Por Vinícius Juberte
Na última semana passou por São Paulo a turnê “Clube da Esquina”, álbum antológico de um dos artistas mais talentosos e completos da MPB, Milton “Bituca” Nascimento. Falar da excelência de Milton (ou “Bituca”, apelido pelo qual o próprio prefere ser chamado) é chover no molhado. Gostaria nesse texto de abordar alguns aspectos das músicas dos discos Clube da Esquina e Clube da Esquina II, o show que tive o prazer de assistir e os tempos pelos quais passa o Brasil.
De início, é bom frisar que segurar as lágrimas durante esse show foi tarefa quase impossível. Como não sentir uma batida forte no peito com “Tudo o Que Você Podia Ser” abrindo aquela noite? De versos como “você queria ser o grande herói das estradas”, “tudo o que você devia ser, sem medo!” e claro, aqueles dizeres que parecem quase um tapinha nas costas de consolo e incentivo por esses dias pelos quais passamos: “você ainda pensa e é melhor do que nada”. E de fato, foi impossível não pensar no Brasil durante todo esse show. Do país que fomos, que somos, mas principalmente, do que podemos ser.
O próprio Milton Nascimento é uma síntese da diversidade e da beleza, em todos os sentidos, do povo brasileiro: menino negro nascido nos morros do Rio, adotado por um casal de classe média, mãe musicista e pai dono de estação de rádio, radicado em Três Pontas, interior de Minas Gerais, escriturário de profissão que decide largar tudo para viver do sonho de cantar. Na música, junto de outras figuras fundamentais como os irmãos Borges (Márcio e Lô, para quem Bituca dedica os shows dessa turnê), Tavinho Moura, Flavio Venturini, Beto Guedes, Toninho Horta e Fernando Brandt (esse último lembrado por Milton durante o show: “Para mim é difícil falar sobre o Fernando. Só posso dizer que a vida não teria sido tão bonita sem a amizade dele”), Bituca criou dois álbuns antológicos da música brasileira: Clube da Esquina e Clube da Esquina II. Uma mistura de The Beatles, bossa nova, jazz e cantigas do cancioneiro popular mineiro. Algo único, genuinamente brasileiro.
Vale sempre lembrar que o cantor e compositor resistiu a todo o peso da ditadura militar sem ir para o exílio, sofreu uma perseguição implacável dos órgãos de repressão que ameaçavam a vida de seu filho como forma de tortura psicológica. Na mesma época, apesar de tudo, Milton estendeu o seu talento em encontros por toda América do Sul que lutava por liberdade. Minas se uniu ao Chile, a Argentina, a Venezuela…o abraço musical de Bituca na mítica Violeta Parra e o dueto com a inigualável Mercedes Sosa nos faz lembrar de algo crucial: entre tantas facetas de nossa formação, somos também latino-americanos. O Brasil faz parte de algo maior, faz parte da Grande América, que desde de tempos imemoriais compartilha dores e esperanças, triunfos e tragédias. Trajetória rememorada na belíssima e melancólica “San Vicente”: “Um sabor de vida e morte/ coração americano/ um sabor de vidro e corte…”.
O que mais me encanta no artista Milton Nascimento é a sua capacidade ímpar de ser local e universal ao mesmo tempo. Ser local sem ser provinciano, e ser universal sem deixar de ser brasileiro. Não seria essa, justamente, a definição do próprio Brasil? Aliás, Milton sintetizou com maestria essa percepção junto a Márcio Borges em “Para Lennon e McCartney”: “Eu sou da América do Sul/ eu sei vocês não vão saber/ mas agora sou cowboy, sou do ouro, eu sou vocês/ sou o mundo/ sou Minas Gerais”. O apelo daquele que quer ser reconhecido como um outro a ser visto e respeitado no mundo.
Voltando ao show, como não pensar nas agruras do Brasil atual e no desejo por mudanças estampadas na letra de “Clube da Esquina”? “Perto da noite estou/ o rumo encontro nas pedras/ encontro de vez, um grande país eu espero/ espero do fundo da noite chegar”. Uma certa melancolia de fundo otimista que dá lugar a certeza de um novo tempo em “Nada Será Como Antes”: “Já estou com o pé nessa estrada/ qualquer dia a gente se vê/ sei que nada será como antes amanhã”.
Destaco que esse novo tempo estava lá, presente nos detalhes do show: a arte de fundo que dava todo o clima da apresentação junto com as luzes era de autoria dos grafiteiros Osvaldo e Gustavo Pandolfo, Os Gêmeos. Também violão e voz ficaram a cargo de Zé Ibarra, vocalista da banda Dônica, jovem que dá um toque todo especial com seu belo timbre de voz às músicas do Clube.
Se Milton já apresenta certa fragilidade física pela idade e lutas acumuladas durante a vida, sua voz traz a força e o vigor de sempre, mostrando que barreira alguma é impossível de ser transposta. Foram duas horas de espetáculo, de lágrimas, de aplausos, cantoria e êxtase. Ou seja, uma catarse que só uma entidade como Milton Nascimento é capaz de proporcionar. O melhor do Brasil estava naquele palco: a música, o canto, o instrumental, os desenhos, as luzes, o velho e o novo apontando para novos caminhos. Em tempos de grossura bolsonarista, um alento e um vislumbre do que o Brasil é capaz de ser. Somos capazes de construir uma versão melhor de nós mesmos. Como diz a canção “O Que Foi Feito Devera”, um dos momentos altos do show: “Se muito vale o já feito/ mais vale o que será/ e o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir” e a promessa final: “Outros outubros virão/ outras manhãs. Plenas de sol e de luz”. Uma lição e um caminho para um novo futuro.
Como dizia Darcy Ribeiro, não há lugar melhor no mundo para se construir um grande país que não aqui, que não no Brasil. E Milton Nascimento é a prova viva de que o velho professor tinha razão. Não há tempo ruim que dure para sempre, nem mesmo por aqui. Que o sonho de um grande país continue nos guiando embalados por canções tão cheias de vida e significado quanto essas do Clube da Esquina. Afinal de contas, como canta Bituca em “Clube da Esquina II”: “sonhos não envelhecem!”.
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