedo
Saudade, cedo demais chegaste
Uma quando parte a outra sempre chega
Chorar? ... se lágrimas não tenho
Coração, por que é que tu não paras?
A taça do meu sofrer findaste
Inútil resistir se forças já não tenho
Tu sabes bem que ela é a minha vida
Meu doce e grande amor.
E eu via nessas palavras o anúncio de que já não havia possibilidade de ter esperanças e de que eu nunca mais veria meu apartamento de São Paulo (de fato, nunca mais entrei lá, e se entrasse, já nada encontraria do que foi sua decoração tão peculiar. Acreditava mesmo que ter cantado essa canção nas vésperas da chegada dos policiais devia ser agora interpretado como uma espécie de presságio ou mesmo conjuração. Afinal, essas alusões a torpor, sono e
frieza não eram uma prova de que a letra da canção se referia a mim? Mas tentava em vão emocionar -me com a canção em si ou com a ideia da dádiva ao velho. Nem uma lágrima sequer começava a se preparar em minha alma para que eu esperasse senti-la escorrer generosamente sobre meu rosto invisível.
Tentei a masturbação. Habituado a ela desde menino e não a tendo abandonado nem com o início - tardio de minhas relações com mulheres, nem mesmo depois de um casamento sexualmente mais do que entusiasmante para mim, considerei que, com alguns dias de cadeia, seria apenas necessário tomar a atitude deliberada de induzir-me rapidamente a um orgasmo. Bastaria, pensei, começar a pensar e a agir. Mas não consegui sequer uma ereção. Lembro que, assustado com a neutralidade tátil com que reagiam meus órgãos genitais ao manuseio - neutralidade que logo se transformava em dissabor, e que correspondia a uma indisposição do espírito para o prazer ou o desejo -, adiei por uma ou duas vezes a tentativa. Os dias que se seguiam não traziam nenhuma esperança de que meu corpo e minha mente pudessem se aproximar do milagre rotineiro do sexo, não mais do que daquele do pranto. No entanto, que bênção que seria não apenas poder ser arrebatado pela tristeza ou pelo prazer mas também - e talvez principalmente - ter a experiência física das lágrimas ou de uma ejaculação! Parecia-me que eu seria salvo do horror a que fora submetido se sentisse jorrar de mim esses líquidos que parecem materializar- se a partir de uma intensificação momentânea mas demasiada da vida do espírito. De fato, o pranto e a ejaculação são, por assim dizer, vivenciados como um transbordamento da alma quando esta a um tempo se adensa e se expande, paradoxo interdito à matéria. Muitas vezes, depois de posto em liberdade, pensei nessa analogia entre o esperma e as lágrimas que me ocorrera por causa da situação vivida na cela da PE. É uma analogia que vai muito além da mera constatação de que se trata de duas secreções corporais: excetuada esta última condição, tudo o que aqui foi dito sobre o choro e o gozo não pode ser aplicado, por exemplo, ao suor ou à urina. Sem a graça do sexo ou do pranto, sentia-me como que seco de mim mesmo e apartado do meu corpo. A sensação de distanciamento que minha mente aprendera com a experiência do auasca sem dúvida contribuía para isso. Muitas vezes, através dos anos, tenho parado para considerar como foi arriscada e infeliz a circunstância de ter essa viagem alucinógena sido seguida tão de perto pela prisão. E medito sobre como isso é representativo - mesmo emblemático - da coincidência, no Brasil, da fase dura da ditadura militar com o auge da maré da contra-cultura. Esse é, com efeito, o pano de fundo do tropicalismo: foi, em parte por antecipação, o tema da nossa poesia.
Depois que saímos da cadeia, começamos a nos habituar com as notícias de amigos que eram levados de prisões para sanatórios ou vice-versa. Acompanhamos diversos processos de enlouquecimento e, como já contei, afastei-me definitivamente das drogas: escapara da loucura por um triz (fora salvo por meu pai, como contarei), não tinha condições de correr o risco. Na cela da PE, a consciência fria e estreita da qual eu tivera uma amostra na porta do prédio de Gil no momento da detenção, tinha se tornado para mim o único modo de ser eu mesmo. Dormia muito cedo à noite, era sempre acordado por soldados pela manhã, passava a manhã inteira sentado no cobertor com as costas contra a parede, e, no meio do dia, depois de empurrar goela abaixo algum pedaço de carne com inhaca e um feijão com gosto de poeira, adormecia outra vez por não sei quanto tempo, mas é certo que despertava com o sol ainda meio alto. O meu sono de presidiário era um sono triste e infalível do qual eu emergia sem nenhum resíduo de sonho.
Lembro que o velho comunista da cela ao lado tinha planejado um brinde na passagem do Ano-Novo: ele tinha descoberto quem iria ficar de plantão na noite de 31 de dezembro e assegurava que, com a ajuda desse carcereiro de boa vontade, tomaríamos pelo menos um gole de vinho. Dei enorme importância a isso, uma vez que sempre me pareceu convincente a superstição familiar que nos manda permanecer acordados na entrada do Ano-Novo, caso contrário projeta-se como que uma sombra má sobre o período que se inicia. Sem propriamente me envolver com o aspecto sentimental da celebração, prometi a mim mesmo
que ficaria desperto para salvar a minha vida ou, pelo menos, não deixar assegurada para o futuro a desgraça em que me encontrava. O mero fato de começar o ano na cadeia era o pior dos augúrios; entregar-me a isso no sono, sem esboçar nenhuma resistência, seria dar-me a mim mesmo por morto, ao menos para a vida que eu queria poder reconquistar.
Mas, por mais que eu me assegurasse de que não adormeceria, quando a planejada celebração se deu - pois ela se deu exatamente como o velho previra - eu estava num sono tão profundo que não atendi aos chamados de Gil, do velho ou do carcereiro.
Eram poucos os momentos em que podíamos falar uns com os outros, mas o velho sabia utilizá-los muito bem: no primeiro dia do ano de 69 eles me contaram tudo sobre a festa de réveillon que eu perdera. Não era pouca coisa: desde a infância, nunca passei a meia-noite de 31 de dezembro para 1º de janeiro dormindo, regra à qual voltei a ser fiel desde que fui posto em liberdade. Aquela foi a única vez, em toda a minha vida consciente, em que isso se deu. O que me tornou ainda mais tristemente indiferente: não ter sido capaz de desferir um golpe, por mínimo que fosse, no que já se tornava uma quase perfeita desesperança, só fazia aumentar o desprezo (não há outra palavra) que sentia por mim mesmo. O curioso é que, depois que saí dali, criei uma memória do momento do brinde como se tivesse participado dele: tenho ainda hoje na lembrança imagens nítidas do copo com vinho tinto sendo trazido até mim pelo bom soldado cujo rosto não distingo por detrás das grades. O fato é que, agora, quando quero me consolar da minha reconquistada dificuldade de dormir, penso em como dormir quando não queria foi muito pior do que estar desperto quando quero dormir.
Quanto à minha quase -incapacidade de tolerar a comida servida no quartel, ao menos uma vez ela foi interpretada por algum oficial como uma tentativa de greve de fome: depois de ouvi- lo grunhir através da grade alguma coisa nesse sentido, esforçava-me para não deixar a carne e o feijão intactos. Greve de fome? - qualquer forma de resistência ou heroísmo era coisa que estava a distância infinita de minha mente reduzida ao imediato. Entre o chão duro e o puído cobertor verde-oliva escuro que me servia de cama viam-se alguns pedaços de jornal velho, rasgados e meio amarelados. No relativo entorpecimento a que me entreguei para não desesperar com a ausência de espaço (a solitária era exígua: creio que com as costas contra uma parede eu podia tocar com os pés a parede em frente), ou com a nenhuma perspectiva de futuro (ninguém ali sequer sabia que, no ato da prisão, nos tinham anunciado um interrogatório, e alguns sargentos ou tenentes que metiam a cara entre as barras da grade alta nos diziam, sem que nós lhes disséssemos nada, que todo preso alega inocência), eu lia repetidas vezes, sem guardar na memória, trechos de frases desinteressantes, anúncios, manchetes vazias de sentido, fragmentos de noticias ou de artigos. Nada era sequer remotamente notável. Eu relia tudo num automatismo acrítico, sem nem mesmo me permitir pensar que aquilo pudesse ser entediante ou ridículo. Não sei descrever o mal-estar que me causou a leitura, feita ali mesmo, dentro daquela cela, alguns dias depois da consolidação desse hábito, da narração de ação semelhante no livro O estrangeiro, de Albert Camus. Uma tarde vi a cara de um homem que me falava lá do alto da porta, da parte gradeada. (Agora lembro, com alguma segurança, que a porta era inteiriça do chão até mais ou menos a altura da minha cabeça, de modo que era necessário que eu me pusesse na ponta dos pés e esticasse o pescoço para poder ver algo do corredor por entre as barras). Ele falava com um desassombro surpreendente para quem se mostrava tão simpático comigo. Mas se ele não tinha medo, tampouco parecia ter muito tempo. Era um coronel do exército que estava preso por suspeita de subversão ou mera simpatia pelos comunistas. Ele me disse, um tanto ofegante, que, por ser militar graduado, tinha algumas regalias, podendo, entre outras coisas, circular pelo quartel. No entanto, não lhe seria permitido falar
comigo ou com Gil, presos incomunicáveis. Tudo dependia de o oficial de dia ser seu amigo ou simplesmente tolerante. Queria me ajudar. Estava em contato constante com Ênio Silveira, o dono da Civilização Brasileira, a editora da esquerda intelectual. Enio também estava preso na PE da Barão de Mesquita, mas, se bem me lembro do que me disse o coronel, num andar acima do nosso, e em muito melhores condições. Ele tinha consigo muitos livros e, embora nos fosse proibido, a mim e a Gil (e seguramente também ao velho), ter livros na cela, ele, o coronel, me traria, ou faria chegar a minhas mãos, clandestinamente,
livros conseguidos por Ênio Silveira. Eu deveria lê-los fora das horas de refeição ou revista, quando eles deviam ser escondidos sob o cobertor. Esse coronel voltou pelo menos uma vez, trazendo nas mãos O estrangeiro, que ele me passou - sem dúvida com o auxílio do guarda - pela portinhola pela qual chegava a comida. O segundo livro foi depositado pelo mesmo processo, mas desta vez por um soldado que, furtivamente, me comunicou ter sido mandado pelo tal coronel e por Ênio Silveira. Era O bebê de Rosemary.
É impossível imaginar-se um par de livros menos apropriados para distrair um preso incomunicável do que esse. O tom frio de O estrangeiro, suas frases curtas e isentas que reproduzem uma visão a um tempo direta e distanciada, enfim, suas virtudes formais e estilísticas conseguiram extrair um verdadeiro entusiasmo de mim: o chamado prazer estético. É impressionante como isso tem vida própria e independente.
Eu podia alimentar minhas mais sombrias fantasias supersticiosas ao acompanhar o destino daquele homem dos afetos neutralizados, que mata por nada, lê repetidas vezes um pedaço de jornal numa cela de prisão, e torna-se estranho à sua própria morte; podia me assustar com a precisão com que algo do que eu mesmo estava vivendo era ali descrito: podia mesmo ver naquilo uma profecia de perpetuação inexorável da minha situação; mas a capacidade de
admirar o texto como tal parecia ter força para perdurar em mim ainda que só me restasse um fio de razão. O bebê de Rosemary talvez tenha me feito mais mal. Com sua narrativa vivaz e convencional, talvez mais holly woodiana do que o filme que veio a ser feito depois baseado nele, esse livro instigante resulta, mais do que numa metáfora para a paranóia, num incentivo dos seus mecanismos. Nunca mais reli nem um nem outro livro desde que sai da prisão. Mas sei que O bebê de Rosemary, com seus apartamentos, suas competitividades de carreiras artísticas, seu glamour e suas descrições da adoração do mal em si, me fez mais supersticioso do que eu já era e do que eu já estava, inclusive influindo retrospectivamente na interpretação que eu dava a O estrangeiro. Essas leituras, no entanto, me divertiram e, ainda que fosse só pela intensificação do medo, fizeram o tempo passar.
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