VANGUARDA
Nos anos 70, um amigo meu de Salvado, Breno, filho do meu antigo professor de história da filosofia, Auto de Castro, supondo que ia me ofender em minha possível ortodoxia concretista, me disse que não dava valor a inovações ou invenções no campo da arte. E me citou não sei quem que teria dito que Bartók era "o menos inovador e o mais original dos grandes músicos modernos". Breno era ainda um menino então. E isso só reforçava a inteligência da citação que ele escolhera para destruir meus prováveis argumentos. Eu, como não pertencia a nenhuma ortodoxia, em vez de contrapor o que quer que fosse ao que ele me
disse, fiquei comentando a beleza sagaz da tirada, e tivemos assim uma conversa prazerosa. A natureza quantitativa dos critérios de julgamento dos concretos – a classificação poundiana de "inventores, mestres e diluidores", a teoria da informação de Abraham Moles, as análises jakobsonianas, o pensamento de Max Bense etc. - deixa sempre a impressão de que se está negligenciando o que de fato interessa em arte, ou seja, impor qualidades de percepção do mundo. Com efeito, desde os primeiros textos teóricos do movimento, eles ridicularizaram o "inefável" e o "sublime". No entanto, ao ler, muitos anos depois, a afirmação de Augusto de Campos de que, ao contrário do filósofo que aconselha calar-se o que não pode ser dito (Wittgenstein), o poeta deve continuar "dizendo o indizível", encontrei antes coerência do que contradição entre esta eleição do indizível e aquela rejeição do inefável. Pouco Importa que as duas palavras sejam, tudo apurado, sinônimas: por trás dos close readings e da estatística de vogais e consoantes, é o fenômeno sensível e qualitativo que tem a última palavra. Como disse Décio Pignatari em Comunicação poética, seu lindíssimo manual para jovens interessados em poesia, "aqui pode-se ensinar como se faz um poema, mas não como se faz um poeta". Se eles defendem uma objetividade que protege
a apreciação poética contra os caprichos e a irracionalidade é porque sabem que aqueles e esta servem freqüentemente à manutenção de hábitos arraigados que resultam em servidão para o poeta. Quando Augusto, defendendo o alegado cerebralismo dos "metafísicos" ingleses, diz que "a verdadeira função ética" do poeta implica uma "recusa a se deixar transformar em objeto, a permitir que façam dele uma juke-box de titilações sentimentais", está dando uma pista para que qualquer bom entendedor possa discernir entre poesia e guerrilha estética no concretismo.
Assim, na "família dispersa" de poetas "bracejando" no espaço-tempo sincrônico, os concretos salientam os nomes daqueles que representam essa defesa da lucidez da linguagem - poetas "do código" antes que "da mensagem" -, aqueles que, nas palavras de Augusto, "lutaram sob uma bandeira e um lema radicais - a invenção e o rigor". Aqui ressurge enriquecida a afirmação esquemática de que "o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo". Hoje há muita gente se perguntando o que é que afinal significou o modernismo, em que medida Webern pode obsoletar Brahms, ou que sentido devemos dar ao fato de que John Cage - jogando moedinhas do I Ching e lendo Finnegans Wake ao acaso – seja considerado o mais criativo músico do fim do século. Lembro de uma conversa que tive com Augusto em Amaralina no inicio dos anos 70, em que eu lhe expunha os para mim impressionantes arrazoados de Lévi-Strauss contra a música atonal, concreta ou dodecafônica, na ouverture de Le cru et le cuit. Augusto, embora acompanhando com admiração e interesse a inteligência dos argumentos, respondeu impassível: "Todas essas coisas são muito bem pensadas, mas quem decide o que é melhor para a música são os melhores músicos. Há sempre algo que só é perceptível para quem está com a mão na massa". Pode-se ver nas Demoiselles d'Avignon um protesto contra a vulgarização da vicia (saudades do Ancien Régime?), uma premonição dos horrores das guerras modernas, uma adaptação psicológica à disparada da tecnologia e à mudança dos valores morais ("novo sistema nervoso"), ou um gesto de libertar o olho do academicismo esterilizante: a intuição de Picasso - aquilo que só está por inteiro na própria obra - necessariamente vai além dessas conjecturas, sejam elas tomadas em separado ou todas em conjunto. Augusto, naquele dia em Amaralina, estava me dando uma chave para lidar com os problemas deste nosso mundo pós-utópico (como Haroldo preferiu chamá-lo num artigo dos anos 80).
Em 68, Augusto mostrou-se impressionado com as declarações arrancadas por um repórter a Paul McCartney de entusiasmo por Stockhausen. Ouvindo, nos anos subsequentes, o pop doce e desossado que Paul produziu - e a enxurrada de canções programadamente digestivas ou programadamente transgressivas que se seguiram ao espetacular crescimento do mercado de música pop depois dos Beatles -, pode-se imaginar o fastio e o dessabor de um homem como Augusto diante da canção popular. E os tropicalistas não estiveram fora da roda. Eles mesmos nós... - teriam cedo ou tarde que exibir, de forma mais ou menos nobre em cada caso, as marcas de origem da atividade que escolheram: produção de canções banais para competir no mercado. (Sendo que, no Brasil, o crescimento desse mercado significa, em si mesmo, uma conquista nacional.) Augusto segue combatendo pela música impopular: Boulez Stockhausen, Berio, Varèse e Cage - mais Giacinto Scelsi, Luigi Nono. Ustvólskaia etc. A resistente impopularidade da música culta mais inventiva é realmente uma esfinge. (Otto Maria Carpeaux escreveu que a música sempre esteve na retaguarda.) E o lampejo de euforia de Augusto em face do possível (mas não ulteriormente desenvolvido) interesse do jovem McCartney por Stockhausen em 68 era a fugaz esperança de decifração do enigma. Produssumo, como já disse, foi a palavra inventada pelo outro concretista Décio Pignatari para definir uma era em que procedimentos de vanguarda se davam em top-hits de pop- rock. Um dos problemas mais instigantes da vanguarda - e o que faz muitos artistas instigantes fugirem dela como o diabo da cruz - é sua dúbia disposição em face da ambição, que lhe é intrínseca, de tornar-se a norma.
Recentemente ouvi de Arto Lindsay que os músicos e produtores dessas formas mais em voga de dance music (techno) são consumidores vorazes justamente desse repertório heroicamente defendido por Augusto. Assim, muito mais do que Paul pode ter ouvido Stockhausen, esses garotos ouvem Varèse e Cage, Boulez e Berio. E, me diz Arto, só falam nisso. O que pensar? Nos anos 70, vozes conservadoras (e muito úteis) já se levantavam para protestar contra "o modernismo nas ruas". Mas onde e como se formará o ouvido coletivo naturalmente familiarizado com a música dos pós-serialistas ou pósdodecafônicos? E que m undo será esse em que uma música assim soe como música ao ouvido de "todos"? Ao ver quadros de Monet, meu filho de cinco anos comentou que eles eram "muito malfeitos se vistos de perto", embora "parecessem bem-feitos" se olhados à distância. Eu próprio não sei dizer exatamente por que a música de Webern (sobretudo a mais radical) me pareceu indiscutivelmente bela desde a primeira audição. Serão os garotos da technodance um embrião de minoria de massa? O que acontecera ao ouvido tonal tal como o conhecemos se o fracasso de público da música mais impopular for superado? Quando eu vi MTV pela primeira vez, em Nova Iorque, escrevi um artigo intitulado "Vendo canções" (intencionalmente usando os dois sentidos da palavra vendo) em que faço perguntas um pouco mais superficiais mas que apontam na mesma direção: os procedimentos de filmes de vanguarda, jogados no lixo pelo cinema sério e pelo comercial, tinham finalmente se refugiado ali naqueles filmecos de rock'n'roll, que eram a um tempo ilustrações erráticas das canções e anúncios dos discos correspondentes. Hoje não aguento assistir a vídeos de rock por muito tempo: o excesso de imagens esforçando-se por parecerem bizarras me entediam, sobretudo na velocidade em que são editadas.
Mas a questão permanece: as referências ao Chien andalou ou a Metropolis - e todo o permanente parentesco com Le sang d'um poète, de Cocteau - estão num vídeo de rock exatamente e apenas como formas de Mondrian na minissaia de uma puta ou só agora o "modernismo" ou as "vanguardas" começam a perder direito a esses nomes de ruptura? Diante do realismo desencantado (na verdade ardendo de excitação retrógrada e pré-humanista) dos comentaristas aparentemente corajosos, prefiro continuar amando o que foi conquistado pelos modernismos e todos os seus desdobramentos. Diante da capitulação às leis narrativas de Holly wood, continuo festejando Godard. Diante dos jornalistas que atacam os filósofos franceses e alemães porque eles não escrevem de modo anglofilamente "claro" (jornalístico), louvo Heidegger escrevendo sobre Nietzsche, e Deleuze sobre Proust. Saúdo a chegada de Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown e Chico Science contra a crítica que se submete (explicitamente!) ao número de cópias vendidas de um CD ou à intensidade e duração dos aplausos em salas de espetáculo. E essa força, que para mim significa vida, eu a levo em grande parte aos poetas concretos. Sem falar no fato de que eles, em seu resgate do barroco e sua redescoberta de figuras mais ambiciosas e inventivas do que muitas das que ocupam tradicionalmente a corrente central da história da literatura brasileira, enfatizaram, como disse o historiador norte-americano Richard M. Morse, "uma nova leitura da cultura americana não mais calcada em termos de uma imagística genealógica de troncos, galhos e rebentos que apontam para uma formação gradual de 'identidades' transatlânticas". E a força da visão sincrônica. E a superação da oposição centro/periferia.
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