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quarta-feira, 14 de agosto de 2019

DA LAMA A FAMA: DISSECANDO O MOVIMENTO MANGUE BEAT (1994-2004) - PARTE 03

Por Marcilo José Ramos da Silva



RESUMO: O trabalho a seguir, pretende analisar a temática Mangue Bit, também conhecido como Mangue Beat, movimento artístico-musical criado no inicio dos anos 90 na cidade do Recife-PE por jovens músicos, jornalistas e artistas da periferia local. Tal movimento pretendia alertar a população para a ociosidade cultural a qual a cidade se submetia na época, como também conscientizar a comunidade para os problemas sociais dos quais a população sofria. O Movimento Mangue Beat serviu para dar vez e voz a quem até então vivia a margem sócio-econômica da cidade. Com o surgimento da cena Mangue, o subúrbio passou a ser visto não só como um lugar de violência e desprezo, mas sim, também como um lugar de produção cultural de qualidade. Foi a partir do Mangue Bit que os tidos, classe “B” e “C” puderam se expressar artisticamente marcando assim um novo recorte no campo cultural recifense. Entretanto, os mentores da cena não estavam preocupados só com a produção musical, mas também com a questão ambiental, pois o processo de modernização da cidade aterrou os mangues para dar lugar a avenidas e prédios, ou seja, o movimento ao mesmo tempo que se preocupou com a estagnação musical, denunciou a degradação do ecossistema local, tendo em vista que o mangue é considerado berçário da maioria das espécies marinhas. Para isso se muniram de um documento, o manifesto Mangue, é dividido em três partes e nelas podemos notar a presença dos discursos culturais, ambientais e de identidade. Para a difusão do Manifesto Mangue, seus criadores utilizaram-se tanto da mídia impressa quanto da mídia digital, além do que, criaram uma linguagem própria, baseada em metáforas e gírias ligadas ao ecossistema manguezal. O Mangue Beat esteticamente rompe com a dita tradição musical, se utilizando de fusões rítmicas para fomentar outro gênero que tem como característica a junção do moderno com a tradição, o lúdico com o político, diversão e preocupação. 


PALAVRAS-CHAVE: Mangue Beat. Maracatu. Manifesto. Chico Science




1.1 Movimento Armorial X Movimento Mangue 

Existem algumas diferenças entre a cena Mangue e a cena Armorial. Enquanto o movimento Armorial prega uma cultura “essencialmente” nordestina através de raízes ibéricas e mouras vindas através das navegações coloniais, o Mangue Beat usa as raízes da Risophora Mangle para absorver tanto a cultura local quanto a cultura pop global, ou seja, enquanto o Armorial se preocupava em “retornar” a idade média (1300-1500), o Mangue Beat tem como objetivo não só o “resgate” das tradições como também a expansão psicodélica que vai do rock setentista até o que há de mais novo no mundo musico - tecnológico, como sintetizadores e pedais de efeito. A intenção do Mangue desde o principio é, misturar a pluralidade dos ritmos e dos signos. “Modernizar o passado, é uma evolução musical” (Chico Science – Banditismo por uma questão de classe). Podemos notar que apesar da contemporaneidade o Armorial e o Mangue em quase nada convergem, exceto a preocupação com o campo cultural local, no caso o nordeste brasileiro e mais especificamente, a cidade do Recife. 

Em encontro com Chico Science, Ariano Suassuna questionou o porquê do Science, já que Chico é um nome bem popular no nordeste e Science é um adjetivo de língua estrangeira, no caso a inglesa. Porém a implicância de Ariano durou pouco tempo, pois no desenrolar da conversa, Suassuna reconheceu a importância do Mangue Beat ao falar que se não fosse ele (o Mangue Beat) a juventude talvez nunca prestasse atenção ao Maracatu Rural. Sendo assim, podemos concluir que, apesar de contemporâneos, o Mangue Bit e o Armorial são antagônicos, pois, enquanto um prega a diversidade adicionando elementos estrangeiristas, o outro defende a idéia de monocultura cultural. Os Mangue boys, costumavam dizer que de monocultura já bastava a da cana-de-açúcar. Por outro lado, Antônio Carlos Nobrega dizia que: “O movimento Armorial deu dignidade a cultura popular nordestina”. Assim como o Mangue Beat, o Armorial se faz presente na atualidade, um dos grandes divulgadores desse segmento é o próprio Antônio Nobrega com seu teatro brincante em São Paulo, serve de incentivo para expansão da cultura Armorial e popular. 


1.2 Rock’n Roll ( Do It Yourself ) 

As doses que beberam de regionalismo, os mangue boys beberam o equivalente da world music. Baseados principalmente na filosofia punk do Do it yourself (faça você mesmo), originalmente criada por Malcolm Maclaren (musico, compositor e empresário da banda Sex Pistols). A atitude punk representou um avanço ideológico para aqueles jovens da periferia, pois, seguindo a filosofia punk inglesa, eles poderiam fazer música de qualidade com poucos recursos. Bastavam alguns requisitos básicos como instrumentos baratos, criatividade e atitude. Foi com o slogan do “faça você mesmo” que os mangue boys saíram da lama e fincaram suas antenas para fora do Brasil. 

Se de fora, os futuros mangue boys se inspiravam no punk inglês e no funk americano. Aqui no Brasil a banda que mais contribuiu para a formação musical de Chico Science, Fred 04 e Companhia foram os Mutantes com seu rock psicodélico e debochado (atitude incomum em meados dos anos 70 e começo da década de 80). 

É seguindo os passos de Jimi Hendrix e baseado no rock’n roll setentista que Lúcio Maia (guitarrista da Nação Zumbi) faz seus arranjos até hoje, usando efeitos de pedais distorcidos ao extremo. Porém, o representante maior do rock’n roll entre os mangue boys, sem duvida é Fred 04. Antes de fundar a Mundo Livre S/A, integrou bandas punks como Trapaça, Serviço Sujo e Câmbio Negro HC11. 

“A gente agiu à maneira de Malcom Maclarem. Vimos que ali havia elementos para criarmos uma cena particular. Então bolamos gírias, visual, manifesto. Quase todas as musicas que fizemos depois disto continuam palavras extraídas dos manifestos” (Fred 04 apud TELES, 2000: 274).


Fred é ex-punk e apesar de predominar em suas canções o ritmo “samba”, em suas letras podemos notar que as mesmas contém uma linhagem punk, abordando temas sociais e de caráter oposicionista, ou seja, Fred 04 é um sambista compositor de letras punks, e é essa mistura que o coloca na cena Mangue.

Jorge Cabeleira e Devotos do Ódio (bandas etiquetadas na cena Mangue da época) tinham um caráter mais agressivo musicalmente falando. A Devotos do Ódio tocava punk rock enquanto a Jorge Cabeleira tocava uma espécie de rock e baião conhecido como “rock regional”.

Seja punk inglês, funk americano ou até rock nacional, os mentores do movimento Mangue Beat não se inspiraram só nos ritmos regionais como maracatu, coco, ciranda e baião, mas também captaram o punk e o rock’n roll. Sem essa mistura de influencias, o Mangue Beat talvez nem existisse, pois, é característica principal da cena o hibridismo cultural.



1.3 Música Africana: O Maracatu Nação

Proveniente do continente africano (mais especificamente do Congo, nas tribos Nagô) desenvolveu-se no Nordeste brasileiro (especificamente em Pernambuco) a mais de 300 anos, período ao qual vigorava o sistema escravocrata, o maracatu. Maracatu é uma mistura de teatro, dança e música. Aqui no Brasil, se adaptou e se fundiu ao sincretismo religioso local, encenado para camuflar os cultos religiosos afros, pois as praticas religiosas não católicas eram proibidas pelo estado (rei) e pelo clero (igreja). Há principio serviu para repassar (através da oralidade) seu passado e sua história. No Brasil, hoje há dois tipos de Maracatus, são eles: Maracatu Nação (de Baque Virado) e Maracatu Rural (de Baque Solto). Apesar do cortejo está inserido como manifestação popular, não quer dizer que seja uma manifestação populista nem pertencente à cultura de massa. Porém, o Mangue Beat se utilizou dos símbolos e métricas rítmicas de ambos os maracatus, entretanto, seu foco é o Maracatu Nação.

O Maracatu nos séculos XVII, XVIII e XIX tinha como função à representação das coroações das nações africanas, sendo assim o festejo formava uma espécie de elo (de ligação) entre os ancestrais africanos e seus descendentes nascidos já na colônia portuguesa outrora chamada de “Terra de Santa Cruz”. O Maracatu Nação após a abolição ganhou as ruas como folguedo, porém sem perder totalmente sua essência que é a de festa religiosa. Ao sair em cortejo, se torna necessário a dança das calungas de fronte as igrejas, uma maneira de homenagear e agradar a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito (ambos, divindades católicas negras) Entretanto, quando os maracatus visitam algum terreiro os homenageados são os Orixás, afirmando assim, o quanto ainda é marcante e presente o chamado sincretismo religioso em nosso país.

Geralmente participam de trinta a cinqüenta brincantes. O Maracatu de Baque Virado consiste em uma cerimônia político-cultural, partindo da perspectiva que muitas tribos africanas eram compostas pelo sistema monárquico, o Maracatu Nação representava (como o próprio nome já diz) a coroação de determinada nação. Dentro dessa hierarquia podemos citar a corte: A rainha e o rei, o príncipe e a princesa, duque e duquesa, barão e baronesa, embaixador, porta estandarte, damas de honra, de corte, vassalo (também chamado de porta sombrinha). Há também uma boneca de nome “Calunga” que representa as rainhas já falecidas. Sendo assim, o cortejo não só enfatiza a questão político hierárquica da sociedade Nagô como também tem seu lado místico e transcende o campo físico ao evocar os espíritos antepassados de seu povo. Por fim, o cortejo é completado com os batuqueiros, músicos encarregados de alegrar e dar ritmo ao desfile.

A dama de passo vem na frente juntamente com toda a corte, a corte abre alas para o rei e a rainha, vestidos com capas de veludo e coroa na cabeça, nas mãos trazem cetros ou pequenas espadas, por trás vem o vassalo que carrega o pálio (guarda-sol) e o gira como se fosse a própria terra que estivesse se movendo para saudar a realeza ali presente (colocar o escravo para carregar o pálio é um costume árabe, que por sinal até hoje tem influência muito forte em certas regiões do continente africano). Não deixando de lado a influência brasileira, algumas nações de maracatus inserem em seu cortejo os caboclos de pena, que seria uma representação do guerreiro indígena, acarretando assim uma mistura étnica de dois povos marginalmente tratados como culturas inferiores. No estandarte se pode observar o nome da respectiva agremiação (Nação), geralmente, uma figura a qual representa e o ano que foi fundada. As músicas cantadas no folguedo são chamadas de toadas, quem canta as toadas é o tirador de loas (loas nesse contexto tem o mesmo significado de versos) que apita ao início e término de cada estrofe, depois que o tirador de loas termina a estrofe os outros integrantes repetem frases da mesma estrofe ou responde com refrão. Com o passar do tempo a parte falada (encenação) foi extinta do folguedo, predominando o lado musical.

A alfaia é o instrumento principal do Maracatu Nação, sem a alfaia não há baque virado. Um detalhe interessante é que as primeiras alfaias (os tambores do Maracatu) nada mais eram que, uma reutilização dos recipientes que armazenavam vinhos para os senhores escravocratas. Ao serem esvaziados, os escravos confeccionavam seus tambores entrelaçando cordas e usando o coro de bode (animal comum na região) curtido para dar a sonoridade desejada, o tom do som, teria que ser o mais parecido possível com o dos tambores africanos, tentavam imitar o som que seus ancestrais faziam antes de serem capturados à força e traficados como se fossem mercadorias para servir de mão de obra para senhores de engenhos e Barões do Café. Hoje, as alfaias são feitas de inúmeros materiais, podendo ser montadas com peles sintéticas e madeira de compensado.

O Maracatu Nação se encontrava esquecido no final dos anos 80 e início dos anos 90, restando poucas agremiações e quase nenhum incentivo por parte dos poderes públicos locais, Recife corria o risco de entrar no século XXI sem uma de suas maiores representações culturais. Era necessário se fazer algo para mudar esse quadro de degradação cultural, foi aí que alguns jovens (por vontade própria) resolveram levantar a bandeira da resistência cultural na cidade, ou melhor, resolveram ligar uma antena parabólica na lama, antenados com o bom que vinha de fora, mas com a preocupação de inserir a cultura local, não só do Maracatu Nação como também o Rural e outros ritmos considerados regionais, tais como o Coco (de roda e de embolada), a Ciranda Praieira, o Repente, etc. Deram novos segmentos rítmicos aos ritmos regionais e do resultado soou outro estilo musical, mais moderno, porém se utilizando tanto do pop quanto do regional. Com a ajuda do Movimento Mangue Bit e posteriormente com o incentivo financeiro que as agremiações receberam (e recebem) dos poderes públicos como também de algumas empresas privadas, o Maracatu se fortaleceu e não definhou. Sendo o Maracatu Nação uma manifestação de resistência cultural dos “oprimidos”, é nessa perspectiva de “soltar o grito” dos excluídos que o Mangue Bit se propôs a trabalhar, tendo assim uma empatia ao Maracatu, ambos de caráter contra-cultural. A ‘etnomusicologia’ nos chamados estudos culturais (Cultural Studies) vem a cada dia ganhando mais espaços.

A partir dos anos 2000, as agremiações abrem suas portas e a cada ensaio ou a cada Carnaval é freqüente ver médicos, psicólogos, advogados, dentistas e engenheiros misturados com padeiros, mecânicos e pedreiros, pois o Maracatu propícia a interação e convivência fraternal com o próximo, independente de sua classe social, cor ou opção sexual. As Nações de Maracatus mesmo depois de três séculos respiram tradição e cultura, a exemplo vale citar a Noite dos Tambores Silenciosos que consiste em uma reunião das diversas agremiações em frente ao pátio da igreja do Terço no bairro de São José (Recife antigo). A meia noite da Segunda-feira de Carnaval, após um sinal os tambores param, depois do silencio se ouve uma voz tirar loas (cantar toadas, versos) em louvor a rainha dos negros Nossa Senhora do Rosário. A origem deste ritual se dá nos idos do período colonial. Distante da terra natal, os negros pediam a proteção de Nossa Senhora na tentativa de amenizar as dores do cativeiro cruel. A perpetuação desse rito faz com que a tradição mantenha-se quase que intacta ao passar dos séculos.




FONTES E BIBLIOGRAFIA 

1. Discografia. 
Mundo Livre S/A. Samba Esquema Noise. Warner, 1994. 
Chico Science e Nação Zumbi. Da Lama ao Caos. Sony Music, 1994. Chico Science e Nação Zumbi. Afrociberdelia. Sony Music, 1996. 
Chico Science e Nação Zumbi. CSNZ. Chaos/Sony Music, 1998. (Cd póstumo) 


2. Videografia. 
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.Um passo à frente e você já não está no mesmo lugar. 2000 (50 min. Cor) 
. Amarelo manga. 2003 ( 100 min. Cor). 
CALDAS, Paulo. & LUNA, Marcelo. O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas. 2000. (75 min. Cor). 
. & FERREIRA, Lírio. Baile Perfumado. 1997 (93 min. Cor) FERREIRA, Lírio. Árido Movie. 2003 (115 min. Cor) 
GOMES, Marcelo. Maracatu, Maracatus. 1995 (14 min. Cor) 
. et al. A perna cabiluda. 1997. (19 min. Cor) 
MAHEIRIE, Kátia. Sete mares numa ilha: a mediação do trabalho acústico na construção da indentidade coletiva. 2001. 
QUEIROZ, Bidu. & BARROSO, Cláudio.O mundo é uma cabeça. 2004 (17 min. Cor) TENDLER, Sílvio. Josué de Castro, cidadão do mundo. 1995. (52 min. Cor) 


3. Bibliografia. 
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. Música, doce música. São Paulo; Martins Fontes, 1963. 
BERNARDET, Jean-Calude. O que é Cinema. São Paulo: Nova Cultural/Brasiliense, 185. (col. Primeiros Passos). 
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CARMO, Paulo. Sérgio do. Culturas da rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: Ed. do SENAC, 2001. 
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v. 3 
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REZENDE, Antonio Paulo. O Recife: histórias de uma cidade. 2 ed. Recife: Fund. De Cultura do recife, 2005. 
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4. Internet. 
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