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sábado, 25 de maio de 2019

VERDADE TROPICAL (CAETANO VELOSO)*

Verdade Tropical - Caetano Veloso



Agora, eu absorvia com grande presteza o sentido do trabalho deles. Gostava de reconhecer nos poemas a complexidade que, muitas vezes, à primeira vista eles não pareciam ter. Pequenos ovos de Colombo, eles poderiam parecer ao mesmo tempo demasiado óbvios e demasiado artificiosos, mas em muitos deles tinha-se de fato a experiência, defendida teoricamente pelo grupo (segundo Mallarmé), de "subdivisão prismática de uma idéia". E em todos a aventura de abandonar radicalmente a sintaxe discursiva. Além disso, o arsenal critico de que eles muniam o jovem leitor de suas publicações, as traduções (que Haroldo prefere chamar de "transcrições") de autores e obras que lhes parecessem essenciais (alguns Cantos de Pound, poemas de Mallarmé, os "meta físicos" ingleses, os trovadores provençais, trechos escolhidos do Finnegans Wake, cummings, poesia japonesa etc.), e sobretudo uma alternativa crítica à visão da história da literatura brasileira que a tem como inevitavelmente periférica e desimportante - tudo isso fazia dos números da revista Invenção, dos livros que eles nos davam e das conversas com eles algo instigante e animador.
Haroldo e Décio não transmitiam a mesma impressão de distância que Augusto sempre me deu. Décio sobretudo - com seu sotaque paulistano italianado (isso, em São Paulo, significa popular: mesmo os negros e os judeus - e até alguns nisseis - de São Paulo têm sotaque italiano), seu brilhantismo agressivo e sua vivência entre publicitários e estudantes de comunicação - era alguém naturalmente próximo. Magro e narigudo, bigode e cabelos encrespados, ele tinha um ar de sátiro. E uma esperteza mundana no falar que me deixava totalmente à vontade. O que eu disse sobre seu texto na revista Invenção serve para seu convívio pessoal. Suspeito que as mesmas idéias defendidas por Augusto no artigo que Alex pôs em minhas mãos se expostas por Décio e no seu estilo, teriam me conquistado imediatamente, como Bethânia conquistou minha atenção para a Jovem Guarda com um simples comentário.
Haroldo, gordo e de voz metálica, sem italianismos que manchassem a pureza de seu sotaque paulistano, animava a sala com seu exuberante misto de rigor e bonomia. Ele não deixava a conversa cair e exibia seu domínio da língua e sua imensa erudição sem parecer pedante ou deixar os ouvintes - por menos cultos que fossem - de fora. Augusto, tendo ido mais longe do que qualquer outro sem sair do seu tom isento e comedido, tinha me levado a pensar que o brilhantismo de Rogério, de Glauber, de Waly - o meu próprio, que eu tendia à eloquência se o interlocutor não me intimidava - talvez se devesse a um narcisismo que antes dificultava do que iluminava o acesso a idéias pertinentes e descobertas substanciais. Eis que seus dois companheiros sofriam do mesmo mal. Mas bem cedo vi que as coisas não são simples assim. Augusto sem dúvida - como Capinan, como Cacá Diegues - parecia desprovido desse prazer narcísico no conceber as idéias e no proferir as palavras. (A bem dizer, era como se em nenhum momento de sua formação ele tivesse ouvido o canto de sereia contido na palavra romântica gênio; ao contrário de Glauber, ele não fazia pensar no verso horroroso de Castro Alves: "Eu sinto em mim o borbulhar do gênio"). E há inegável indulgência na fruição do próprio ego no elenco em que me incluí. Mas a excelência dos resultados - e mesmo a confiabilidade dos propósitos - não pode ser aferida dessa tipologia, porque não se dá na razão direta dessas diferenças. Augusto simplesmente - o que afinal é mais coerente com o programa concretista – não tinha gosto pela retórica. Não deixava de ser curioso, contudo, que, desse grupo de poetas de vanguarda que nos procurou, o mais próximo de mim fosse justamente o mais distante.
Passei a freqüentar também a casa de Augusto. Ele, a mulher Ly gia e o filho Cid, então ainda um menino (Roland, o filho mais velho do casal, era arredio e nunca participava das conversas na sala - hoje é astrofísico e realiza pesquisas na Universidade de Brasília), quase sempre Haroldo, acompanhado de sua mulher Carmen, e, mais raramente, Décio, nem sempre com sua mulher Lila, mais Torquato ou Gil ou algum dos músicos de vanguarda (Rogério Duprat era o mais assíduo), além de mim e de Dedé, formávamos um grupo conversador na sala visualmente limpa do apartamento nas Perdizes. Alguns poemas visuais em grandes tipos "futura" enquadrados nas paredes, uma boa reprodução da Grande Jatte de Seurat e um quadro de Volpi, além de alguma coisa dos pintores "concretos" de São Paulo, davam a sensação de uma sensibilidade a um tempo aberta e meticulosa. O gosto pelas formas geométricas e pelo acabamento definido refletiam antes delicadeza de espírito do que contração neurótica: sendo uma sala viva e aconchegante, porosa e arejada, era uma prova singela de que Mondrian e Bauhaus, formalismo russo e tipografismo americano não
desembocam necessariamente em escritórios de executivos e agências de publicidade.
Ali ouvíamos Charles Ives, Lupicínio, Webern e Cage, e falávamos da situação da música brasileira e dos festivais. Nós os jovens tropicalistas, ouvíamos muitas histórias de personagens do movimento dadá, do modernismo anglo-americano, da Semana de Arte Moderna brasileira e da fase heróica da poesia concreta. Trocávamos opiniões com naturalidade, sem que a grande diferença de volume de conhecimentos (e de aptidão mental para lidar com eles) fosse motivo para constrangimentos. É uma experiência brasileira que representa motivo de orgulho, pois a confusão da alta cultura com a cultura de massas, tão característica dos anos 60, pôde, nesse caso, produzir frutos substanciais, e, no refluxo da onda – quando todo o mundo sentiu necessidade de voltar às antigas classificações -, os sujeitos envolvidos conseguiram, apesar de alguns episódios dolorosos, manter o diálogo, e as amizades essenciais foram poupadas. Meu entendimento com Augusto de Campos, sobretudo, talvez por ser o potencialmente mais difícil, tem mostrado uma resistência considerável. O tom com que escrevo as palavras deste livro deve revelar ao leitor atento um
misto de respeito - quase reverência - e sem-cerimônia em face dos assuntos sérios, dos temas nobres e dos estilos superiores. Essa mesma mescla – em dosagens as vezes desequilibradas - já era um traço meu quando, adiando estudos e uma carreira de cineasta, eu cumpria (com prazer) o papel de ídolo de TV, em nome da paixão pela "linha evolutiva" da nossa música popular. Minhas opiniões sobre autores célebres, expressas de modo às vezes desabusado, eram acolhidas com benevolência por esses professores: eles estavam excitados por ver em nós a encarnação de tantos dos seus argumentos. Mas eles nunca agiram de forma condescendente, e os erros que eu (mais que todos) cometia por ignorância afoita eram sempre apontados com delicadeza mas com decisão. De todo modo, eu era sempre mais extrovertido e opinioso se Décio e Haroldo e toda a turma de baianos e tropicalistas estivessem presentes do que se me visse só com Augusto.
A espantosa concordância de nossas posições com as idéias deles - e a natural união contra os ataques inimigos - retardavam o confronto das diferenças e eventuais discordâncias. Ou mesmo o esclarecimento de dúvidas. Darei um exemplo que à época já se me apresentava como tal: a semelhança apontada por Augusto, em conversas e, depois, num artigo escrito em 69, entre o nosso trabalho e a poesia dos trovadores provençais. A ênfase caía sobre a adequação das palavras à música. Ora, eu vinha sendo, continuaria a ser e ainda sou um caymmiano na ótica de João Gilberto. Achava que em Caymmi a palavra cantada recebia o tratamento mais alto que se pode conceber: sempre espontânea, revelava, não obstante, ter passado por um crivo severo. As canções de Caymmi parecem existir por conta própria, mas a perfeição de sua simplicidade, alcançada pela precisão na escolha das palavras e das notas, indica um autor rigoroso. São o que as canções devem ser, o que as boas canções sempre foram e sempre serão. Um canto tuva, um Lied de Schumann, uma balada de Gershwin, a "Dy ing eagle" de Ives, têm que se confrontar com "Sargaço mar", "Lá vem a baiana" e "Você já foi à Bahia": são todas incursões no essencial da realidade da canção. Foi assim que João Gilberto entendeu a "Rosa morena" de Caymmi, por ele eleita como tema para a construção do estilo que veio a se chamar de bossa nova. Foi assim que o grande esforço de modernização de João se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi. A um tempo impressionista e primitivo, mas também o maior dos inventores do samba urbano-moderno, Ca mmi tem pelo menos tanto peso na formação da bossa nova joão- gilbertiana quanto Orlando Silva, Ciro Monteiro, a canção americana dos anos 30 e o cool jazz. E, mais do que peso equivalente, Caymmi tem, acima desses outros componentes, o caráter normativo geral, a hegemonia estética do estilo de João.
Tudo em João presta contas a ele: do senso de estrutura à dicção. Esse cultivo da palavra cantada que encontra excelência em Cay mmi tal como ele foi ouvido por João é o filtro seletivo da bossa nova: produziu a guinada na música de Tom e na poesia de Vinícius. E era tudo o que de mais exigente eu podia conceber em termos da "arte de combinar palavra & som", como explicava Augusto o "motz el som" provençal de Pound. Era também o que Chico Buarque buscava (e frequentemente encontrava) na perseguição da beleza que ele adivinhou nas letras de Vinicius: diferentemente do que fazia Edu Lobo ou Marcos Valle – e
diferentemente do que fariam Milton Nascimento e os mineiros alguns anos depois -, Chico se agarrava à pureza dessa linha, sem mostrar receptividade às exterioridades falsamente modernizantes vindas, fosse do Beco das Garrafas, fosse dos espetáculos do Arena. Ele trabalhava exclusivamente com os elementos que eu tentara (quase sempre em vão) preservar intactos em nossa produção, desde o LP de Bethânia. Por trás da rivalidade entre mim e Chico, deve-se procurar ver a grande identificação. O tropicalismo veio para acabar com os resguardos, mas, se havia alguma coisa que eu próprio tinha querido resguardar, era exatamente o que Chico continuaria cultivando e polindo. Assim, era-me difícil aceitar sem perguntas a afirmação de que em nossas ruidosas letras tropicalistas e que se produziam equivalentes do "trobar ric" do "miglior fabro" Arnaut Daniel. As primeiras leituras dos provençais traduzidos por Augusto, embora revelassem uma beleza e uma engenhosidade impressionantes, não esclareciam por que, por
um lado, eles eram o ápice da história da palavra cantada, nem, por outro, por que, entre nós, não era Cay mmi (ou Chico) quem mais se aproximava deles, e sim Gil e eu. Ou por outra: os exemplos dados por Augusto eram de todo convincentes do nosso parentesco com esses poetas, mas não de que as nossas canções e as deles subissem mais alto que as de Cay mmi no item "motz el som". 
Relendo a entrevista que Augusto fez comigo em 68, fiquei chocado com a observação feita por ele de que minha canção "Clara" - cujo parentesco com os procedimentos dos provençais é nítido - tinha "uma limpeza, uma enxutez, que não há em Caymmi": essas virtudes sempre me pareceram virtudes caymmianas por excelência. A limpeza e a enxutez de João Gilberto foram aprendidas com Caymmi, vêm dele. Não posso negar que, com o passar dos anos, a releitura dos provençais - mais as muitas outras leituras e audições de coisas muito outras - me levou a perceber melhor o sentido das apreciações de Augusto. Entendi cada vez mais claramente que ele, dedicado a estar sempre avaliando um vasto mundo diversificado de experiências com palavras e sons, desenvolvera um ouvido com exigências por vezes de natureza diferente da natureza daquelas que eu mesmo alimentava. Mas minha opinião sobre Caymmi não mudou.
E considero significativo que, tal como acontecera com Boal, e embora no caso dos concretos não tenha havido discórdia, Caymmi tenha sido o ponto em que as diferenças de visão não puderam mais deixar de se perceber. Um dos meus escrúpulos mais resistentes tem sido, desde esses tempos referidos como heróicos, o de submeter todas as minhas pretensões à pergunta: em que medida a oportunidade que se me ofereceu de brilhar como grande figura na história recente da MPB se deve à queda de nível de exigência promovida pela mesma onda de ostensiva massificação que eu contribuí para criar? Augusto – ao contrário dos meus colegas compositores, que temiam uma regressão ao primarismo - via no que fazíamos uma super sofisticação. E apontava isso em duas frentes: no aspecto paródico-carnavalesco e no aspecto inventivoconstrutivista. Eu achava que, mais do que atentado para os meus conseguimentos, ele tinha lido meus sonhos. E eu não tinha dúvida de que os sonhos de Carnaval estavam mais reconhecíveis nas realizações do que os de sólida construção formal. Havia um vazio entre o resgate por Augusto e a rejeição pelos colegas que não podia ser preenchido pelo sucesso popular nem pela notoriedade culturalmente escandalosa. Augusto por vezes contava que Erik Satie, sem poder competir com Debussy em invenção harmônica, optara pelo avesso da música. E concluía que, do mesmo modo, os tropicalistas tinham optado pelo avesso da bossa nova.
O elo perdido se apresentou como que miraculosamente. Augusto, tendo ido a Nova Iorque para algum evento ligado à sua produção poética, falou pessoalmente com João Gilberto e este não só demonstrou total ausência de preconceito contra os tropicalistas como carinho e interesse pelo grupo e seus planos. A narração desse encontro, aliás, resultou numa reportagem que é a única aventura de Augusto na prosa narrativa. Uma verdadeira pequena obra-prima de concisão em que João aparece retratado como nunca antes ou depois. Esse belo texto veio a integrar o livro Balanço da bossa, cuja capa - uma montagem de fotografias em que João parece estar me olhando do alto, enquanto estou sentado no chão do palco - ecoa o recado que Augusto traria dele para mim: "Diga a Caetano que eu vou ficar olhando para ele". Na defesa ostensiva dos tropicalistas, Augusto deixava ver não apenas como se desenvolvera sua combatividade mas também como esta mesma combatividade criara- lhe limitações. Muitas dessas limitações eram assumidas como uma escolha lúcida. Assim, ele dizia com freqüência que não era, não podia e não queria ser "imparcial". Ao contrário, aprendera desde a fase heróica do concretismo que tinha de ser parcialíssimo. A impermeabilidade a nuances que o ideário concretista exibia sua decisão de bater na mesma tecla de valorização das atitudes de vanguarda, em detrimento de uma exibição mais auto-complacente da abrangência e do refinamento da inteligência de seus lideres, rendeu-lhes a censura de "monológicos" por parte de seus detratores. Li de algum desses últimos a observação de que o pensamento dos concretos levava a conclusões esdrúxulas como, por exemplo, a de que "Lewis Carroll é melhor do que "Dostoievski". Augusto, Haroldo ou Décio nunca se deixaram impressionar por argumentos desse tipo, sempre mantendo a ênfase no experimentalismo como um contrapeso do conformismo mediocrizante. Havia, no entanto, alguma coisa nas argumentações de Augusto que eu cria apontarem para um problema para
mim não resolvido - talvez insolúvel - em toda vanguarda. Esse problema diz respeito ao progresso nas artes. Não que os concretistas parecessem não atentar para ele. Haroldo de Campos sempre procurou deixar bem claro, em seus textos teóricos, que a poesia concreta se lança a uma "superação crítica" relacionada a um "vetor" que tem tudo a ver com as exigências do tempo e nada a ver com juízo de valor. Mas nem por isso estava para mim dada a questão por encerrada. O que me parecia uma fraqueza nas observações tanto de Augusto quanto de seus amigos músicos de vanguarda era a inserção de João Gilberto na linhagem de Mário Reis, cantor de sucesso nos anos 30, cuja voz pequena ficou de moda com o advento dos microfones modernos. Mário cantava quase falando, em staccato, às vezes separando as sílabas das palavras, numa relação regular com as barras rítmicas, sem usar adornos de espécie alguma. É claro que eu reconhecia a identificação exterior com João, na desdramatização e no pouco volume. Mas João é um cantor de grandes legati, de fraseado flutuante e de incríveis jogos rítmicos. Seu estilo vem de Orlando Silva, o grande modernizador do canto brasileiro. A voz potente (mas sempre usada com natural suavidade) e os ornamentos de Orlando levam muitos ouvintes a andar em erro julgando que João está afastado dele. Sem dúvida, João revaloriza também Mário Reis, e há (como me lembrou o cineasta Júlio Bressane), nos dois casos, a obsessiva fidelidade a um mesmo repertório sempre revisitado e que cresce a conta-gotas. Há um "minimalismo" que os aproxima. Mas num certo sentido João é o anti-Mário: fazendo de sua voz um instrumento entre outros, ele é, como Orlando, um supercantor, enquanto Mário, com sua recusa de entregar-se às melodias, tira seu charme de ser um subcantor ou anticantor. Dava-me a impressão de que algo do modo como esses vanguardistas de São Paulo ouviam a bossa nova era superficial. A seleção mesma que Augusto fazia dos exemplos no repertório da bossa nova indicava uma discrepância entre nossos gostos. Sempre mais apaixonado pela religação feita por João Gilberto entre a ponta da modernidade e a melhor tradição brasileira - que foi o que fez a grande diferença da bossa nova em comparação à americanização algo tola dos seus predecessores dos anos 40 e 50 (e de alguns de seus supostos seguidores dos 60 em diante) -, eu via em "Chega de saudade" a canção-manifesto e a obra mestra do movimento: a navemãe. Um samba com algumas características de choro, riquíssimo em motivos melódicos, de aparência tão brasileira quanto uma gravação de Silvio Caldas dos anos 30 (e com uma introdução de flauta inspirada numa gravação de Orlando Silva), "Chega de saudade" era ao mesmo tempo uma canção moderna com ousadias harmônicas e rítmicas que atrairiam qualquer jazzista bop ou cool (como de fato vieram a fazer).
Por outro lado, o titulo e a letra sugeriam uma rejeição/reinvenção da saudade, essa palavra que é um lugar-comum na lírica luso-brasileira e um emblema da língua portuguesa, pois, além de ser um acidente etimológico inexplicado, cobre um campo semântico revelador de algo peculiar em nosso modo de ser. Uma luxuriante composição cheia de lugares-comuns incomuns (para usar uma expressão do próprio Augusto - ou talvez seja de Décio -, extraída de outro contexto) e de novidades que soavam como atavismos - ou experimentações que pareciam lembranças -, essa canção era o exemplo generoso daquilo que Tom, João, Vinicius e Cia. queriam oferecer, e continha todos os elementos que estariam dispersos nas outras. Ela era o regime geral da bossa nova, o mapa, o roteiro, a constituição. Pois Augusto, ao comentá-la brevemente, destaca apenas a paronomásia "colado assim, calado assim , como sendo o que havia de interessante numa canção de outro modo convencional. Na verdade, esse momento em que a melodia de Jobim se lança mais a intervalos inusitados, e a
letra de Vinícius também se mostra formalmente "inventiva" (conscientemente inventiva), contém em si o "Desafinado" e o "Samba de uma nota só". Mas, tanto para Augusto como para os músicos de vanguarda paulistas, estas duas últimas é que eram as "canções-manifestos do movimento, as que mais abrangentemente o representavam. É preciso notar, no entanto, que Augusto não se dedicou a escrever sobre a bossa nova: O breve comentário de "Chega de saudade" está relatado num artigo de Brasil Rocha Brito como trecho de uma entrevista. Ele escreveu sobre pós-bossa nova: Jovem Guarda, Fino da Bossa, tropicalismo. E o fez de modo tão lúcido e oportuno que é de se crer que se ele tivesse parado para escrever sobre bossa nova nenhum dos seus aspectos essenciais lhe teriam escapado. Mesmo porque, até o engano em relação à questão Mário Reis ou Orlando Silva tinha sido superado por José Lino Grunewald, o braço carioca da poesia concreta, poeta, tradutor dos Cantos (completos) de Pound e amante da música popular dos anos 30. Augusto certamente o ouviria e reouviria Orlando, Mário, Silvio Caldas e muitos mais, antes de sentar-se para escrever. "O velado de João Gilberto", escreveu Grunewald, "vem de Orlando Silva, não de Mário Reis."
Augusto formulou, anos depois, no prefácio a um livro de traduções de Ovídio a Rimbaud, a idéia da poesia como "uma família dispersa de náufragos bracejando no tempo e no espaço". Apesar de, nesse mesmo texto, Augusto dizer que "o antigo que foi novo é tão novo quanto o mais novo novo", como que a indicar apenas que ele se filia a uma milenar linhagem de vanguardistas, sempre senti que, subjacente ao critério do avanço, está a visão sincrônica. Isto não é nenhuma descoberta: em textos tão claros e tão entusiasmados quanto os que apontam para uma estética do "novo", os concretistas (sobretudo Haroldo) defenderam uma crítica de mirada sincrônica, trans-histórica. O que eu quero dizer é que esse aspecto do aparato teórico deles me atraiu mais e me pareceu mais profundo neles mesmos do que a paixão da novidade. É como se a campanha do novo não fosse senão uma estratégia de manutenção da altura do nível de exigência. As rupturas modernistas podem ser explicadas de diversos ângulos, mas é inegável o caráter de revitalização do acervo amado embutido em muitas atitudes aparentemente destrutivas.
Stravinski e Schönberg parecem empenhados em que ouçamos Bach com melhores ouvidos e não em que deixemos de ouvir Bach para passar a ouvi-los apenas a eles. Se arriscarmos olhar bem fundo, talvez cheguemos à conclusão de que os modernismos representaram antes uma luta contra a iminente obsolescência de um passado belo em vias de banalizar-se; de que nunca, como no modernismo, a arte foi tão profundamente conservadora. A luta era, foi, é sobretudo contra o academicismo. O artista, aristocrata supremo, não poderia submeter-se à vulgarização burguesa que queria distribuir fórmulas prontas, usáveis por qualquer um, para se consumir e produzir arte. Era preciso mostrar que a arte é terrível e que é difícil: você não pode passar incólume por Velásquez, por Mozart ou por Dante. Mas a tensão entre esse aristocratismo (que no limite terminaria por negar o próprio trabalho do grande artista moderno) e a necessidade de afirmar-se o modernista como um produtor novo de objetos artísticos de primeira linha (o que, em última instância, levaria à defesa do futuro burguês e popular e da disparada tecnológica) é que produziu toda a gama de movimentos do final do século XIX ao início do século XX, dos impressionistas aos expressionistas, dos construtivistas aos surrealistas, de Marinetti a dadá, de Duchamp a Mondrian. Como quer que seja, eu, um mero cantor de rádio, mimado (mas não muito, que eles são realmente responsáveis e consequentes) por esse bando de eruditos, via- me metido numa guerra que exigia definição quanto a essas questões tão abrangentes, e isso me excitava. Parecia-me que eu estava realizando aquele programa de ser poeta por outras vias que não as do poema impresso. Aliás, não estava longe de confirmar essa ilusão Augusto ao dizer que o que havia de interessante em poesia brasileira - a "informação nova" - tinha migrado das páginas dos livros para as vozes da canção popular. E, mais provocadoramente ainda, que Villa-Lobos era um "diluidor" em sua seara, enquanto Gil e eu éramos "inventores" na nossa.






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