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terça-feira, 18 de junho de 2019

LENDO A CANÇÃO

Por Leonardo Davino*



Museu

Na letra de “Museu”, Chico César (Estado de poesia, 2015) relaciona e amalgama as musas contemporâneas a fim de afirmar um sujeito-museu. Os versos iniciais – “Musa eu sou seu museu” – indicam a apropriação musal feita pelo sujeito. E seu desejo de ser visitado pela Musa.
Se com seus Parangolés, “antiarte por excelência”, o artista plástico Hélio Oiticica liberou as cores da parede, deixando-as tomar conta do ar no corpo de quem as veste, Chico César libera a Musa da clausura que os museus se transformaram: lugar do seguro, da conservação, da memória envelhecida. Em oposição a isso ele canta um “museu da mordida no lábio inferior / da língua solta / do verbo encarnado transcolor”. 
Aliás, foi também Hélio Oiticica quem apontou que o “museu é o mundo, é a experiência cotidiana”, e sendo o museu, literalmente, a “casa das musas”, o artista assume a questão moderna lançada por Oswald de Andrade no “Manifesto da Poesia Pau Brasil”: “a poesia existe nos fatos”. Desse modo, o museu passa a ser, ou volta a ser, o “jambo pendurado no jambeiro”, como canta Chico César.
“Aberto pra visitação”, o museu-sujeito criado por César se permite ser atravessado pela profusão de referências que marcam a contemporaneidade. Museu da Luz (Portugal), Museu da Pessoa (São Paulo) e Espaço Cultural (Paraíba) são espaços físicos de conservação da nossa memória artística-cultural. O sujeito da canção incorpora tais referências, mas dá um passo além. Ele é também “museu da espera, e do encantamento”. Rompe-se aqui com a visão tradicional de museu: “Musa eu sou seu museu da memória de ontem”. 
Para o sujeito, em sendo esse novo modelo de museu, viver é estar na tensão entre o “calçamento ainda não pisado” e a “calçada explodindo em flor”. Esse museu não guarda, não preserva, não tem reservas técnicas. Aplicam-se os versos do poema “Guardar” (1996), de Antonio Cícero: “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se a coisa à vista. // Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. // Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. // Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro / Do que um pássaro sem vôos // (...)”.
Quando fazemos do mundo o museu de tudonada, um museu vivo, abrimo-nos para ser habitados pelas musas. Numa torção temporal que faz de cada um a habitação da poesia. Nesse retorno ao arcaico do gesto poético, a poesia recupera sua potência de revelação e de ritual. O sujeito é o “espaço cultural a ser preenchido pelo beijo”. O sujeito vive em “estado de poesia”, título disco de Chico César. 
As referências ao “museu do café amargo num copo grande” e do “museu do índio íntimo contemporâneo-mítico”, além de evocarem um período arcaico e mitológico, cantam fragmentos da formação cultural já que, no primeiro caso, remete o leitor-ouvinte às oferendas feitas aos pretos velhos da Umbanda – guardiões da sabedoria e do tempo – e, no segundo caso, aos donos das terras desse lugar. O resultado desses contatos é o “museu do corpo / meu corpo e o seu / e do aprendizado em outros corpos”.
"musa eu sou seu museu / da memória de ontem / do musgo / do mel / da musica sem fim museu / enfim museu do mar / do cheiro de mar / museu", canta o sujeito.
Chico César reforça o agravamento da crise do museu, daquilo que é previamente etiquetado, tombado, canonizado, entronizado, restituindo esse lugar à casa das musas. Se em “Musa híbrida” Caetano Veloso tem ímpeto de “refazer o mundo”, em “Museu” há a disposição do sujeito a serviço Musa: ele como permanente instrumento da Deusa; “do somos do som do ué”: da conjunção e do espanto – museu.
Esse indivíduo que é museu canta a mundivivência rosiana . Ele canta a “musa da música” cantada por Dante Ozzetti e Luiz Tatit: aquela que “zela / por aquela / que protela / a extinção” – “na poética pós / na genética pré”.


***

Museu
(Chico César)


musa eu sou seu museu 
aberto pra visitação
museu da luz
museu da pessoa
museu da espera, e do encantamento
do calçamento ainda não pisado
da calçada explodindo em flor

musa eu sou seu museu
do jambo pendurado no jambeiro
que se sonha pássaro e balança, baloiça
museu do café amargo num copo grande
museu do corpo
meu corpo e o seu
e do aprendizado em outros corpos

musa eu
sou seu 
museu

musa eu sou seu museu 
da memória de ontem
do musgo
do mel
da musica sem fim museu
enfim museu do mar
do cheiro de mar 
museu

espaço cultural a ser preenchido pelo beijo
fundação trêmula dos afetos acidênticos
museu da mordida no lábio inferior
da língua solta
do verbo encarnado transcolor

museu do abraço experimental
das almas atentas
antenas entre si entrelaçadas
da rede maca tipóia
museu do índio íntimo contemporâneo-mítico
museu do seu assum preto musa
do somos do som do ué
museu

* Pesquisador de canção, ensaísta, especialista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e doutor em Literatura Comparada, Leonardo também é autor do livro "Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso" e está presente nos livros "Caetano e a filosofia", assim como também na coletânea "Muitos: outras leituras de Caetano Veloso". Além desses atributos é titular dos blogs "Lendo a canção", "Mirar e Ver", "365 Canções".

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