É PROIBIDO PROIBIR
Acho que foi ainda em maio de 68 que Guilherme me mostrou a reportagem da revista Manchete sobre os estudantes em Paris, na qual ele tinha encontrado a fotografia em que se lia, pichada numa parede, a frase "É proibido proibir" (que Buñuel em suas memórias diz ter sido tomada pelos estudantes aos surrealistas), a seu ver excelente para ser transformada em música. Diante de minha reação fria à sugestão, ele sorriu com o ar teimoso de quem sabia que ia terminar me convencendo. Eu achava o paradoxo engraçado, mas não tinha intenção de retomá-lo. Primeiro porque reconhecia ali a natureza de choque efêmero desses
ditos: se repisados, eles revelam uma ingenuidade que trabalha contra os próprios impulsos que os inspiraram. Depois porque eu não queria que se confundisse o nosso movimento com o movimento dos parisienses, nem no Brasil nem no exterior – se fosse o caso de algum dia o que fazíamos vir a ser conhecido fora (o que eu já esperava - e mesmo desejava - menos do que antes de ter meu primeiro disco pronto). Mas Guilherme não desistiu. Ele me pedia todos os dias que fizesse uma canção usando a frase. Finalmente me convenceu a fazê-la "só
para ele". Partindo da experiência de bossa nova em três por quatro (ou será seis por oito?, enfim, em compasso ternário) de "Baby " e de uma outra canção (esta, "Saudosismo", uma prestação de contas tropicalista para com a bossa nova, algo muito mais interessante do que "É proibido proibir", e uma composição mais rica do que a própria "Baby "), fiz rapidamente uma breve marchinha ternária com uma série de imagens de sabor anarquista (era o que me parecia à primeira vista o movimento francês - ou pelo menos era o seu aspecto que mais o identificava ao nosso) e usei a frase singelamente paradoxal como refrão. Mostrei-a a Guilherme (que disse achar tudo "divino, maravilhoso") e me desobriguei em relação à canção.
Agora, perto do final do ano de 68, Guilherme trazia o recado da TV Globo do Rio (então infinitamente menos importante do que a TV Record de São Paulo) convidando-nos para que participássemos, Gil e eu, do seu festival, uma cópia sem graça dos festivais paulistas, tornado ainda mais confuso pelo fato de ser "internacional", ou seja, de pôr trabalhos dos melhores compositores brasileiros para serem julgados (pelo júri e por um público imenso, uma vez que as finais eram no ginásio de esportes do Maracanãzinho) segundo critérios que levassem em conta algum tipo de "qualidade" respeitável e a facilidade de agradar à primeira audição, lado a lado com produtos que não poderiam ser representativos do pop inglês ou americano, e com algum europeu continental ou latino-americano acidentalmente interessante que sobrasse da produção e do consumo internos de um ou outro país dessas regiões. Sem interesse pelo evento e sem nenhuma canção para apresentar ali, disse a Guilherme que levasse a eles meu não como resposta. Mas o próprio Guilherme não se mostrou disposto a aceitar esse não. Talvez ele tivesse prometido aos promotores do festival que nos convenceria a participar; talvez ele achasse que o Festival Internacional da Canção, o FIC, estava se tornando uma boa oportunidade de divulgação; talvez ele simplesmente não achasse certo que ficássemos de fora de algo de que ele próprio não gostava muito mas que estava se tornando – como tudo o que se passa no Rio - um acontecimento jornalístico indefinido porém de grande repercussão nacional; talvez a palavra internacional, um bordão seu desde que ouviu Bethânia pela primeira vez, tangesse uma corda especial em sua imaginação; o fato é que Guilherme insistiu em que puséssemos qualquer coisa no festival da Globo. Minha recusa foi resistente. Até que, relacionando essa insistência de Guilherme com a que ele mostrou para me convencer a escrever o "É proibido proibir", pensei, primeiro em tom de brincadeira, depois já antevendo o que poderia fazer, em inscrever exatamente essa canção no tal festival. Eu dizia a ele, quase em tom de ameaça, que poria a música no certame como mero pretexto para fazer da minha apresentação ali um happening. Gil seguiu minha decisão. E trocamos de bandas: eu iria com os Mutantes (um sonho meu) e ele com os Beat Boy s, agora rebatizados de Os Bichos.
Nós apresentaríamos as músicas numa fase eliminatória em São Paulo, concorrendo com outros artistas residentes ali. O que Gil decidiu fazer foi exibir seu conhecimento da música de Hendrix (ainda totalmente desconhecida do público brasileiro), reproduzindo em português o canto falado do grande guitarrista, sobre uma base rítmico-harmônica de colorido brasileiro, embora mantendo o blues predominante do seu modelo tudo a serviço da provocação anarquista de usar o chavão das reuniões políticas de esquerda "Questão de ordem" (que era o próprio título da canção) e subvertê-lo: "questão de desordem", infelizmente abrandando-o e açucarando-o com um refrão beatlesesco "em nome do amor". Era, de qualquer modo, uma canção bem superior à minha e, no fundo, um número mais radicalmente inovador. Mas "É proibido proibir" se transformou, com a ajuda dos Mutantes e de Rogério Duprat (que, sem escrever um arranjo para orquestra, orientou a introdução atonal com sabor de música concreta e eletrônica executada pelo grupo), numa peça de grande poder de escândalo. Meu cabelo estava muito grande e, entregue à sua própria crespidão rebelde, mais parecia uma mistura do de Hendrix com os de seus acompanhantes ingleses do Experience. Eu estava vestido com uma roupa de plástico verde e preta, o peito coberto de colares feitos de fios elétricos com tomadas nas pontas, correntes grossas e dentes de animais grandes. Essa roupa, concebida por Regina Boni com os palpites de Dedé, tinha – tanto quanto os ganchos de açougue na sala do nosso apartamento - um toque protopunk que fazia parecerem bem-comportadas nossas então já usuais (mas ainda escandalosas) "camisolas" africanas de estamparias vivas, e até mesmo os trajes de ficção científica que os Mutantes usavam ali mesmo ao meu lado no palco – para não falar do terninho xadrez de Guilherme com gola rulê laranja-vivo do lançamento - tornado remoto em meses - de "Alegria, alegria". Depois da longa introdução - que já arrancava vaias por seu atonalismo e sua total indefinição rítmica - eu começava a cantar os tolos versos ("A mãe da
virgem diz que não/ E o anúncio da televisão/ E estava escrito no portão") acompanhando-os de uma dança que consistia quase exclusivamente em mover os quadris para a frente e para trás, porém não tanto à maneira brusca e algo mecânica de Elvis, antes ao modo relaxadamente sexual das baianas, das sambistas de morro, dos homens e mulheres cubanos. Como se não bastasse, a uma certa altura o canto e a dança eram interrompidos (mas não os efeitos dos Mutantes) para dar lugar à declamação do poema de Fernando Pessoa sobre d. Sebastião, o rei português que morreu ainda adolescente na última (e irrealista) cruzada, nas areias de Alcácer Quibir, e cuja volta é conjurada até hoje em rituais populares brasileiros em geral ligados ao culto do Espírito Santo, constituindo um mito que alguns intelectuais dos dois lados do Atlântico (Sul) muitas vezes retomam para significar o anúncio de uma nova era (o "Quinto Império") para o mundo baseada nas grandezas perdidas de Portugal. É um poema de Mensagem, o livro de Pessoa que me impressionara na época da faculdade por ser capaz - ao parecer constituir a fundação mesma da língua portuguesa ou sua justificação última - de dar vida digna a esse mito tão frequentemente ridicularizado (o termo "sebastianismo" virou sinônimo de impotência auto- iludida, um quase consensual depreciativo da crítica da cultura entre nós). Uma versão corajosamente livre (e surpreendentemente nada reacionária) desse mito tinha se apresentado a nossa geração de baianos através da figura do professor português Agostinho da Silva que, nos anos de ouro da Universidade da Bahia sob o reitor Edgar Santos, fundara em Salvador o Centro de Estudos Afro-Orientais, sempre mirando um horizonte de superação do estágio em que se encontrava o mundo liderado pelo Ocidente protestante (a
filosofia alemã, Marx, Freud, os Estados Unidos etc.), nunca deixando parecer que se tratava de uma mera nostalgia do catolicismo medieval português. Ao contrário: sendo ele tradutor de Hölderlin e dos gregos, seu amor aos sincretismos afro-lusitanos ou luso-asiáticos (e mesmo afro-asiáticos) não se queria uma negação (ou uma desistência) das conquistas da era norte-européia, e seu ecumenismo retomava paganismos vários prevendo uma necessária superação do cristianismo: a era do Filho dará lugar à era do Espírito Santo, com Marx e tecnologia. Algo (ou muito) disso está por trás de toda a obra de Glauber - e, em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o tropicalismo. O poema de Pessoa é, em si mesmo, uma jóia do modernismo português – e uma obra-prima da poesia moderna em qualquer língua. Declamá-lo ali num programa de televisão, entre guitarras elétricas e slogans surrealistas emprestados aos estudantes franceses, era um desafio formal e também
significava forçar uma visão implausível no ambiente. Para acentuar o contraste, eu, invertendo a expressão popular "o diabo está solto", gritava "Deus está solto", como que anunciando a entrada no palco (surpreendente até mesmo para os organizadores do festival, que disso não tinham sido avisados) de um rapaz americano, John Danduran, um gringo evidente, alto, muito branco, envolto num poncho hippie, sem um fio de cabelo em todo o corpo (ele tinha tido não sei que doença), dando urros e grunhidos inarticulados. A platéia, no auditório do TUCA (o Teatro da Universidade Católica tinha sido a escolha dos organizadores do FIC), predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de esquerda (quer dizer, anti-imperialista), reagiu com violenta indignação. Várias caras conhecidas se mostravam ostensivamente hostis a mim e não poucos entremeavam as vaias convencionais (uuuuuuuu) com xingamentos e palavrões.
Não posso dizer que tudo isso fosse propriamente surpresa para mim. Eu sabia que estava fazendo uma provocação. Mas o tropicalismo já estava aí por quase um ano e era perfeitamente previsível um episódio de vaias entremeadas de admiração pela ousadia e pelo bom acabamento musical e cênico da apresentação. O ódio (não há outra palavra) que se via estampado nos rostos dos espectadores ia muito além do que eu pudesse ter imaginado. O júri, no entanto, formado por pessoas mais velhas e mais cultas do que a média da platéia, levou em consideração aqueles aspectos positivos, e classificou a canção para a semifinal. Mas a experiência hendrixiana de Gil (que desagradara igualmente à platéia, embora não tenha oferecido os motivos de escândalo de "É proibido proibir") não encontrou nos membros do júri referências quaisquer que os fizessem reconhecer ali sequer uma canção. E Gil foi desclassificado. Eu, impressionado com a intensidade da raiva que o público mostrara contra mim e desinteressado de continuar naquele festival, decidi voltar a apresentar a música na semifinal (ainda no TUCA) apenas para aproveitar a oportunidade de levar o happening até as últimas conseqüências: diria àquela platéia tudo o que pensava sobre sua reação e, mostrando aos membros do júri que a música de Gil tinha sido desclassificada porque eles estavam atrasados em relação ao que vinha acontecendo no pop mundial (eles aprovavam de bom grado imitações toscas de procedimentos americanos ou internacionais já conhecidos, mas um produto bem-feito criado num universo estilístico que eles ainda não sabiam que tinha sido aprovado "lá fora", não), eu retiraria a minha própria canção. O discurso que improvisei (eu estava tão excitado nos dias que precederam essa segunda apresentação, que nem era capaz de preparar mentalmente uma fala ordenada: as ideias de coisas para dizer se sucediam numa velocidade estonteante) foi moldado pelo sentimento que me inspiravam as caras que eu via na platéia, sua raiva e sua tolice. Na verdade essas caras tinham desaparecido quase todas, pois logo que os Mutantes iniciaram a introdução a maioria esmagadora dos assistentes voltou-se de costas para o palco numa demonstração um tanto assustadora (em retrospecto, admirável em seu ineditismo), no que foram prontamente imitados pelos Mutantes, que passaram a tocar de costas para a plateia. Quando, em substituição à declamação do poema de Pessoa, comecei a falar (a urrar, seria mais adequado dizer) de improviso, alguns espectadores, depois praticamente todos, viraram-se de frente para ver o que estava se passando. A medida que os rostos curiosos - mas nem por isso livres do ódio que os fizera desaparecer - ressurgiam, minha ira e meu confuso entusiasmo cresciam e, numa voz a um tempo descontroladamente insegura e confiantemente profética, eu disse: "Essa é a juventude que diz que quer tomar o poder? Se vocês forem em política como são em estética, estamos fritos". Gil, atendendo ao meu chamado, subiu ao palco e, entre as coisas que nos atiravam da platéia (em geral pedaços de papel embolados, copos de plástico ou de papelão etc.), um pedaço de madeira serrada, do tamanho e da espessura de um maço de cigarros mais ou menos, acertou sua canela, tirando sangue. Saímos do TOCA amedrontados. Na calçada em frente ainda havia pessoas gritando coisas. Fiquei angustiado. De certa forma, entendi, num relance, os conteúdos das crises eventuais de angústia relacionadas ao movimento que assolavam Gil. Eu mesmo, no meu discurso, dera um tom de grandeza ao que fazíamos, e agora temia que tudo fosse demasiado grande: "Deus está solto" ecoava em minha cabeça, e o medo de ter ido longe demais em mexer com forças sobrenaturais era um modo simbólico de eu me dizer que talvez tivéssemos tocado estruturas profundas da vida brasileira com enorme risco para nós. Eu me sentia orgulhoso, sem embargo. E ao chegar em casa recebi as mais calorosas manifestações de solidariedade de amigos cujo tom às vezes surpreendente de espanto e admiração a um tempo me envaidecia e intimidava. Os contrastantes Augusto de Campos e José Agrippino de Paula me telefonaram com brevíssimo intervalo entre os dois para dizer frases definitivas de aprovação. José Celso Martinez Corrêa veio até minha casa - que estava cheia de nós todos do grupo-núcleo - trazer, mais do que solidariedade, uma sugestão de conversa analítica e interpretativa da situação, conversa que não fui capaz, em meu cansaço excitado, de enriquecer, quase nem mesmo de acompanhar. No dia seguinte, Dedé e eu partíamos com Gil para São Vicente, no litoral de São Paulo, aceitando o convite de um conhecido de Gil e de Lennie Dale para ficarmos refugiados na casa de praia que ele possuía ali e que deixaria conosco por uma semana. Precisávamos descansar e pôr a cabeça em ordem.
Guilherme em breve surgiria com o plano de apresentarmos as duas canções num show numa boate do Rio, paralelamente às finais cariocas (e "internacionais") do festival. Era com muito orgulho que eu nos via num sofisticado show à margem da chatice do FIC. Suponho que foi o então iniciante empresário Ricardo Amaral (um paulista que se tornou a partir dessa época o "dono" da noite carioca) quem propôs a Guilherme um espetáculo tropicalista
com os Mutantes, Gil e eu em sua Boate Sucata, à beira da lagoa Rodrigo de Freitas (já era uma "discothèque", sem esse nome, mas com todas as características - e não era a pioneira na cidade: o Le Bateau já estava aí havia algum tempo). O show foi possivelmente a mais bem-sucedida peça do tropicalismo. Pelo menos, a que melhor expunha nossos interesses estéticos e nossa capacidade de realização, além de não apresentar a defasagem habitual entre nosso estágio crítico e nossos produtos até aqui inseridos na voragem da realidade, fosse da gravadora, fosse da emissora de televisão. Infelizmente não há muitos bons registros fotográficos (nenhum em movimento) do que fizemos ali.
Embora uma gravação de quatro números meus com os Mutantes, que saíram num compacto duplo, possam dar uma ideia do que estávamos fazendo. Eu usava o mesmo traje plástico verde e negro das apresentações do TUCA - creio que Gil e os Mutantes também mantinham o figurino - e levava às últimas consequências o comportamento de palco esboçado desde "Alegria, alegria", estirando-me deitado no chão, plantando bananeira e enriquecendo o rebolado cubano-baiano do "É proibido proibir". Mas o mais forte do espetáculo era o que Gil e os Mutantes faziam musicalmente com o material escolhido.
O interesse de Gil por Hendrix teve resultados importantíssimos para a música brasileira. O lançamento de "Questão de ordem" nesse festival de que tínhamos saído não significara meramente uma atualização do pop brasileiro com a inclusão da informação Hendrix apresentada em forma de cópia (cover) mais ou menos fiel.
Não. O estilo violonístico de Gil, nascido da bossa nova e retrabalhado pela atenção a Jorge Ben e pelo projeto de reinvenção do baião e da toada nordestinos encontrava nos blues de vanguarda hendrixianos uma nova chave para constituir-se, para além e para fora dos virtuosismos super-bossa-nova surgidos na primeira metade dos anos 60 (e também da guitarra de rock - primária ou progressiva), num marco da história do violão entre nós, levando-me a considerar (como já escrevi em outro lugar) que esta pode ser caracterizada pelos estilos cronologicamente encadeados de Dorival Caymmi, João Gilberto, Jorge Ben e, finalmente, Gil. Claro que era uma seleção radical que deixava de fora (não inconscientemente) tanto Dilermando Reis quanto Baden Powell ou Menescal ou Geraldo Vespar ou Toquinho ou Paulinho Nogueira - ou, mais recentemente, Raphael Rabelo ou Marco Pereira. Mas, apesar de ter por Baden (e Dilermando) admiração das maiores, a esses todos eu preferia Dori Caymmi (filho de Dorival), que tampouco estava incluído na lista. De todo modo, parece-me que minha escolha indica que o mais importante do violão brasileiro se passou nas revoluções aparentemente despretensiosas de autores-cantores que usavam o instrumento apenas para "se acompanhar" do que no concertismo mais ou menos brilhante dos solistas. Quando lembro nomes possivelmente injustiçados nessa relação, Paulinho da Viola é o único que tenho sincera vontade de incluir. O Gil que se pode ouvir tocando violão no disco Expresso 2222 é uma mostra (modesta, se comparada ao exuberante turbilhão de inventividade que se ouvia em casa) do amadurecimento de seu estilo. O que ele e os Mutantes apresentavam nesse show tinha a soltura e a independência daquilo que se impõe como fato novo valendo por si, sem a ansiedade nem a letargia provincianas. Por isso também o show representou uma nossa entrada violenta no Rio. Artistas estrangeiros vindos para o FIC apareciam na Boate Sucata para nos ver. (Lembro de Antoine, o cantor francês, mostrando-se impressionadíssimo com o que vira e me dizendo que aquilo era "mais importante do que Hair", e assustando-se diante de minha total ignorância do que se tratava, rindo por ter de explicar-me o musical que estourara na Broadway. Lembro, com mais emoção, de uma bela jovem morena peruana que, ao ouvir-me
dizer-lhe que a canção que ela trazia de seu país me parecera a mais interessante de todo o festival, falou-me de sua autora, Isabel Granda, conhecida também como Chabuca, de quem ela cantou, ao piano, uma música que ela dizia achar melhor do que a apresentada no FIC: "La flor de la canela". Nunca mais esqueci nem a canção nem a compositora e, poucos anos depois, fiquei abaladíssimo quando alguém me disse - será verdade? - que a bela jovem morena tinha morrido.) O pessoal de música brasileira vinha ver para discutir depois - Wanda Sá chorou com pena de ver nossos talentos desperdiçados em comercialismos, Francis Hime achou que tinha descoberto o que seria a nossa tática ou estratégia de fingir aderir ao sistema para ganhar espaço e eventualmente contrabandear coisas de qualidade, alguns poucos se mostraram simplesmente hostis, muitos foram ausências significativas. O pessoal do Cinema Novo é que melhor reagia às nossas experimentações: tendo, por um lado, que lidar com o fato industrial e, por outro, mantendo uma convivência internacional cosmopolita - além, é claro, de conhecer de perto o desenvolvimento do embrião tropicalista em Glauber -, eles estavam preparados para dialogar com o que fazíamos. Assim também uma facção da juventude carioca que, sem ser
conservadora, não se identificava com o modelo do estudante nacionalista de esquerda. Os artistas plásticos, talvez até mais do que os cineastas, estavam próximos de nós - Gerchman inspirara "Lindoneia", Antônio Dias fizera a capa do livro de Zé Agrippino, e Hélio Oiticica, que involuntariamente dera nome ao nosso movimento, estava presente naquele próprio evento, com uma obra exposta perto do palco, complementando a mensagem de nossa atitude frente ao FIC, a MPB, a cultura brasileira e a realidade em geral: sua homenagem ao bandido favelado Cara de Cavalo, morto a tiros pela policia, na forma de um estandarte em que se lia, sob a reprodução da fotografia do corpo do personagem estendido no chão, a inscrição "SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI". Muitos desses pintores estavam às voltas com variações da pop art ou com as questões surgidas depois dela, e Hélio Oiticica vindo do grupo "neoconcreto", orientava suas pesquisas então para a criação de ambientes e peças para vestir (mas no pólo oposto, fosse da moda ou da decoração). Moças grã-finas também apareciam com seus noivos e maridos, amantes e namorados, e as plateias eram em geral simpáticas.
Uma noite, um juiz de direito que, não sei por que cargas-d'água foi à Sucata ver o nosso show, indignou- se com o estandarte de Hélio. Sob uma ditadura militar, uma reação moralista contra uma obra que glorificava um marginal tinha tudo para crescer. Mesmo desproporcional como essa: o estandarte devia ter um metro quadrado e não ficava no palco nem era destacado pela iluminação. Só um fanático se ateria a esse detalhe com tanta tenacidade. Sem embargo, o juiz conseguiu não apenas suspender o show como fechar a boate. Ricardo Amaral ficou tentando negociar a reabertura, enquanto nós esperávamos, sem muito otimismo, reestrear. O episódio foi muito falado e teve, a médio prazo, terríveis consequências.
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