O filho mais velho da Mangueira é um carioca extraordinário
No dia 3 de agosto, peço a todos os cariocas que pensem em Carlos Cachaça.
Aos religiosos, que orem para que ele ainda tenha muitos anos de vida e cheio de saúde. Aos sambistas, que cantem os seus sambas. E, aos moradores do Morro de Mangueira, que comemorem com muito entusiasmo os 93 anos do seu filho mais velho, um pioneiro do samba carioca e um dos grandes responsáveis pela grandeza da gloriosa Escola de Samba Estação Primeira.
Carlos Moreira de Castro, o nosso Carlos Cachaça, nasceu em Mangueira, em 1902, e, ainda menino, já estava morando no morro. Foi testemunha e figurante das várias manifestações religiosas e culturais criadas pelos negros das quais o Morro de Mangueira é um centro de preservação e de irradiação.
Freqüentou o candomblé comandado por Tia Fé, acompanhou o crescimento da umbanda como uma espécie de versão carioca das religiões de origem africana, viveu a alegria da dança e da música do jongo, desfrutou a beleza poética proporcionada pelos grupos de pastorinhas nas festas de fim de ano, brincou nos cordões carnavalescos do início do século, viu surgir o Rancho Príncipe das Matas, foi testemunha da primeira vez que alguém cantou um samba em Mangueira (Elói Antero Dias, o Mano Elói, trabalhador do Cais do Porto, levou o samba para o morro), foi um dos primeiros compositores de lá e só não esteve presente à fundação da Escola de Samba Estação Primeira, porque, naquela época, trocara a Mangueira por Inhaúma, onde morava uma certa criatura que balançou seu coração.
Mas, quando a Estação Primeira começou a competir com as outras escolas, na Praça Onze, era ele quem escrevia as sinopses do enredo e as notas distribuídas aos jornais sobre as atividades da campeã dos primeiros desfiles (1932, 1933 e l934). Foi um dos primeiros compositores a fazer um samba-enredo (Homenagem, um preito a Castro Alves, Gonçalves Dias e Olavo Bilac) e, em 1936, assinava com Cartola, seu mais constante parceiro. Não Quero Mais Amar a Ninguém, a música que daria à Mangueira o prêmio de melhor samba no desfile das escolas daquele ano. Foi também um dos fundadores da primeira ala de compositores a da Estação Primeira em 1938, ano em que, por sinal, conquistou o título de melhor compositor das escolas de samba, num concurso realizado na antiga Feira de Amostras. Com Cartola compôs ainda, entre outros sambas, Quem Me Vê Sorrindo, Vale do São Francisco, Tempos Idos e Alvorada, este com participação de Hermínio Belo de Carvalho. E foi também parceiro dos pesquisadores Marília Barbosa e Artur de Oliveira Filho no livro Fala, Mangueira.
É o poeta do Morro de Mangueira. Produziu vários poemas e algumas das melhores letras escritas pelos sambistas cariocas. Seu apelido de Carlos Cachaça surgiu numa casa que frequentava nos fins de semana, em companhia de outros compositores e instrumentistas musicais. A cerveja rolava, mas ele sempre pedia cachaça. Ficou sendo o Carlos da Cachaça (havia outro Carlos no grupo) e daí para Carlos Cachaça foi um pulo. Sua mulher. a saudosa e muito bem humorada Menina (irmã de Zica, viúva de Cartola), toda vez que a gente telefonava à procura do marido, respondia:
- Não sei onde ele anda. Deve estar por aí. justificando o nome.
Carlos não bebe, faz muitos anos. Foi vítima de problemas circulatórios, sendo obrigado a ter mais cuidado com a saúde, mas continua lúcido, cercado pela família e pelos amigos em sua casa mangueirense de altos e baixos, ao lado do Buraco Quente, curtindo a sua velhice.
Afinal, como escreveu num de seus poemas, ele sabe que as flores, “quando ao chão caem, podemos apanhá-las / Mas a Flor dos Anos, não se apanha mais”.
Abraço Carlos Cachaça com a convicção de que homenageio, nos seus 93 anos, um extraordinário representante do povo do Rio de Janeiro.
Sérgio Cabral
(Publicado originalmente na revista Veja Rio em 02 de agosto de 1995)
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